A mistura entre pandemia, desinformação e polarização deixa um rastro de destruição por onde passa, as consequências são apenas diferentes a depender do país. Entre os grandes beneficiados por essa confusão toda estão os chefões do crime organizado cibernético, que tiveram um crescimento muito rápido, seguindo a tendência de digitalização do mundo institucionalizado.
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Já existem impérios bilionários em indústrias criminosas que a maioria nem imagina serem possíveis. O melhor exemplo é o Ramsomware, a prática de "sequestrar" dados de empresas e instituições e exigir resgate em bitcoin para devolver. Atualmente, o FBI já mapeou que o mercado mundial é dominado por 12 grandes gangues que faturaram US$ 28 bilhões em 2020.
Eu achava que a vacina contra a Covid era inigualável na rapidez de desenvolvimento de novas soluções. Daí soube do crime organizado. Os cartéis de Ramsomware já se organizam num sistema parecido com startups. Os grandes barões do crime agora investem nos projetos de criminosos iniciantes, usando ferramentas como Telegram.
A empresa internacional de cybersegurança Lifars identificou esse tipo de operação, segundo reportagem do site especializado em temas corporativos Fast Company. Para entrar nos grupos de Telegram, os criminosos iniciantes precisam comprovar seus "talentos" aos administradores. Então, recebem investimento financeiro para ter servidores, infraestrutura de pagamento e de criptografia para novos golpes.
Na RSA Conference 2021, uma das maiores conferências de cybersegurança do mundo, um dos temas mais discutidos foi a instituição de "hackatons" do crime, principalmente em fóruns de língua russa. Hackatons são desafios lançados para novos programadores, que podem ganhar prêmios ou empregos, algo muito comum no universo de startups legalizadas. Agora, os criminosos fazem igual. Lançam prêmios e oferecem parcerias a quem conseguir, por exemplo, corromper um sistema de criptomoedas.
A politização da pandemia e a radicalização de grupos políticos via internet criam ótimas oportunidades de mercado para os cybercriminosos. Casos ocorridos na Rússia e na Holanda mostram exatamente como isso acontece. Quando políticos apostam no divisionismo, muitas pessoas ficam confusas e surgem novas necessidades. Por exemplo: passaporte falso de vacinado e falso teste negativado da Covid.
Se aqui e nos Estados Unidos, democracias com valores judaico-cristãos e cultura ocidental, a história da vacina virou uma loucura no meio da briga política, avalie na Rússia. Os russos são os mais experientes propagandistas políticos, líderes nas técnicas de manipulação digital e este ano aumentaram em 40% a verba de propaganda oficial do governo Putin.
Trata-se de um método tão eficiente que influenciou até gente bem informada e poderosa aqui no Brasil. Lembra daquele episódio insólito entre a Anvisa e o fabricante da vacina Sputnik? Era um processo normal de aprovação, que tem fases e documentos. De repente, foi iniciado o ataque online à Anvisa, encampado por políticos e influencers brasileiros que falavam como se ainda existisse a União Soviética. "Eu confio na Rússia", bradavam. Só que os russos não confiam.
Pessoas que vivem em democracias ocidentais tendem a dividir sua visão política entre o pólo que defendem e o oposto. Isso é um prato cheio para a máquina de propaganda russa, que pouco se importa com o que dizem os ocidentais, pretende é impor sua forma de agir. Grandes estrategistas políticos digitais, Steve Bannon e Alexandr Dugin são amigos e aliados, mas vistos como opostos no ocidente. Ações pautadas pelos dois geraram confusão com relação a vacinas.
Na Rússia, a situação é calamitosa, muito além do que a gente pode imaginar por aqui. Democracias têm instituições em que a maioria das pessoas confiam, como a Anvisa, por exemplo. Na Rússia, ninguém sabe mais em quem confiar. No começo, o governo minimizou a pandemia. Depois, admitiu que era um problema e fez uma vacina própria. Havia 3 imunizantes no país e boatos sobre os 3. Depois, houve falta da Sputnik, aprovada para uso no exterior e exportada em massa.
Cada acontecimento gera um turbilhão de desinformação nas redes. A população, que já tem o receio legítimo com a doença em si, não sabe mais em quem confiar nem o que fazer. Uma pesquisa do Levada Center, instituto russo de pesquisas, mostrou que 62% da população rejeitam a vacinação. Os médicos seguem a diretriz do governo de recomendar vacina, mas mais da metade não quer se vacinar, segundo levantamento publicado na Lancet.
