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lázaro barbosa
Lázaro Barbosa foi capturado e morto na manhã de hoje em operação da polícia de Goiás.| Foto: Divulgação/Polícia Civil-DF

Alguns momentos são decisivos para a conexão entre o público e a imprensa. O desfecho do caso Lázaro é um deles. Vivemos uma situação de caos completo, uma pandemia cuja gravidade é inédita na história da humanidade, polarização política, luto, perdas financeiras, angústias e incertezas. A história do assassino Lázaro Barbosa à solta e da busca cinematográfica foi mais um elemento para abalar a saúde mental do país inteiro.

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Na manhã de hoje, o governador Ronaldo Caiado anuncia o fim da perseguição com a frase "aqui não é Disneylândia de bandido". Depois, soube-se que Lázaro está morto. Obviamente o povo comemorou, goste você ou não, a maioria das pessoas comemora morte de bandido. Daí, como polarização e ficar bem na própria bolha são mais importantes que o vínculo com o público, começa a defesa de Lázaro entre influencers e jornalistas brasileiros. Se cobrir vira circo, se cercar vira hospício.

É impressionante ver a pujança do negacionismo e das posturas anticientíficas justificadas por um bem maior. Entre formadores de opinião, qualquer crença maluca, fantasia ou clichê passa à categoria de realidade se for por boa intenção. A ideia de falar nesse momento sobre assassinato deliberado é terraplanismo do bem ou falta de vergonha na cara.

Estamos viciados num fluxo constante de informações e conclusões, mas não tem como acelerar o tempo dos fatos. Neste momento, qualquer afirmação sobre o ocorrido é fantasia, terraplanismo ou má-fé. Apenas quem estava ali sabe o que aconteceu, nós não. Ainda não há como saber, só como imaginar e optar por acreditar ou não em declarações de autoridades.

A cultura policial brasileira é violenta? Sim. É possível que, depois da novela toda de Lázaro, algum policial tenha atirado para matar deliberadamente? Sim. E também é possível que ele tenha aberto fogo contra os policiais. Estamos falando de uma pessoa capaz de insanidades que escapam à nossa capacidade de raciocínio. Vi pessoas afirmando com certeza o que ocorreu ali. É puro delírio, ainda não temos como saber.

Políticos oportunistas obviamente passarão o dia todo colhendo os frutos da expressão anticristã "CPF cancelado". Muita gente aproveitará essa oportunidade de catarse das inúmeras dores e lutos que temos vivido. Dizer "CPF cancelado" para um assassino cruel, apesar de ser anticristão e ajudar a apodrecer a alma, parece muito libertador num primeiro momento. Vivemos a era da permissividade e indulgência, é difícil resistir às tentações da lama moral.

Enquanto houver otário, malandro não morre de fome. Se eu ainda trabalhasse com políticos, provavelmente orientaria a equipe a entrar na onda do "CPF cancelado" se ele não fosse cristão. É garantia de ir parar no noticiário, já que tudo quanto é jornalista vai repostar com muita indignação e, se o político tiver sorte mesmo, vai sair até matéria comentando que ele fez um post.

Vivemos a apoteose da superficialidade, essas coisas funcionam. Quando os jornalistas ficarem indignados com o político porque comemorou um assassinato, o público sente-se traído. Afinal, ele também comemorou efusivamente. Não sei, na verdade, se as pessoas realmente comemoram o assassinato em si ou o fim da incerteza, sei que comemoram. Cria-se, por meio da catarse coletiva, um vínculo entre o político e o público, de forma direta. Uma máquina de populismo.

Um dos principais desafios da imprensa brasileira é o combate à desinformação. No episódio Lázaro vemos como as decisões emocionais no cotidiano nos colocam na mão oposta. Os políticos que dizem "CPF cancelado" sustentam a versão fantasiosa de que foi um assassinato deliberado, o ideal de justiçamento que o público deles pede. Imediatamente, os jornalistas assumem essa versão e fazem o julgamento de valor oposto, de que é inaceitável. Tanto faz, é desinformação. Não se sabe ainda o que ocorreu, imagina-se.

A investigação do caso fica obviamente prejudicada com a morte de Lázaro. Morto não fala, não delata, não entrega documento. Há cúmplices dele presos. Essa história toda, fosse ficção, a gente diria que é exagero. Obviamente o melhor para a investigação é conseguir capturar o criminoso vivo, mas também é desinformação dizer à população que a prisão seria a forma mais eficiente de punição.

Eu discordo pessoalmente das soluções mais populares para endurecimento do sistema penal - como pena de morte, prisão em segunda instância e assemelhados - pela ineficiência na prática. São medidas demagógicas como a Lei de Crimes Hediondos e a nova Lei de Estupro. Mas a população tem todos os motivos do universo para reclamar da leniência do nosso sistema penal.

