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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Justiceiros Sociais se dizem contra o radicalismo mas produzem radicais

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Dia desses fiz um artigo sobre o assassinato brutal da gamer profissional Sol, de 19 anos, por um gamer frustrado que dizia odiar mulheres. Falei do Gamergate, nos Estados Unidos, episódio famoso de radicalização. No Twitter, um gamer me alertou que faltava parte da história. E ele tinha razão, é preciso contar a história completa.

Virou moda recentemente buscar o pecado original, atividade que consome todo o tempo dos puristas. Dessa forma, não sobra tempo para evoluir nem fazer nada que preste. Tentarei não fazer isso neste artigo, embora a tentação seja muito forte. Meu freio é o medo de entrar no círculo patético que começa no Bolsonaro e termina em Caim.

Explico. Se você apontar qualquer problema do governo Bolsonaro tem ter carteirinha de progressista, será esculachado. Sendo jornalista, aparecerá a bancada do "ah, mas não era uma escolha muito difícil?". Tendo divergências com o PT, dirão que você participou do Golpe de 2016. Assim sucessivamente, com cada um escolhendo o ponto da história em que colocará o marco do pecado original. Eu escolhi botar em Caim porque teve assassinato, mas já fui repreendida por irmãos mais fiéis à história da maçã e da cobra.

A origem do radicalismo é a natureza humana. Diversas características da era da hipercomunicação, principalmente das redes sociais e Big Techs, incentivam essa característica. E vivemos nesse inferno onde todo mundo bate boca e ninguém se escuta. Há duas alternativas. A primeira é ir procurando culpado até chegar em Eva. A outra é entender de onde vem o combustível do radicalismo e parar de regar incêndio com gasolina. É por isso que retomo a relação do Gamergate com os Justiceiros Sociais sob a óptica da "Queixa Social".

Os estudos sobre Queixa Social são a publicação de Helen Pluckrose e James Lindsay que vem imediatamente após o sucesso do livro Cynical Theories no ano passado. Em conjunto com Peter Boghossian, elaboraram um método para separar o que é conhecimento do que é ideologia. A mistura entre os dois tipos de argumentação acabou produzindo, desde os anos 90, uma chuva de conteúdos ideológicos chancelados por universidades como se fossem conhecimento. Os pesquisadores entendem que isso é corromper a pesquisa científica.

Aqui no Brasil, alguns jornalistos metidos a intelectuais descobriram o livro agora. Passarão um ano inteiro falando dele sem ter lido e criando exatamente a narrativa que o livro condena. Muitos de nós, jornalistas, optamos por humanas porque a nota de corte do vestibular era menor. Eu não. Optei pela carreira por razões muito mais nobres, como bater de frente com meu pai que sonhava ter uma fiha advogada. Na verdade, ele sonhava com isso para não ter de me sustentar tantos anos. Apostava que eu morreria de fome caso optasse pelo jornalismo. Não consegui esfregar na cara dele que eu tinha razão porque ele morreu antes que eu acabasse a faculdade, o que me transformou em eterno arrimo de família.

Foi nessa condição que eu conheci o ambiente acadêmico identitário da gloriosa Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. O novo trabalho dos autores de Cynical Theories se propõe a restaurar a capacidade de diálogo e produção de conhecimento. "Uma conversa aberta e de boa fé sobre tópicos de identidade como gênero, raça e sexualidade (e as cátedras relacionadas a eles) é quase impossível e nosso objetivo é reiniciar essas conversas. Esperamos que isso dê às pessoas - especialmente àquelas que acreditam no liberalismo, progresso, modernidade, investigação aberta e justiça social - uma razão clara para olhar para a loucura identitária que vem da esquerda acadêmica e ativista e dizer: 'Não, eu vou não vai junto com isso. Você não fala por mim.'", explicam os pesquisadores.

Muito bom que os autores de Cynical Theories tenham desenvolvido o trabalho para apontar objetivamente como a igreja identitária está esmagando o conhecimento acadêmico. Mas poderiam muito bem ter feito antes para que eu me beneficiasse. Os gamers não tinham tanta pressa, mas acham que poderia ter sido feito antes do Gamergate. A explosão de ódio e destruição vinda do Gamergate parte da frustração com o autoritarismo da igreja identitária. Não era, no entanto, obrigatória.

