Há muitos anos, candidatos buscam voto no público evangélico. A questão é matemática, falamos aqui de cerca de 65 milhões de brasileiros, 31% da população (de acordo com estimativa do Instituto de Pesquisa Datafolha em 2020; no Censo do IBGE de 2010, eram 42,3 milhões de pessoas). A lacração imagina que pastor manda em voto, não é o que mostram as pesquisas. O público evangélico preocupa-se com a pauta de costumes e quer ver compromisso dos candidatos com o tema.
Jair Bolsonaro não conquistou o público evangélico com o comportamento pessoal ou com a fé, mas declarou desde o minuto zero que seria linha dura na pauta de costumes. Lula, que também é católico, quer conquistar os evangélicos. Se a porta de entrada de Bolsonaro foi a mulher, a de Lula foi a cadeia. No final de semana, o ex-presidente já disse que viu muito culto na prisão e que o PT não pode tratar evangélico feito gado. Oremos.
Nos últimos 20 anos, a esquerda populista mudou seu foco. Antes fazia a defesa da classe trabalhadora, agora foca em "minorias". O Lulinha paz e amor de 2002 defendia alçar ao poder pela primeira vez a "classe trabalhadora brasileira" e a militância petista fazia esse discurso. Agora, a militância intelectual e metropolitana converteu-se em patrulha identitária. Para candidaturas ao legislativo é ótimo, o pessoal cresce na polêmica. E para o Executivo? Lula fica preocupado.
Ah, mas não devemos resolver os problemas das minorias? Enfrentar o racismo? Tornar a vida mais fácil para quem tem deficiência? Claro que sim, ocorre que não é essa a pauta da patrulha identitária. Resolver não está nos planos. A patrulha quer apenas o poder de cancelar pessoas com a justificativa de que são racistas. Também quer ganhar espaço ignorando a realidade e a individualidade, colocando todas as pessoas em caixinhas que ela mesma inventa.
Essa mudança de rumos da esquerda progressista, que tirou o foco dos direitos da classe trabalhadora para mergulhar na pauta de costumes, acaba interferindo no eleitorado. Antes disso, qualquer candidato podia pedir o voto evangélico, a disputa da pauta de costumes não era o centro do debate nem o mais importante. Hoje não. Tem gente que perde emprego por questionar personagem de quadrinhos, por pressão da militância de esquerda. Natural que o eleitor conservador pense que os políticos cederão como cedem empresas e mídia.
Existe uma discrepância gigantesca entre o Brasil retratado pela mídia e a realidade. Você sabe o que os lulistas pensam sobre a pauta identitária, aborto, cotas raciais, maioridade penal e lei da palmada? Não é nada do que a lacração prega de manhã, de tarde e de noite. Lula sabe que o brasileiro é conservador e não há como se eleger sem colocar limites ao autoritarismo da patrulha identitária. O eleitorado petista é mais conservador até do que a terceira via.
A pesquisa sobre eleições presidenciais feita em agosto pela Quaest/Genial investimentos mostra um petismo muito diferente dos estereótipos, ainda ligado à esquerda que focava na defesa da classe trabalhadora brasileira, que é majoritariamente conservadora. A terceira via pode até ser mais liberal nos costumes que o bolsonarismo e o lulismo, mas também não é totalmente liberal.
Lulistas são mais conservadores que a terceira via em assuntos como aborto, racismo e feminismo. Entre os prováveis eleitores petistas:
- 89% defendem a maioridade penal aos 16 anos de idade
- 65% defendem o resgate do patriotismo
- 62% dizem que é normal pais baterem nos filhos
- 38% dizem sentir-se incomodados com demonstrações públicas de afeto de gays e lésbicas
Se 38% dos lulistas sentem-se incomodados com demonstrações públicas de afeto de gays e lésbicas, como Lula vai lidar com a patrulha identitária? Estamos falando de gente que provoca demissão e inviabiliza a vida acadêmica de quem erra um pronome. Moro e Doria também têm um desafio nesse sentido. Quanto mais virulenta e autoritária fica a patrulha identitária, mais firme é o compromisso que os conservadores exigirão com a pauta de costumes. Por enquanto, só Bolsonaro dá isso aos evangélicos.
A patrulha identitária é minoria até no petismo, mas suas teorias rapidamente viram axiomas na imprensa e na publicidade. Parece apenas uma crise de descrédito da imprensa por estar apartada da realidade e confinada em uma bolha ideológica, mas é ainda mais grave. Essa movimentação influencia toda a cultura: filmes, músicas, livros, moda e até o que se faz em sala de aula. Pela intimidação, as ideias dessa patrulha acabam sendo tratadas como o novo normal.
Ocorre que falamos de movimento iliberais, dispostos a legitimar quem debocha de tudo o que é importante e até sagrado para o cidadão brasileiro. Meter-se em quais são os valores de alguém e destruir a vida dos que recusam-se a uma "conversão" é coisa que se vê diariamente. A influência chega ao cotidiano, à forma como tocamos a rotina e a dinâmica familiar. Diante da ameaça de cancelamento a quem não cede, o cidadão busca compromisso de quem tem autoridade.
Durante muitos anos, o compromisso básico que a comunidade evangélica cobrava dos candidatos era não levar adiante a legalização universal do aborto. Nesse contexto, muito difícil um candidato que não passasse no crivo. Até Dilma prometeu não legalizar aborto e os evangélicos sabiam que seria possível manter porque não era a pauta central da campanha. Ocorre que hoje a patrulha identitária tornou-se central em muitos focos de poder político e econômico. Evangélicos têm, por isso, uma pauta bem mais extensa e delicada.
Lula quer a criação de um "momento evangélico" nas mídias do partido e pensa em suavizar a pauta identitária para retomar a situação que já teve nas campanhas de 2002 e 2006. Antes dessa forma de ganhar poder político por meio de grupos de pressão em redes sociais, a militância identitária focava em conquistar direitos, então não era obstáculo aos evangélicos. Agora que o foco é em silenciar discordantes e cancelar pessoas, a coisa mudou de figura.
Pode ser que dê certo? Sim, tanto Lula quanto Dilma chegaram ao poder com apoio de todos os líderes evangélicos xingados diariamente hoje pela militância petista. A diferença é que eles não eram xingados o dia inteiro pela militância petista naquela época. E também a patrulha identitária não passava o dia todo perseguindo evangélico e debochando da Bíblia na internet. Isso daí pode ser que não tenha pegado muito bem com os crentes.
E tem outro fator também, o de brincar com Deus. É preciso ter cuidado com o que pedimos porque pode ser que Ele atenda. Na campanha de reeleição, Dilma falou de Estado laico na Assembleia de Deus citando um salmo de Davi. "O Estado é laico, mas feliz é a nação cujo Deus é o senhor". Eduardo Cunha encerrou um outro cultomício na mesma igreja pedindo que "Deus tenha misericórdia desta nação". Deus levou os dois a sério e atendeu.
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