| Foto: Reprodução/ Twitter
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Começou o festival da passação de pano para Karol Conka, fundamentado na fina flor do racismo envergonhado da porção mais progressista da intelligentsia brasileira. Tem até marca pagando publipost para famoso dizer que já deu, não precisamos cancelar a Karol, a carne negra é a mais barata do mercado, etc. e tal. O golpe está aí, cai quem quer. A cantora cobrava R$ 150 mil por show, tinha programa na GNT, convivia no meio artístico. Famosos aplaudiam seu discurso lacrador e também sabiam exatamente como ela se comportava. Deu certo para ela, ué! Vai me dizer que é a única menina má lacradora que fez os degraus da escada da fama com as cabeças de quem pisoteou? Claro que não, só que é negra.

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Karol Conka fez um discurso à la Daniel Silveira no programa da Ana Maria Braga. A única diferença é que ela é bonita, talentosa e sabe articular as palavras. Talvez essa seja a diferença que faz tanta gente acreditar no arrependimento dela e zero pessoas acreditem no choro do parlamentar. Talvez seja também a ação publicitária de recuperação da imagem da cantora. Ou racismo, vai saber. Só não entendo por que os lacradores querem de qualquer jeito que ela esteja arrependida, mas outras pessoas têm o direito de ser más.

Antes do boom das redes sociais, até 2010, militância era militância mesmo, lidar com gente, entender pontos de vista diferentes, ter compaixão, convencer. Agora se tenta dizer que a cantora está sofrendo "cancelamento", o que é uma grandissíssima de uma mentira. O cancelamento é uma ação coordenada de redes para inviabilizar uma pessoa por uma determinada fala ou opinião, não é o caso. Ninguém está reclamando das convicções da cantora ou querendo que ela se cale. A revolta é causada por atitudes perversas, daquelas que soariam forçadas até em vilã de novela. Isso não chama cancelamento, chama consequência de expor seu pior lado em rede nacional.

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Como ela não se deu conta de que causaria indignação com esse tipo de comportamento cruel, mentiroso, dissimulado? Talvez conviva com gente que considere isso normal, uma forma de sair ganhando. Deu certo para ela da mesma forma que deu certo para muita gente. Na nova militância identitária, essa centrada em redes sociais e controle do vocabulário, valores humanos e realidade ficam em segundo plano. Como ela pregava igualdade e falava o vocabulário estabelecido pelo grupo, passava a ser aceita como boa e moral. Não é a única, é a que ficou mais evidente e a que anda na corda-bamba do racismo envergonhado dos antirracistas.

A "influencer" Gabriela Pugliesi já se reabilitou. Foi canceladíssima por ter feito um vídeo bêbada furando a quarentena numa festa, depois que o casamento da irmã dela infectou meia São Paulo com COVID. Todo mundo já esqueceu e os progressistas não ficaram cobrando insistentemente que ela se arrependesse nem arrumando desculpas para a lambança. Por que a influencer branca tem o direito de ser má e a negra não? Talvez fosse até racismo tratar Karol Conka como o "bom selvagem" e não como uma mulher de 35 anos que atingiu o sucesso. Só não é porque o racismo não existe entre a militância identitária.

Eu gostaria muito de acreditar que, de repente, a militância identitária abriu os olhos para a compaixão, a redenção, a misericórdia e os valores humanos. Ainda não consigo. Compare a atitude diante de Karol Conka, uma cantora que age feito menina má de colégio, e a atitude diante de jornalistas que não compram o pacote completo da militância de esquerda, como Vera Magalhães e Miriam Leitão. Há uma diferença fundamental: as jornalistas não foram flagradas praticando perversidades e se fazendo de sonsas, apenas discordam ideologicamente e são esculachadas sistematicamente pelos progressistas.

Por outro lado, há um efeito curioso que une os dois extremos dos pólos políticos, o cacoete de cobrar de todos os negros uma opinião sobre o comportamento da cantora. Há questões que são comuns a todo um grupo, como o racismo no ambiente profissional e a violência racista, que existem e precisam ser combatidas. Outra coisa é cobrar comportamentos pessoais que nada têm a ver com lutas coletivas. Karol Conka usava muito as frases feitas e clichês repetidos por militantes, mas as ações que despertaram indignação não são militância, são só maldade mesmo. E, no caso dela, agir assim deu certo. Quantos você conhece que venceram na vida do mesmo jeito? Pois é. Não se trata de questão político-ideológica, mas de comportamento humano.

Uma das melhores formas de esconder a própria perversidade é fazer parte de um grupo que acredita lutar por algo moralmente superior e dá a seus membros o status de moralmente intocáveis. É assim que alguém ganha todas as desculpas do mundo para comportamentos perversos apenas porque faz parte de um grupo que reverbera discursos identitários. Também é assim que pessoas dizem travar uma guerra cultural e pela liberdade enquanto tentam implantar o terror diário nas vidas daqueles que invejam, odeiam ou de quem têm birra.

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Quem faz parte de um grupo que acredita lutar por algo moralmente superior passa a não mais questionar atitudes de seus pares na vida real. Por isso esses grupos são tão atrativos para radicais e sociopatas, trata-se do ambiente perfeito para delinquir e nem precisar arrumar desculpa, vai ter quem arrume. É só jogar a culpa nos outros, numa fase difícil, dizer que estava "só se defendendo", creditar a um passado sofrido, pendurar o início da briga no colo dos comunistas, dizer que o racismo/patriarcado provocou tudo aquilo. Não vai faltar escolha para justificar perversidade e desumanizar vítimas. A culpa não é da causa, é do grupo, equilibrado entre quem tem prazer no sofrimento alheio e quem o tolera.