Não se pode confundir movimentos sociais feministas, contra o racismo e a homofobia com a igreja identitária, que só surge na última década. Pode parecer esquisito porque o tema é o mesmo e a pregação parece ser a mesma, mas não é. A igreja identitária divide o mundo entre privilegiados e oprimidos de acordo com características inatas e incontroláveis, como raça, sexo e orientação sexual. É uma crendice totalmente contrária, por exemplo, à luta de Martin Luther King. Esse trecho do discurso mais famoso dele, "I have a dream", deixa claro que acreditava em converter opressão em liberdade.

A igreja identitária não acredita ser possível converter opressão em liberdade nem na influência do meio ou no livre arbítrio. Há um determinismo total e intransponível vindo da raça, sexo e orientação sexual, que mediaria todas as relações humanas. Não há problema em acreditar nessa lenda, tem gente que acredita até no ET Bilu. O problema é começar a aplicar essa fantasia no ambiente acadêmico como se fosse conhecimento. E já estamos no passo seguinte, o de utilizar essa crendice para justificar injustiças. E tem uma galera que já perdeu completamente o freio moral.

Você consegue imaginar o pastor batista Martin Luther King agredindo um bebê com orgulho porque ele seria um branco privilegiado? Nem Malcom X na fase pré-arrependimento faria uma crueldade dessas. Mas, na teologia da igreja identitária, um bebê pode oprimir um homem feito. Por isso, um militante do Black Lives Matter ajoelhou sobre o pescoço de um bebê, como fazem policiais que mataram homens negros. Outro homem segurava o bebê, que chorava. Creio que essa comparação deixa clara a diferença entre militar por uma causa e ser fiel juramentado da igreja identitária.

A prática de agredir pessoas e justificar com um suposto privilégio decorrente de raça, sexo ou orientação sexual é um grande passatempo para o parque de areia antialérgica. Nenhuma baixaria será castigada. É uma forma genial de colocar naturalmente na mesa uma das justificativas mais canalhas do radicalismo, chamar de defesa o que é ataque. Um homem adulto não está se defendendo do racismo estrutural ao agredir um bebê. É necessário ser um fanático radical para aceitar esse discurso. Ocorre que há muitos desses em pele de cordeiro e a reação a eles tende a ser na mesma medida.

Tememos o desconhecido. A comunidade gamer, desde que surge na segunda porção do último século, é sistematicamente vista com desconfiança e preconceito. Falamos de uma indústria de 1/4 de trilhão de dólares, formada por algumas das mentes mais brilhantes do mundo. Mas, se eu disser a palavra "gamer", a maioria já pensa em alguém que mora no porão da avó. Os games surgem como treinamento comportamental de soldados entre as duas grandes guerras. Depois chegam como diversão ao público comercial. Hoje têm um potencial de educação, treinamento e mudança de comportamento absolutamente incrível. Gamificação é a palavra de ordem em todos os ramos da economia.

Eu sou da época em que nossas mães tinham medo de que games violentos tornassem as pessoas violentas. A gente também jogava ovo no telhado para que não chovesse no dia seguinte. E, claro, jogava videogame escondido das mães. Foi a primeira onda de preconceito. A grande colisão do universo gamer não seria, no entanto, com as mães. Um universo absolutamente amplo e diversificado acabou batendo de frente com a igreja identitária instalada nas universidades e na mídia. Os dois lados hoje têm imensa dificuldade para conter seus radicais.

Gamers se unem pelo interesse em games e ponto final. Se você for na comunidade de um game específico, ela não estará fragmentada entre ideologias ou identidades, estará unida pelo fandom. Esse comportamento não é aceito pela cultura do cancelamento da igreja identitária. Na virada da década, por volta de 2011, começaram a surgir grandes tensões entre personalidades gamers, a mídia de games e a academia que estuda o tema.

