Começo pedindo desculpas. Se você me acompanha, já leu e ouviu essa frase dezenas de vezes, mas sou obrigada a repetir. "O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, é a ilusão do conhecimento", cravou Daniel Boorstin, em sua obra prima "The Image", de 1962. Essa frase mudou minha vida para melhor, é uma libertação daqueles erros com os quais a gente se casa.
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Durante muitos anos atuando como jornalista, pensei que entendia de campanhas de Saúde Pública. Daí eu precisei estudar para competir internacionalmente por uma vaga de liderança em uma campanha de erradicação da pólio. Morri de vergonha. Fiquei pensando no tanto de groselha que eu já havia dito nos anos anteriores comentando campanhas de vacinação aqui no Brasil.
Eu pensava que bastava colocar os fatos, os melhores especialistas para explicar como tudo funciona, trazer exemplos internacionais e as pessoas se vacinariam. Considerava esdrúxulos argumentos pró-vacina e anticiência. Vejo gente tão bem intencionada quanto eu era cometendo esse erro diariamente. Um dia sentirão a mesma vergonha que eu senti quando descobri que o que não sabia mas achava que sabia.
Seres humanos não são racionais, são animais emocionais que também raciocinam. Nossa tomada de decisão é fundamentalmente emocional e recorremos aos argumentos racionais para embasar o que já decidimos. Por isso o método científico não é uma questão de opinião, é uma série de regras e etapas a serem seguidas, levando em conta que todos nós temos diversos vieses na análise.
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A grande maioria da população aceita bem as campanhas corriqueiras de Saúde Pública e o jornalismo tradicional, que explica os fatos e ouve especialistas. Não é preciso mudar o comportamento da maioria das pessoas para imunizar a maior parte de uma população, mesmo em países de costumes particulares ou muito fanatismo religioso.
É um engano pensar que a maioria das pessoas confia em vacinas, vermífugos e medidas sanitárias porque acredita em ciência. A bem da verdade, são pouquíssimos de nós que estudaram o suficiente para entender ciência. Eu, por exemplo, nem estou neste grupo. Nossas decisões são emocionais e com base em experiência pessoal. Todos sabem de histórias passadas de geração a geração do mundo antes da vacina e antes dos antibióticos. Isso rege nossas decisões.
Por mais que haja teóricos da conspiração inventando que leram tal artigo científico e entenderam o que significa, há um sentimento consolidado. Nós lembramos das conversas familiares de antes de existir tal avanço científico e depois. "Imagina se tivesse já esse remédio no tempo do seu avô, não teria sofrido nada daquilo". "O coitado ficou a vida inteira sem andar e hoje, veja só, toma uma gotinha e resolve". Isso marca e já nos deixa propensos a aceitar que a evolução evita mortes.
Haverá sempre uma minoria para quem a identidade social ou o senso de pertencimento ao grupo são mais fortes e importantes que o instinto de sobrevivência. Se virar uma marca do grupo a revolta contra a vacina, a pessoa encampará. E não bastarão fatos para que mude de ideia. É preciso uma saída honrosa que não colida com a argumentação do grupo. Aí que entram Valdemiro Santiago e Fernanda Venturini.
Tanto o religioso quanto a atleta disseram que vão tomar a vacina, mas mantiveram suas posições contrárias à vacina. Imediatamente, o jornalismo assume que isso é um absurdo, desinformação e os ataca ou recomenda que essas declarações sejam ignoradas e não reproduzidas. Eu também já padeci disso, achar que porque era jornalista e tinha estudado um monte de coisas, entendia de algo que não havia estudado: comunicação para mudança de comportamento.
Fernanda Venturini disse que não confia na vacina, mas vai tomar porque quer poder viajar de novo. Valdemiro Santiago, entrevistado no enterro do próprio irmão que morreu de Covid, disse que não acredita na vacina, acredita mais em Deus, mas vai tomar porque é obediente.
Uma visão arrogante e paternalista temeria que pessoas já convencidas a vacinar começassem a titubear devido a essas declarações. Com toda sinceridade, que adulto convencido a vacinar vai mudar de ideia porque ouviu um religioso ou uma jogadora de vôlei? Os convencidos são a maioria, ouviram os especialistas e estão acostumados com esse processo, resolveram prosseguir com aquilo que os deixa seguros mesmo nessa situação inédita.
