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Se uma pessoa fala sobre doutrinação ideológica em universidades, obviamente ela odeia a universidade, é conservadora e subestima o conhecimento acadêmico, certo? Não, mas você deve saber que é assim na cabeça de muita gente. Um ensaio publicado por uma das sociólogas de maior prestígio da França deve cair como uma bomba no ambiente acadêmico.
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Maldosos dizem por aí que a França é o DCE da Europa. Tudo o que você esperar de política social à esquerda, defendendo o bem-estar social, verá implementado por lá até pela direita. Curiosamente, é de acadêmicos franceses progressistas que começam a vir as iniciativas mais contundentes de defesa do conhecimento e da universidade contra os avanços ideológicos de instrumentalização.
Começou com a proibição em todo o sistema educacional francês do uso da linguagem de gênero neutro, uma aberração anticiência produzida com base em ideologia, sem método nem comprovação de eficácia e vendida como tentativa de inclusão. Nem para isso serve. Aliás, por ser arbitrária, atrapalha esforços de inclusão feitos há décadas, e por isso foi terminantemente vetada pela Academia Francesa e pelo Ministério da Educação.
Agora, a socióloga Nathalie Heinich lança o ensaio "Ce que le militantisme fait à la recherche", O que o ativismo faz à pesquisa, pela editora Gallimard. É uma professora universitária respeitadíssima por seus pares no mundo, diretora de pesquisa no CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), membro do CRAL (Centre de recherches sur les arts et le langage da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris) e membro associada do LAHIC (Laboratoire d’anthropologie et d’histoire sur l’institution de la culture: CNRS, Ministère de la Culture, EHESS).
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Se você for contar sobre este artigo para um amigo ou parente progressista, ele provavelmente já responderá até antes de ouvir que "também há professores conservadores em universidades francesas". De repente até você tenha pensado ao ler a manchete algo como "nossa, tem professor conservador em universidade na França". Isso mostra como o nosso meio de campo está embolado. Seja progressista, liberal ou conservador, antes de tudo tem de ser professor.
Na área das ciências matemáticas, físicas e biológicas, fica mais clara a diferença entre o que é científico e o que é ideológico. Mesmo assim, sabemos o tamanho da encrenca que já temos durante a pandemia de coronavírus e com as pautas identitárias. Um problema maior ainda temos nas ciências humanas, onde há uma linha praticamente borrada entre o que é produção de conhecimento e o que é militância e tentativa de confirmar uma ideia.
Todo debate sobre o tema invariavelmente orbita em torno de experiências e valores pessoais, ou seja, cai de novo no uso da ideologia para discutir se aquilo é ideologia. É por isso que o ensaio inova. Vem de uma professora progressista, dedicada às artes e ao patrimônio cultural da França, muito crítica do que chama de "reacionarismo conservador" à arte contemporânea. Com argumentos objetivos e históricos, ela traça um histórico do que seria a terceira onda de avanço da doutrinação na França.
Essa última onda teria começado nos anos 1990 e foi registrada por um ensaio do sociólogo Didier Lapeyronnie na Revue française de sociologie com a defesa do "academicismo radical". Foi polêmico na época. Ele identificava a importação das lutas políticas para o ambiente acadêmico, onde elas eram convertidas em uma luta pelo monopólio da verdade. Por aqui, alguns chamam de monopólio da virtude e, de acordo com o artigo, faz sentido.
A cronologia e a temática coincidem com os relatos que constam do livro Cynical Theories, de Helen Pluckrose e James A. Lindsay. Tudo começa com as "teorias críticas". Nathalie Heinich aponta como ponto de partida a Sociologia Crítica de Pierre Bourdieu, que virou febre particularmente depois da publicação de "La Misère du Monde", um livro que coleta diversas experiências individuais ao longo de 3 anos para analisar quais seriam as formas de produção da miséria social.
A partir deste momento, alguns temas passam a ser privilegiados na produção universitária: a exclusão, a desigualdade, a pobreza, os fenômenos de dominação, os processos de segregação e a lógica da exclusão, por exemplo.
"Os debates nunca dizem respeito à ciência, ao conteúdo das observações ou à interpretação a ser dada a elas. A única pergunta válida e a única preocupação
são determinar quem é realmente radical e mostrar o seu próprio radicalismo, mesmo que signifique permanentemente condenar “outros”, desenvolver suspeitas ou denunciar os “ditos radicais”, os falsos “amigos do povo ”, todos aqueles que não são de "esquerda" ou "cientistas" são de fato os agentes do neoliberalismo, até mesmo do imperialismo americano.", descreve a socióloga.