Países vizinhos começaram a cobrar a Rússia pela vacinação, já que ainda há muitos casos e o país tem vacina. O que o governo resolveu fazer? Criou um cartão que atesta a vacinação e começa a ser exigido em diversas situações. A primeira é entrar em restaurantes, bares e boates depois das 11 da noite. Depois, será exigido que pelo menos 60% dos empregados de cada empresa tenham o cartão. A prefeitura de Moscou criou uma polêmica enorme porque só quer permitir atendimento médico de quem tenha o cartão.
Quando mais o governo da Rússia exige o cartão que atesta a vacinação, mais o mercado criminoso se aprimora nas falsificações. Já não é mais possível nem saber mais quais certificados são verdadeiros ou falsos. Há uma rede que paga médicos e enfermeiros para jogar fora doses de vacina e emitir certificados oficiais em nome de quem os encomenda aos criminosos. Tudo isso é viabilizado pelas quadrilhas do cybercrime, principalmente pelo Telegram.
Segundo apuração do OCCRP (Organized Crime and Corruption Reporting Project), houve uma junção da criminalidade online com a offline. Já existia essa prática de corromper médicos e enfermeiros para atestar oficialmente algo que o governo exige mas o cidadão não cumpriu. Agora, há a facilitação da encomenda, pagamento emissão e entrega pelas vias eletrônicas.
Não há um consenso sobre como solucionar. Se a Rússia deixa de exigir o cartão de vacinação depois de toda a lambança de desinformação promovida até agora, as pessoas vão se vacinar? E se começa a exigir em mais lugares, isso significa que mais gente vai se vacinar ou vai comprar cartões falsos nos esquemas cada vez mais populares?
O cartão falso da vacina é um esquema bem sofisticado, mas começa a surgir outra demanda que os criminosos conseguem suprir mais facilmente: QR code atestando exame negativo da Covid. Trata-se de uma exigência para frequentar restaurantes, bares e festas em diversos países europeus. Muitos jovens descobriram que é só pegar o print do QR code de um amigo. Também há criminosos vendendo os prints online.
Uma festa no final de junho na pequena cidade de Enschede, na Holanda, já gerou centenas de contaminação apesar de ter seguido todo o protocolo exigido pelas autoridades de saúde. Não havia erro no protocolo, as pessoas é que aprenderam a trapacear. Dos 650 participantes, 165 já estão com diagnóstico confirmado de coronavírus e podem ter tido contato com mais de 3 mil outras pessoas.
A festa "Covid-free" teve autorização do departamento de saúde local desde que exigisse certificado de vacinação completa ou atestado de exame negativo da Covid. Segundo apuração do Daily Beast, muitos frequentadores já admitiram que burlaram mesmo, estavam doidos para dançar e pegaram certificados falsos. Talvez as autoridades tenham minimizado a vontade de sair para dançar do jovem.
Outro ponto é a falta de regras claras para os documentos verdadeiros. Não havia um prazo certo para os certificados de vacina nem de exames negativos. Muitos dos documentos apresentados não garantiam nada. Por exemplo, havia gente com duas doses da vacina sem ter ainda passado tempo suficiente para estar imunizada. Também havia quem obteve resultado negativo num exame da Covid dias antes e pode ter se contaminado no intervalo entre a coleta e a festa.
Aqui ainda estamos engatinhando com essa discussão sobre Covid e atestados. Não fizemos a testagem gratuita em massa, como houve em alguns países, então a questão do teste nem chegou ainda ao debate político. Fala-se no passaporte da vacina porque tornou-se um tema internacional. Nosso debate tem sido sobre liberdades individuais, não sobre cybercrime. Ainda não chegamos nisso, mas chegaremos.
Toda a economia acelerou sua entrada no cyberespaço na pandemia. A "economia do crime" fez o mesmo movimento. Já percebemos no nosso círculo de amizades o aumento de golpes de whatsapp, nas plataformas de compras, mensagens simulando aplicativos de bancos. É um aumento de práticas criminosas que já existiam no Brasil, ficaram mais sofisticadas e frequentes.
A questão é que criminoso é criativo. Surgirão outras práticas e a importação de golpes também é um mercado em ascensão. Agências de inteligência no mundo todo já estão investindo em desmantelar essas redes, mas é um processo muito novo. Como se não bastasse a pandemia, tem mais essa. Precisamos nos conscientizar sobre esse novo espaço que o crime parece já ter conquistado.
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