No ocidente, a transexualidade é uma questão sequestrada por narrativas ideológicas progressistas e uma pauta relativamente nova, associada a espírito de vanguarda. Há 20 anos, a capital mundial das cirurgias de reversão sexual era Teerã, no Irã. Na terra dos aiatolás, a transexualidade é uma questão sequestrada por narrativas ideológicas islâmicas.
Como é possível que uma questão científica seja debatida como sinônimo de duas ideologias que parecem opostas uma à outra? Simples: ideologias deixam as pessoas cegas aos fatos. (Recomendo o artigo interessantíssimo do Tiago Cordeiro aqui na Gazeta do Povo.)
A transformação da transexualidade em militância e narrativa no ocidente tem como efeito principal negar direitos e calar mulheres. Nem mulheres ricas, famosas e poderosas conseguem escapar da armadilha. Ao reclamar de ser maltratada, diminuída, subestimada ou humilhada, a acusação em massa de transfobia é a arma perfeita para calar uma mulher. O exemplo mais recente é o da escritora J. K. Rowling, massacrada ao reclamar de um artigo que substitui a palavra "mulheres" por "pessoas que menstruam".
No Irã, a transexualidade foi transformada em uma narrativa religiosa para justificar o massacre do Estado contra homossexuais ao confundir as duas coisas. A sharia, lei religiosa, considera que, se uma pessoa sente atração por pessoas do mesmo sexo, então automaticamente é transexual. Caso essa pessoa se recuse a entender dessa forma, pode ser condenada à pena de morte.
O que há em comum entre as duas narrativas? A negação da ciência e a exigência de que um grupo específico, mulheres ou homossexuais, se submeta ao autoritarismo de outro para não ser aniquilado. E, claro, tudo sob a óptica do monopólio da virtude.
Como o Irã começou com essa história de transexualidade obrigatória? Na verdade, começa com um ato nobre, de respeito humano por uma pessoa que tinha contatos de alto nível entre os aiatolás, Maryam Khatoon Molkara.
Ela nasceu com o sexo masculino, mas passou a se vestir como mulher e se identificar como mulher. Tornou-se uma estrela da televisão iraniana, onde era apresentadora. Só que ela era uma pessoa religiosa e vivia um conflito. Desde 1975, trocava correspondências com o Aiatolá Khomeini pedindo conselhos sobre o que fazer. Chegou a visitá-lo no exílio em Paris em 1978 para falar do assunto. Só que, quando ele chegou ao poder, em 1979, na Revolução Islâmica, foi implacável.
Maryam Khatoon Molkara perdeu o emprego na televisão e foi internada à força numa clínica psiquiátrica onde recebia injeções de hormônio masculino. Mesmo nessa situação, conseguiu manter os contatos com a alta cúpula política, foi liberada e conseguiu outro encontro com o Aiatolá Khomeini. Compareceu usando um terno, foi espancada pelos seguranças e entrou ensanguentada para conversar. Conseguiu o que parecia impossível: uma fatwa, lei religiosa, que passou a fazer parte da sharia, reconhecendo a existência da transexualidade.
De uns anos para cá, os aiatolás resolveram dizer que o número de transexuais é muito maior do que as pessoas imaginavam e a ciência diz. Alguns grupos protestaram e alegaram que é uma narrativa ideológica que muda vidas de uma forma irreversível. Mas, obviamente, os aiatolás só querem o melhor para o povo e os homossexuais são contra o islã.
A política iraniana passou por muitas turbulências desde a ascendência vigorosa do aiatolá Khomeini ao poder. Num determinado momento, a fatwa feita para dar dignidade a uma estrela nacional de televisão passou a ser a arma perfeita para a narrativa de que no Irã não há homossexuais, como chegou a afirmar publicamente o ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad. Ocorre que essa política está sendo levada adiante.
O Irã pune com pena de morte a homossexualidade masculina ou feminina, mas agora resolveu criar uma nova narrativa: homossexualidade é uma doença que deve ser tratada. Não tem nenhuma base científica, é uma narrativa parecida com aquela de que todos os que se declaram transexuais são transexuais.
Agora, os aiatolás iranianos afirmam que, se um homem gosta de homens é porque nasceu no corpo errado. Se uma mulher gosta de mulheres, é porque nasceu no corpo errado. Então, na lógica do governo iraniano, basta fazer uma cirurgia mudando o corpo que você deixa tudo em ordem.
Aos homossexuais é oferecida a alternativa de se submeter a uma cirurgia complicadíssima que a imensa maioria não deseja de forma alguma ou a pena de morte. Muitos se submetem, o que é noticiado pela imprensa internacional há anos, mas negado pelo governo iraniano. O governo subsidia o pagamento das cirurgias e troca os documentos, mas não há nenhum suporte psicológico depois. Quem ama narrativas não se importa com seres humanos.
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