A necessidade de fazer oposição sistemática às ações da polícia e aos políticos que usam a expressão "CPF cancelado" levará a outra desinformação, a de que temos leis eficientes para casos como o de Lázaro. Não temos. Pedrinho Matador já anda dando entrevistas em podcasts por aí. No início dos anos 2000, fiz uma entrevista com ele. Dizia pedir para não ser solto nas audiências de custódia porque sabe que tem potencial para matar de novo. Está aí, solto. Todos lembramos o desfecho inacreditável do caso do Bandido da Luz Vermelha.

Nossas leis não preveem como lidar com casos que são exceções absolutas. Numericamente, os criminosos cinematográficos não são importantes. No entanto, eles têm um impacto grande sobre a forma como o cidadão avalia o sistema de Justiça. A avaliação é tão ruim que muita gente já acha melhor alguém decidir, à revelia da lei, dar um tiro no sujeito e acabar com a história.

Vi, nas redes sociais, muitos formadores de opinião argumentando que a população não enxerga como essa lógica da vingança termina contra ela própria. Se é lícito, neste caso, desobedecer a lei para acabar com a história na bala, por que não seria em outro? Vai que o cidadão que hoje posta "CPF cancelado" entra na fila do cancelamento. Pior que é verdade.

Da mesma forma é verdade que a reação emocional de jornalistas também não enxerga como toda a imprensa tradicional sai prejudicada nestes momentos. O bom jornalismo nunca foi tão necessário quanto nesses tempos em que a tecnologia turbina a desinformação. Engatar em ondas de desinformação para opor a desinformação de políticos ou influencers coloca o jornalismo em que lugar na visão do público?

Cheguei a ver argumentos do tipo "pela forma como carregaram o corpo, conclui-se que os policiais queriam matar". É a chave de uma mensagem que circula por grupos de Whatsapp dizendo que não devemos comemorar assassinatos cometidos pela polícia. Eu comemorei a ciência finalmente ter reconhecido o valor da intuição e das práticas divinatórias. Ou é isso ou telepatia para adivinhar o ocorrido com base na forma como se carregou o cadáver.

E aí temos mais uma vez a apoteose da superficialidade. Pergunte a quem trabalha na área de segurança pública e a quem já vivenciou essas situações se há algo de irregular na condução do corpo. Não há. É chocante para quem tem a bênção de não estar acostumado. Concluir a partir do choque com uma cena dessas é direito, o direito de fantasiar com base em sentimentos fortes.

As redes sociais tornaram todos nós - público, jornalistas e influenciadores - viciados num fluxo frenético de informações e opiniões. O caso Lázaro é daqueles em que a realidade se impõe. Não é possível ter opinião porque ainda não sabemos os fatos. Tudo o que se está falando é sensação ou fantasia. Há momentos em que simplesmente não sabemos, o mundo sempre foi assim e não vai colapsar por isso.

Ah, mas você está feliz ou triste com a morte do Lázaro? Tem alguma coisa envolvendo a vida desse homem que não seja uma tragédia completa e um rastro de destruição? É um alívio que pare, mas eu não consigo deixar de pensar na dor que ele causou a um número enorme de pessoas, nas vidas que ele marcou para sempre com a crueldade. Feliz eu ficaria se ele jamais tivesse feito isso. Não dá para ficar feliz com nada que venha dele.

Vi outro dia uma entrevista da mãe do Lázaro. Eu sou mãe, chorei junto com ela. A gente sempre pensa que o pior pesadelo na vida de uma mãe é perder um filho, mas agora eu fiquei em dúvida. Imagina cuidar desde pequeno e depois aquele filho virar uma usina de desgraça e você não ter o que fazer. Se alguém causa uma dor dessas na própria mãe, eu avalio o que não faz com desconhecidos. E tinha comparsas e amigos. São coisas que a gente sabe que existem, mas não entende. Eu não entendo.

Vítimas de crimes têm um longo caminho para superar o trauma e a sensação de impotência e injustiça. Muitas acabam tendo toda uma vida roubada pelo criminoso, passam a definir a própria identidade pelo momento do crime. É como se o mal continuasse agindo mesmo depois de cessar. Eu desejo sinceramente que todas as vítimas, familiares e amigos consigam superar o Lázaro.

Neste momento, não temos como saber o que ocorreu. Confesso que, depois de viver tantos lutos na pandemia, não tenho mais paciência com quem não valoriza a vida. Sinceramente, quando soube da operação policial, pensei nas vítimas. Bom ou ruim, foi o desfecho para elas, suas famílias e amigos. Que consigam prosseguir.

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