Argumentos e fatos não são suficientes para convencer alguém que ainda está contra vacina ou escolhendo marca. Não são processos racionais e não serão revertidos racionalmente. Algumas alternativas são argumentos emocionais de pessoas muito amadas ou a influência de um líder que a pessoa siga que tenha mudado de ideia e agora recomende vacina. Se houver uma saída honrosa para mudar o posicionamento, melhor ainda.
Geralmente é o Poder Público quem trata disso, com uma gestão mais especializada junto a líderes de grupos resistentes a vacinação. Não é raro que resolvam apoiar a causa, mas isso jamais acontecerá pela ridicularização ou cobrança. É preciso compreender os valores desses líderes e mostrar, de acordo com o critério moral deles, de que forma saem perdendo sem a vacina e ganham com a vacinação.
Como isso funciona na prática? Conto um caso pitoresco. Muitas famílias que recorriam a curandeiros tradicionais em uma província começaram a rejeitar vacinas, o que não era padrão. Eles haviam começado a dizer que as vacinas faziam mal, ninguém entendia. Tentou-se sem sucesso convencer a população a não ir mais a curandeiros, procurar o hospital. Até o diretor do hospital ia a curandeiro porque a mãe dele mandava, era uma tradição cultural.
Tentar fazer com que a clientela do curandeiro passasse a acreditar no médico era tarefa impossível. Mas e se o curandeiro recomendasse o médico? Foi a solução. Devido a várias brigas entre médicos e curandeiros, eles resolveram rivalizar porque sentiam-se diminuídos. Foi feito um treinamento com os dois grupos. Curandeiros aprenderam a identificar casos de emergência para levar a um médico imediatamente. É do interesse deles salvar todos os pacientes, são muito ligados à comunidade. Médicos foram orientados a reconhecer como emergência os casos assim classificados pelos curandeiros da região já treinados para isso.
Feita a paz entre médicos e curandeiros, a clientela deles passou a se vacinar. Qual argumento foi usado? Autoridade. Os curandeiros, que têm confiança e tradição cultural, passaram a dizer que agora a vacina estava boa. Alguns inclusive levavam famílias aos postos ou acompanhavam vacinadores. Não importa a razão pela qual uma pessoa que foi negacionista vacine, importa que vacine.
Há grupos da sociedade que não acreditam na vacina e ponto. Nessa altura do campeonato não tem mais argumento científico ou racional que faça a pessoa mudar de ideia. Mas muitos sentem querer aquela sensação de proteção. Várias pessoas relatam ter familiares que ficaram meses xingando a vacina e foram lá se vacinar sem problemas quando chegou o dia.
Nos últimos dias, ajudei vários alunos e apoiadores a convencer familiares a se vacinar. É preciso convencer pelo coração e dar uma saída honrosa, de acolhimento àquele medo que a pessoa teve. Um filho que já havia brigado com o pai tentou mandar a esposa, a nora mais querida, para convencer. Nem precisou convencer, com ela ele vacinava. Uma família desesperada com a avó idosa e muito religiosa havia desistido, mas o pastor dela se ofereceu para conversar. Vacinou na hora. Alguém me contou de um rapazinho adolescente que foi com a avó ao posto de saúde e ajoelhou-se diante de todos implorando para que ela vacinasse. A avó resmungou que achava a vacina uma palhaçada, mas faz tudo pelo neto. Vacinou.
Os argumentos do jornalismo não foram suficientes para convencer populações anti-vacina a se vacinar. Por que não tentar que eles ouçam Fernanda Venturini e Valdemiro Santiago? Afinal, a conclusão é que precisa tomar a vacina. Não é função do jornalismo, repito, é do Poder Público. Mas trata-se de uma oportunidade gigantesca para aproximar-se do público que sente-se abandonado pelos jornalistas. Há a escolha de priorizar o que melhora a vacinação ou o julgamento moral, cada um faz a sua.