Em "O Óbvio Ululante", Nelson Rodrigues relata a viagem de Jean Paul Sartre ao nosso país na crônica chamada "O Único Negro do Brasil". Para ele, o único negro do Brasil era o intelectual Abdias do Nascimento, um dos nossos mais brilhantes. Começou a história política como integralista em 1936 e se desligou do movimento em menos de um ano, quando percebeu as tendências racistas. Decidiu então militar pela visibilidade dos negros brasileiros. Fundou alguns dos principais think tanks, museus e núcleos culturais nessa área. Foi professor das Universidades de Nova Iorque e Yale, nos Estados Unidos, e de Ifé, na Nigéria. Aqui no Brasil, foi senador, deputado federal, fundador do PTB e do PDT de Leonel Brizola. Era neto de escravos e filho de uma ama de leite com um sapateiro músico. Por isso Nelson Rodrigues dizia que era o mais solitário.

Em o óbvio ululante, Nelson Rodrigues conta quando Abdias do Nascimento defendia a proibição da participação da África do Sul nas Olimpíadas enquanto vigorasse o apartheid. "Abdias queria que o Brasil se juntasse aos que protestam. Uma terra de tantos negros não podia aceitar e competir com os deslavados racistas. Deixei o amigo falar. Mas sei que se trata de um movimento inteiramente inócuo ou, por outra, puramente retórico. Ninguém sairá das Olimpíadas por solidariedade aos negros da África do Sul. Eis a verdade: o único preto que nos comove é o americano, porque serve ao ódio contra os Estados Unidos.", cravou o escritor.

Instrumentalizar lutas alheias para indulgência própria é uma especialidade dos frívolos bem-nascidos do Brasil. Tivemos o movimento do "hippie de boutique" nos anos 1960 e 1970. Goste você ou não, os hippies tinham suas próprias teorias de como o mundo deveria funcionar e, entre os nossos bem-nascidos livres do fardo do pagamento de boletos, elas eram muito lindas. Mas é esforço demais se meter no meio do mato criando trocentas crianças, sem desodorante e plantando para comer como Baby Consuelo e Pepeu Gomes. Que tal continuar no Leblon, em Copacabana, viver do dinheiro da família e dizer que é hippie? Tivemos isso. Depois virou moda para tudo e, hoje, até para o antirracismo.

O "antirracismo de boutique" consiste em defender os negros que obedecem ou que sejam do jeito que você manda eles serem. Mas a pessoa que é branca vai ensinar ao negro como ser negro? A ideia é exatamente essa. Se você chamar de "antirracismo" vai dar certinho, tendo um vocabulário próprio desse grupo, que o identifique como baluarte da luta identitária, fechou o pacote completo. Xinga meia dúzia de brancos de racistas, vira para o negro que não te obedece e chama de doutrinado, capitão-do-mato, chaveirinho de branco. Ninguém vai deixar de ser racista por essa pataquada toda, muito menos o antirracista de boutique, mas vai dar um senhor retorno de imagem.

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Racismo existe, a ideia de igualdade na humanidade entrou no papel só em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A cultura ainda demorará muito para mudar. Muitos vão perder espaços e disso ninguém gosta, por mais que tenha um senso de justiça apurado. O grupo que tinha a vida ganha sem contar com uma competição igualitária com mulheres e negros vai chorar até que isso se consolide e é direito desse grupo, o choro é livre. Mas dizer que está lutando por igualdade enquanto destila preconceitos sobre um grupo e infantiliza pessoas adultas e de sucesso porque são negras já passa um pouco da linha da militância. É desfaçatez.

Pessoas negras não estão chorando no canto do box do banheiro esperando ser salvas pelos brancos lacradores. A ideia de "salvar negros" talvez seja um tantinho racista. É piada corrente nas obras dos grandes escritores brancos da África portuguesa, como Mia Couto e Pepetela. É a piada que nós, brasileiros brancos, mais ouvimos. Nos julgamos superiores aos negros e por isso queremos "salvá-los" do homem branco, do preconceito e do capitalismo. Só que isso é racismo. Riem especificamente de nós porque deveríamos perceber quando europeus e norte-americanos repetem a condescendência conosco.

Há pessoas de todos os tipos, cada criação é única e não se repete. E todos temos o direito de ser como somos, inclusive os maus, perversos e aqueles que não querem militar por causa nenhuma. Pessoas negras não são obrigadas a ser boazinhas, a gostar de outra pessoa porque é negra nem a militar. A ideia é que sejam livres como as pessoas brancas, inclusive para escolher entre ser um modelo de comportamento ou a menina má do colégio. Cada um que arque com o peso das próprias escolhas de vida. Quem precisa acreditar que todos os negros são inocentes para militar por igualdade talvez não seja exatamente antirracista.

O que aprendemos dessa história toda é que, numa sociedade polarizada, pouco importa como a pessoa age, importa saber com que grupo ela se identifica e se ameaça a existência dele. A ameaça ao próprio grupo ou ao líder dele é o único caminho para expurgo. O resto todo passa. Aqui não falo de amigos, família, pessoas que amamos. Esses realmente acolhem nossa dor pelas nossas decisões mais desgraçadas, já que o laço é de amor. Nos grupos polarizados, ninguém acolhe a dor de ninguém. Não se iluda que lacradores estão se compadecendo do preço que Karol Conka pode pagar por ser desmascarada, estão defendendo a si próprios. Quantos mais escondem a própria perversidade com a máscara das boas causas? É um disfarce duro de perder.