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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Julgar os outros, a nova forma de militância

Atividades presenciais serão retomadas em 15 de junho (Foto: CNJ)

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Se militantes e militares acabam, na prática, em lados opostos, a origem da palavra é a mesma. Militante é aquele que atua como militar mas em nome de uma causa, não em nome de um povo nem de um Estado. A estrutura de debate público colocada pelas redes sociais facilita que se confunda com militância algo bem diferente da luta por uma causa, o ato de dar a impressão de que luta para satisfazer o ego. Não é novidade, sempre existiu. Mas, como muita coisa no mundo, ficou bem mais fácil com o avanço tecnológico.

A fila para falar mal sempre será mais longa que a fila para lavar a louça. Imagina se fosse possível, ainda que apenas por um tempo, fazer com que muita gente acreditasse que falar mal dos outros limpa a louça. Tentador e está acontecendo diante dos nossos olhos.

Ultimamente, muitas pessoas têm colocado convicções políticas que mal compreendem acima dos próprios valores. Quando se cita algo de ruim ou ridículo, os de direita dizem ser característica da esquerda e os de esquerda dizem ser característica da esquerda. Diante de uma afirmação com essa, gente da esquerda e da direita corre para retrucar com o emblemático "não generalize". Enfim, o caso do julgar a vida alheia como forma de militância é democrático, usado por todos os espectros políticos porque o ser humano gosta de conforto e praticidade.

O último exemplo é a discussão nas redes sociais a respeito da vida do economista Mansueto Almeida, que deixou o governo Jair Bolsonaro. Todos podem ter opinião sobre ele e podem estar certos ou errados, não é este o problema. O caso é que tem se confundido com militância democrática apontar o economista como alguém que errou por aceitar um cargo no governo. Isso não é militância, é julgamento.

Caso internacional que eu trouxe aqui outro dia, da criadora de Harry Potter, J. K. Rowling, que passou a ser apontada como transfóbica por discordar dos que passaram a chamar as mulheres de "pessoas que menstruam". Esqueça todo o absurdo da situação (sei que é quase impossível) e foque em um ponto: julgar a escritora passou a ser um ato confundido com militância trans.

Outro caso ocorrido neste final de semana, o do idoso que, ao ver um memorial em homenagem às vítimas do coronavírus, imaginou que teria motivação política e, por isso, decidiu destruir o memorial. Mais uma situação absurda que é originada pela confusão entre militância e julgar os outros. O idoso imagina que faz militância política enquanto sua atuação é apenas xingar outras pessoas de comunistas, mandar para a Venezuela e derrubar uma homenagem que fizeram. Isso não é militância, é julgamento.

Há ainda o caso, que é muito mais complicado, do tal acampamento armado dos "300 pelo Brasil" que, ironicamente, teve o mesmo destino dos 300 de Esparta: a derrota. São pessoas que afirmam fazer uma militância política e realmente fazem sacrifícios pessoais em nome disso, não há dúvidas. Mas qual é a militância mesmo? Julgar ministros do Supremo Tribunal Federal. Isso é julgamento, não militância.

Ocorre que apontar os erros dos outros nos dá a sensação de satisfação. "Olha como eu sou uma pessoa de atitude, eu postei aqui na rede social que fulano não vale nada, estou agindo, estou fazendo a minha parte". Daí a gente pode ligar a televisão para se distrair e até, se bobear, fazer exatamente as mesmas coisas que o fulano faz, sem culpa nenhuma.

A condição humana é a da falha, do erro, de não conseguir fazer o bem que se quer e, às vezes, acabar fazendo o mal que não se quer. Uma técnica ancestral para sinalizar virtude, ainda que falsamente, é apontar os defeitos de alguém, unir uma multidão para apontar defeitos ou jogar pedras. Já pensou se só aqueles que não têm defeitos vivessem de atirar pedras?

Sem o contato pessoal, o olho no olho e com a facilidade do anonimato que, assim como o álcool e outras drogas, estimula a valentia, julgar os outros e não arcar com as consequências, é tentador, estimulante e prazeroso. Há quem sinta prazer na sensação de esmagar aquele de quem não gosta ou que inveja. Outros sentem prazer no poder. O prazer humano nem sempre vem da bondade.

Que cada um cuide da própria consciência, só não se pode fingir que isso é militância porque não é. É indigno tentar glorificar os próprios vícios e quem não tem disciplina para defender a própria dignidade mente quando diz defender uma ideia. Não há militância sem o exercício da igualdade, sem respeitar o outro como igual, o que é impossível num universo que permite julgamento.

Autoindulgência é uma tentação sorrateira, fortalecida na era da glamurização da inutilidade. Julgamentos de pessoas pelas redes sociais e personalidades públicas que se dedicam a eles não têm rigorosamente nenhuma utilidade na construção da cidadania, embora possam obter muito prazer pessoal com essas práticas. Cabe à sociedade decidir quando e se vai abrir os olhos.

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