Nathalie Heinich registra duas ondas anteriores de confusão entre militância política e produção de conhecimento. A primeira seria de ordem soviético-marxista, logo após a II Guerra Mundial. A segunda seria maoísta, durante os anos 1970. Desde o ano passado, quando um professor foi decapitado por um aluno muçulmano ao mostrar uma caricatura de Maomé na sala de aula, iniciou-se na França um debate sobre a terceira onda.
Desde a década de 1990 havia uma guerra interna nas universidades com militantes de esquerda que enxergavam na denúncia das distorções do neoliberalismo sua principal missão acadêmica. Segundo a socióloga, isso teria criado uma noção de que ciências sociais são uma espécie de catecismo sobre dominação, legitimação, construção social e violência simbólica. Nos Estados Unidos, a associação com a militância inciaria a produção acadêmica da pauta identitária.
Muitas pessoas pensam ser possível combater dominação com neutralidade, só que isso não é do elemento humano. Acabaríamos com doutrinação oposta disfarçada ou cinismo. A causa da igualdade é justa e tanto professores quanto alunos têm toda liberdade de militar, a questão é cumprir seu papel na universidade. A militância não pode estar acima do conhecimento.
"Eles estão cometendo o que os sociólogos chamam de “confusão de arenas” entre o científico ou epistêmico, da produção e transmissão do conhecimento e
o político ou cívico, da transformação do mundo social", explica a socióloga, que cita uma série de consequências dessa mistura.
PRINCIPAIS CONSEQUÊNCIAS DA "MILITANTIZAÇÃO DA PESQUISA"
1. AMEAÇA A AUTONOMIA DO SABER
O método científico, mesmo para as ciências acadêmicas, requer uma abordagem epistemológica, centrada nos fatos, questionamentos e conhecimento. A partir do momento em que são feitos julgamentos morais, políticos e religiosos sobre objetos de pesquisa, isso se perde.
2. QUEREM TUDO AO MESMO TEMPO
Há que se fazer uma opção clara, mas os militantes acadêmicos não pretendem abrir mão de nada. Querem continuar com a popularidade de fazer militância e, ainda assim, serem vistos como cientistas e dizer que estão fazendo pesquisa. Muitos trabalhos acadêmicos têm esse vício, estão na universidade mas não têm método científico, são fruto de ideologia.
Um exemplo dado é uma reportagem no Le Monde, quando estourou a crise da doutrinação islamoesquerdista e descolonialista nas universidades. Um cientista afirmou que as palavras descolonização, insterseccionalidade, racismo, racialização e islamoesquerdismo eram citadas em apenas 0,001% dos trabalhos acadêmicos. Outros 3 cientistas pesquisaram rapidamente em uma base mais ampla e verificaram que, na verdade, elas estavam na maioria dos trabalhos.
3. A MILITÂNCIA ACADÊMICA SUBVERTE A REVISÃO POR PARES
A tal da peer-review de que se anda falando tanto é a revisão dos artigos científicos por pares, em busca de falhas a serem corrigidas no método ou nas conclusões. No entanto, elas têm servido para incentivar ou bloquear temas, com base em ideologia.
4. DIMINUI O NÍVEL INTELECTUAL DOS DEBATES
Cito aqui dois exemplos dados pelas autoras de casos em que respostas simples e descoladas da realidade para questões complexas saíram de militantes posando de acadêmicos. "Que a Sorbonne acabe de recrutar uma 'militante queer e ativista' especializada em 'espaço de gênero' (sim, você leu corretamente: a Sorbonne) não deveria nos tranquilizar sobre o futuro desta universidade: oque uma luta política faz na universidade, quando existem partidos e associações para isso? E que um seminário na Universidade de Montpellier visa 'desmasculinizar as ciências humanas e sociais' incentiva o medo de que, após as perguntas legítimas
do ponto de vista androcêntrico dos pesquisadores, escorregue rapidamente (isso já está acontecendo em alguns departamentos de literatura) para a erradicação de autores do sexo masculino do corpus bibliográfico - e o que restará
os nomes de Weber, Durkheim, Bourdieu, Elias, Goffman e outros Lévi-Strauss, odiados por um bom motivo de 'supremacia masculina'?", questiona a socióloga.
5. ORIGINALIDADE DE MARIA-VAI-COM-AS-OUTRAS
Há uma repetição infinita de termos e temas, como "estudos de gênero", em que o foco é descobrir sempre uma camada de opressão a mais, às vezes já relatada antes, mas alardeada como grande novidade. Ao comparar as ciências humanas de hoje com outras áreas do conhecimento, percebe-se que a repetição dos temas toma o lugar natural da evolução e da diversidade. O discurso feito é de defesa das minorias oprimidas, mas a temática é desenvolvida por quem domina as bancas de seleção e avaliação de projetos acadêmicos.