A forma de estruturar o noticiário prioriza o julgamento moral daqueles que não pensam como os jornalistas. O foco é mostrar o absurdo de justificar vacinação com viagem ou dizer que confia mais em Deus do que na vacina e vacinar. É um direito e uma escolha. Há, no entanto, outro foco, que prioriza a vacinação. Até quem desconfia da eficácia vacina tem razões para se vacinar: poder viajar de novo e cumprir o princípio cristão de obedecer as autoridades.
As pessoas ouvem os líderes com quem se identificam. O apóstolo Valdemiro Santiago é uma liderança que impacta dezenas de milhares de pessoas. Não importa se ele errou ou acertou, se é bom ou ruim, ele convence pessoas que ninguém mais convence. Se ele falar que agora é o momento de vacinar e não tem que escolher vacina, tem de entregar na mão de Deus, muita gente irá. Isso é o que importa.
Fernanda Venturini tem um público que a respeita e a tem como símbolo de glamour. Atletas são frequentemente usados para vender marcas associadas a saúde, ela pode convencer um público refratário a diversos outros tipos de argumentação. Não acreditar na vacina mas tomar também significa acreditar que não faz mal. Esse é um ponto que poderia ter sido priorizado. O outro é a ideia de elite, a mesma de grife. As pessoas que viajam têm cartão de vacinação, quem não tem é ralé. Sei que é cruel e classista mas, se um tomar a vacina por isso, já fico contente.
O Brasil é exemplo internacional em campanhas de vacinação, mas a de agora é absolutamente inédita para os nossos profissionais. Não tem nem campanha e falta vacina. Some-se a isso o tanto de gente que enlouqueceu com a pandemia em si, que é algo inédito na história. Tem ainda a entrada na convivência digital, regida por algoritmos que desconhecemos e nos levam à polarização em todos os assuntos. É uma oportunidade única para a comunicação tradicional mostrar sua importância.
Volto ao "The Image", do Daniel Boorstin, que em 1962 cunhou o conceito de pseudofatos. São temas que viram notícias por circunstâncias da vivência individual dos jornalistas ou do mercado da comunicação, não porque sejam informações que interessam ao público. O exemplo que ele dava naquela época eram as entrevistas coletivas à empresa, uma nova moda. Eram sempre noticiadas porque já havia empenhado uma equipe naquilo e precisava preencher o jornal.
A comunicação tradicional e o jornalismo, que têm nos seus pontos fortes a capacidade de apuração de informações de interesse do público, estão rendidos a pseudofatos em toda a pandemia. Quase toda a cobertura é dedicada a jornalismo declaratório (o que alguém disse ou publicou na rede social), rebater provocações ou desmentir informações às quais a maioria das pessoas só tem acesso com o desmentido.
Enquanto isso, a maioria das informações de interesse público não chega às pessoas. Deveriam chegar por campanhas oficiais pelas quais já pagamos e que não foram feitas. Poderiam chegar pelo jornalismo, o que seria uma oportunidade muito interessante de reconexão com o público, cada vez mais descrente da imprensa tradicional.
Você sabe exatamente como se faz isolamento se você pegar Covid? Tem de ficar trancado num quarto? Pode usar o mesmo banheiro das outras pessoas da família? Outra pessoa pode lavar sua roupa? Pode misturar essa roupa com as outras? E se você passar mal, como faz para levar ao hospital? Pode procurar, são informações cruciais e que não achamos fácil.
Aliás, não achamos fácil nem o mais básico. Informações sobre máscaras e cuidados do dia a dia são difíceis, mal organizadas e desencontradas. Muita gente ainda está deixando o sapato fora de casa e não sabe direito da questão da ventilação. Quem toma qual vacina em qual dia é uma loucura para descobrir porque cada município se organiza de um jeito.
Em momentos de caos, as pessoas procuram segurança e serenidade. Aí é que depositarão sua confiança. Vão obviamente gastar muito tempo com brigas e polarizações porque precisam colocar para fora a raiva diante de toda essa loucura. A confiança e a credibilidade nunca estacionam na briga, estacionam no acolhimento. A opção por criticar justificativas de vacinação em vez de contribuir para vacinar é uma vitória do curtíssimo prazo. A batalha é vencida, não a guerra.
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