A ampla popularização das redes sociais, principalmente desde meados de 2010, fez com que o século XXI repetisse um fenômeno do século anterior, o hippie de boutique. A contracultura e o movimento hippie foram, na década de 1960, um marco para a juventude. Existia, porém, uma juventude ou até uma velhitude com um dilema seriíssimo: como aderir a esse movimento e ficar na moda sem perder a mesada de papai? Surgiu assim o hippie de boutique.
É claro que esse pessoal jamais quir ser hippie, aliás, muito pelo contrário, né? Paz e amor até vá lá, mas abrir mão do conforto do lar burguês para viver no meio do mato à la Baby Consuelo tendo que fazer sacrifícios do nível "trabalhos domésticos" jamais. O drama de quem nunca fez esforço e não quer nem pensar em fazer é sempre o mesmo, como ficar com o bônus sem ter de arcar com o ônus. E daí se tem a grande ideia de aderir ao look hippie, desagradar papai (pero no mucho), ganhar fama de rebelde entre os amigos e continuar tudo como sempre foi.
Em cada época algumas coisas são mais fáceis e outras mais difíceis. Naquela década de 1960, era difícil fazer a pesquisa e montar um look e atitude de hippie se você vivia na fina flor de Ipanema e dos Jardins. Por outro lado, uma vez montada, a fantasia durava mais porque o Justo Veríssimo interior da criaturinha hippie de boutique não tinha tantas oportunidades de se mostrar.
Agora, vivemos precisamente a dinâmica oposta com os justiceiros sociais de teclado. É muito fácil e rápido simular ser essa pessoa do bem, que luta pela igualdade, a favor do proletariado, contra a ditadura do patriarcado e por direitos iguais. Só que basta o primeiro plebeu não ser como a criatura imaginou para ela liberar loucamente seu Justo Veríssimo interior. Acaba de acontecer no clássico embate Hollywood x Trump.
Há quem imagine que estamos diante de um embate histórico de duas visões de mundo opostas. Não estamos. São pessoas que vivem exatamente da mesma forma, pensam igual, frequentam os mesmos lugares, compram as mesmas coisas, têm os mesmos amigos, pensam as mesmas coisas de quem está fora da bolha mas disputam poder. Um quer dominar o outro dentro da própria casta, mas ninguém pensa em sair dela, em um mundo onde ela não exista ou perca privilégios.
Para os muito jovens, pode colar essa história de que Donald Trump vive aos trancos e barrancos com a mídia e os artistas. Para quem é jovem há muitíssimo tempo, como eu, a parceria é parte das nossas vidas. O atual presidente norte-americano fez fama graças às aparições constantes em tudo quanto era programa de televisão e até às mais diversas pontas em filmes de Hollywood. Era figurinha carimbada nesse meio até que virou moda, após 2010, esse tipo de polarização que vivemos.
A vítima do último sincericídio foi a premiadíssima atriz Bette Midler que, coincidentemente, brilha na série "The Politician", da Netflix. Mirando em Trump, ela acertou em Melania e liberou o Justo Veríssimo que habita dentro de si. Já se desculpou.
A atriz tem mais de 50 anos de carreira, foi indicada a 2 Oscars, ganhou 4 Globos de Ouro e um Tony. É uma mulher das artes, da cultura, conhece o mundo todo, obviamente classifica o presidente dos Estados Unidos como racista e abomina comportamentos e ideias como a do tal muro e o desrespeito a pessoas de outras nacionalidades. Temos muitas dessas pessoas super civilizadas que fazem esse tipo de discurso por aqui também.
Mas, no meio do caminho tinha uma Melania Trump. E ela cometeu os crimes de: ser mulher, estrangeira, não ter nascido em família influente e, ainda por cima, não ser exatamente como querem essas pessoas super do bem que abominam quem é racista e subestima os outros. Aí, a atriz de Hollywood não conseguiu segurar o Justo Veríssimo: soltou uma saraivada de tuítes racistas contra Melania.
A história começa com a atriz acusando Melania Trump de racismo, republicando um vídeo dizendo que a atual primeira dama "não é nenhuma Jackie Onassis, não importa o quanto tentem". Era o começo da explosão.
Aí, começaram a passar em diversas mídias a convenção do Partido Republicano na qual a primeira-dama fez um discurso. A atriz, que estava assistindo, resolveu fazer comentários em tempo real no twitter. Foi uma aula de racismo.
Imagine que Donald Trump dissesse algo parecido de alguma personalidade hispânica ligada ao Partido Democrata. Como reagiriam os mesmos personagens que circulam em Hollywood? Como reagiria a própria atriz, que começou essa história indignada com o racismo de Melania Trump? Ela pediu desculpas, mas só de leve.
As redes sociais facilitam a vida de quem quer fingir ter algumas qualidades ou vencer alguns defeitos: a militância de boutique. A pessoa finge militar, por exemplo, pelos pobres. Ela usa o vocabulário, os memes e as postagens corretas nas redes. Mas, enquanto isso, o Justo Veríssimo continua ali, vivinho e escondido, esperando apenas o primeiro pobre desobediente para botar as manguinhas de fora.
Já vi muitas pessoas se perguntarem como a sociedade tolera discursos belicosos e descontrolados como os de Donald Trump e vários dos seus seguidores. Ocorre o mesmo aqui no Brasil: de onde surge a tolerância por um nível tão baixo no ambiente público?
Começamos primeiro tolerando os que discursam como virtuosos e agem com vilania, eles continuam em atividade e apontando o dedo para o que consideram inaceitável nos outros. Além de se tornar normal, esse comportamento é irritante. Melhor lidar com um Trump que todos sabem a que vem do que com um Trump que banca a Madre Teresa de Calcutá.
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