O questionamento da socióloga é sobre colocar a sociologia em segundo lugar, já que ela deixa de ter como missão a compreensão do mundo e dos fenômenos sociais para assumir a missão de mudar o mundo para melhor.
6. A MILITÂNCIA ACADÊMICA ADORA SLOGANS
Neoliberalismo, desconstrução, descolonização, racialização, escolha um termo e você já deve ter ouvido todos sem saber mais o que cada um deles significa. O problema é que, embora sejam termos gerados pela observação de fenômenos sociais, passaram a ser usados como se significassem processos imutáveis e eternos. Ocorre que a sociedade muda. Tentar encaixar toda a produção de conhecimento em conceitos baseados numa ideia falsa de permanência diminui a qualidade da produção.
7. A MILITÂNCIA NÃO SE IMPORTA COM A REALIDADE
A autora cita um caso interessante sobre o véu islâmico, que foi proibido em instituições públicas na França. A laicidade francesa proíbe toda manifestação religiosa em público, eu prefiro a nossa que não proíbe nenhuma e permite todas. De qualquer forma, Nathalie Heinich cita o caso fantástico da produção acadêmica que foi contra a proibição do véu por questões de descolonização. Seria a "grande libertação do discurso racista em direção a uma sociedade islâmica imaginada erroneamente por ocidentais como 'misógina, antidemocrática, repressiva, beligerante e cruel', e que o sexismo do Islã é apenas uma invenção das sociedades democráticas e sua 'estratégia colonial'. Quanto ao 'gênero', é apenas 'um sistema de castas baseadas na invenção de diferentes sexos", disse a cientista citada. Dá vontade de começar a vaquinha para mandar passar um ano na Arábia Saudita.
8. A MILITÂNCIA ACADÊMICA REDESCOBRE A RODA
O centro do discurso de várias teorias críticas é de que tudo é socialmente construído. Gênero, raça, estética, sexualidade. Isso é tratado como uma grande descoberta, uma novidade que revoluciona nossa forma de ver o mundo. Daí a socióloga pergunta: na história da humanidade, o que não foi socialmente construído?
9. A MILITÂNCIA ACADÊMICA IGNORA CONTEXTOS
Há um paradoxo lógico em defender, ao mesmo tempo, que tudo é socialmente construído e dividir as pessoas em categorias de gênero, sexualidade e raça. A identidade individual da pessoa passa a ser obrigatoriamente construída de acordo com a categoria à qual ela é ajustada, portanto um conjunto de características e valores imposto de forma arbitrária. Dessa forma, não é possível construir nada socialmente, já que se apagam as identidades individuais que formam a sociedade.
Além disso, se o propósito é inclusão, não faz sentido excluir a realidade e o contexto e obrigar que todas as visões de mundo sejam apenas do ponto de vista sexista, racista ou da sexualidade.
10. A MILITÂNCIA É MONOTEMÁTICA
Até para ser eficiente, a militância reduz sua referência de mundo aos parâmetros do tema pelo qual milita. No máximo expande para temas de militâncias irmãs, como raça-gênero-classe. A partir do momento em que a visão de mundo é limitada àquelas com que se tem afinidade ideológica, a compreensão do contexto está seriamente comprometida.
11. CRIADOURO DE CONFUSÕES
Criar polêmicas e confusões é uma prática comum da militância acadêmica que não leva à produção do conhecimento, mas desperta paixões. Falar, como se fosse ciência, de temas como racismo estrutural, dominação sionista das artes e tratar qualquer questionamento como "fobia" é um método válido para a militância chamar a atenção, se destacar e provocar debates. No entanto, em nada contribui para produzir conhecimento e compreender o mundo.
12. FASCÍNIO PELO RADICALISMO
A melhor expressão é a cultura do cancelamento. "Se o compromisso radical
faz sentido em regimes radicalmente extremistas (o fascismo, nazismo, stalinismo exigiam respostas na medida do seu próprio excesso), o que significa extremismo em um regime democrático, especialmente quando é expresso principalmente em campi, esses lugares isolados da realidade que pretendem ver os que professam não ser professores ou pesquisadores, mas 'intelectuais críticos'?", pergunta a socióloga.
"O que a militância está fazendo com a pesquisa, então? Ele entorpece, degrada, esteriliza. Em vez de permitir que suba ao posto de ciência, rebaixa-o àquele ideologia", conclui a socióloga Nathalie Heinich.
Boas causas e boas intenções nunca fizeram boa produção científica. Isso é feito com método, disciplina e trabalho duro. As mudanças no mundo têm de ser feitas no espaço cívico, exercendo o papel de cidadão. Pesquisa é para produzir conhecimento. As ciências sociais têm o papel de investigar como é o mundo, se admitirmos que elas sejam modificadas para dizer como deve ser o mundo, perderemos uma fonte importante de conhecimento para ganhar mais um partido político.