O Gamergate começa como uma forma de blindar a comunidade gamer contra as pressões por posicionamento identitário e entrada na cultura do cancelamento. Essas pressões se tornavam reais porque vinham principalmente da mídia que publicava sobre os games e vinha das universidades que passaram a estudar sob a batuta da igreja identitária. Pessoas prejudicadas começaram a se unir para denunciar um movimento de injustiças. Foram feitas várias ações de sucesso, principalmente sobre concorrência desleal. A coisa degringolou quando integrantes relativizaram a dignidade humana e o movimento calou.

No início, o Gamergate conseguiu reparar inúmeras injustiças contra personalidades e desenvolvedores. Teve vitórias particularmente impressionantes no âmbito da concorrência desleal e monopólio. Há 10 anos, os chans onde hoje são planejados até atentados em escolas eram usados para crowdfunding beneficiando mulheres gamers. Foi exatamente quando conseguiu revelar e comprovar um imbroglio envolvendo sexo, favorecimento financeiro e jornalismo de gamers que o Gamergate descambou. Até hoje o movimento não consegue lidar com seus radicais, que se organizam pela internet.

O Gamergate em si é disparado por uma série de injustiças em revisões de games. Não eram feitas por justiça, mas por amizade e relação comercial entre desenvolvedor e a mídia. Isso tem um impacto financeiro gigantesco para os desenvolvedores, já que os iniciantes confiam muito na mídia de games. Houve uma série de casos até que se chegou na tempestade perfeita: uma desenvolvedora que traía o namorado desenvolvedor com um jornalista de games. Coincidentemente, ela tinha reviews com notas altíssimas.

O caso chegou a conhecimento público porque o namorado traído fez a denúncia. Num primeiro momento, a indignação foi com a desonestidade mesmo. Obviamente, a igreja identitária já lançou de antemão a cartada da misoginia. Até então, era mentira. Só que, de tanto chamar, ela veio e saiu completamente de controle. Os ataques contra a desenvolvedoras e diversas outras mulheres que entraram na briga extrapolaram completamente os limites. Radicais políticos resolveram dar apoio à crueldade para captar seguidores e começaram a ver a comunidade gamer como nicho.

A reação da mídia e da comunidade acadêmica acabaram tentando apagar o fogo com gasolina. Começaram a ganhar espaço na mídia personalidades que afirmavam haver relação entre a violência contra mulheres no mundo real e os games violentos. Só faltou o pessoal que mandava jogar ovo no telhado para evitar chuva. Não faltou, no entanto, o pessoal que começasse a sugerir censura para determinados jogos. Aqui não falo de idade para jogar, mas de proibir determinadas cenas ou jogadas.

Depois, vieram as críticas sobre o sexismo na representação das mulheres no videogame. Lara Croft virou um símbolo de misoginia em determinados veículos de comunicação. Aí entra a comunidade religiosa dizendo que Dungeons and Dragons era satanista e levaria ao suicídio. A indústria de games virava alvo de todas as declarações de ignorância e preconceito. Ao mesmo tempo, vários gamers que se sentiam estigmatizados, criavam cada vez mais raiva e se organizavam. O fato é que hoje há radicais nos mais diversos grupos sociais e políticos. O grande desafio do século XXI é como não deixar que eles dominem ou se tornem a cara do grupo.

Inútil debater quem começou, o importante é saber como interromper a radicalização. A igreja identitária é uma teoria que converge para a demanda por pureza e, consequentemente, autoritarismo e radicalização. Os gamers são um grupo unido pelo fandom e não pensam em como lidar com radicais. O alerta para o processo de radicalização é o respeito à dignidade humana. Se ela passa a ser submetida à aderência ao grupo, ou é ou será radical.

Existem grupos de gamers radicalizados que se uniram em torno do ódio contra mulheres e planejam assassinatos. E isso existe em grupos políticos, religiosos, veganos, antirracistas, em todos os grupos. Todos os dias aparece um progressista na internet querendo se livrar da responsabilidade da radicalização e da vitória de Bolsonaro. A culpa é deles, podem colocar em quem quiserem. Mas isso pouco importa. O que importa é mudar de comportamento e parar de abastecer o criadouro de radicais.

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