Vira e mexe vejo por aí editorial comemorando derrubada de conta ou post em rede social por decisão da própria rede. Óbvio que é pelo puro prazer da vingança, ainda que se tente justificar com falso moralismo. Ou as redes sociais não são responsáveis por curadoria de conteúdo e continuam não tendo de ressarcir prejuízos quando dá problema ou são, controlam discurso e arcam com as consequências. É preciso um oceano de otários para conseguir fazer as duas coisas ao mesmo tempo e as Big Techs têm conseguido.
Eu sou totalmente contra delegar esse poder a meia dúzia de empresas mais poderosas que muitos países. Claro que seria a favor se fosse a dona dessas empresas. Talvez um dia chegue a esse nível espiritual. Vivemos uma nova realidade em que informação e dados são o novo petróleo. Saber lidar com isso garante mais que dinheiro, concentra poder. O grande desafio das democracias é aprender a viver nessa era. As grandes ditaduras já aprenderam direitinho e estão amando.
Dia sim outro também vejo alguém que se leva super a sério falando sobre como as Big Techs trabalham para conter a desinformação. Avalie um adulto explicando a você os esforços da Phillip Morris para criar um tabaco que não vicia. Pois é. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome. O Twitter inaugurou mais um capítulo deste teatro e eu conto a vocês para não passar raiva sozinha.
Este mês a empresa lançou uma nova política para impedir desinformação sobre COVID. Neste comunicado, dizem ter percebido um grande volume de teorias conspiratórias e postagens alarmistas. Que pessoal ágil, não é mesmo? Avalia se colocar o sistema de Inteligência Artificial que monitora o Twitter para tomar conta de duas tartarugas. Você pode até estar pensando que antes tarde do que nunca, não é? Sabe de nada, inocente.
O Twitter resolveu fazer uma lista das principais informações falsas que podem levar a erro nas medidas contra COVID. Elas serão retiradas da plataforma ou receberão uma etiqueta de informação falsa. O usuário terá um prazo para recorrer. Claro que não é no Brasil, é por enquanto em país civilizado onde a imprensa sabe diferenciar democracia de autoritarismo. Quando chegar no Brasil, deve ser igualzinho, mas não tem como recorrer porque não precisa. Nem presidente da república consegue recorrer.
Ocorre que, entre as informações sobre COVID que o Twitter considera falsas ou que levam a erro há fatos científicos. Muitos deles estão descritos de forma expressa nos sites de autoridades nacionais de saúde e da OMS. Outros são fatos científicos básicos. A lista é de uma subjetividade absurda, ou seja, quem decide o que é verdade é o Twitter. Sabe uma verdade? A China é uma democracia para o Twitter.
"A democracia de processo integral da China é um presente para o mundo" pode até ser uma opinião. Agora, e essa hashtag #WhoDefinesDemocracy? Quem define o que é democracia? Não te lembra um pouco aquela coisa de quem define o que é verdade? Há uma tendência nas redes de borrar a fronteira entre mentira e verdade, entre fato e opinião, entre certo e errado. É uma mangueira de gasolina ligada sobre a fogueira do autoritarismo.
Repito uma frase de Hannah Arendt que citei num artigo recente, aquele sobre a proposta de promover segregação racial nas escolas para combater o racismo: "O sujeito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas as pessoas para as quais a distinção entre fato e ficção e a distinção entre verdadeiro e falso não existe mais". A passagem está no livro "As Origens do Totalitarismo", de 1951.
Borrar a fronteira entre fatos e ficção é uma prática que leva necessariamente ao totalitarismo. E isso é possível fazer com discurso de esquerda, de direita, de defesa de animal, de mulher traída, de homem feministo, do que você imaginar. Para coisa que não presta e levar vantagem o ser humano é especialmente criativo.
Esta semana, a repórter Muyi Xiao, do New York Times, publicou uma história excelente sobre como as autoridades chinesas compram contas falsas para manipular a opinião pública em todo o mundo. Ela traduz toda a estratégia, contextualiza e coloca até os gastos estatais para manter essa máquina funcionando.
Tem até lançamento de edital público para compra de conta de Twitter ou de Facebook que passará a ser operada por oficiais ligados ao Partido Comunista Chinês com a intenção de influenciar o debate público em outros países. Por que tanto esforço? Porque a imprensa de muitos países, inclusive o nosso, já cobre mais rede social do que a realidade. Agir nas redes de forma estratégica pode ajudar a ganhar o debate público.
Algo muito importante a ter em mente é como os totalitários e autoritários enxergam o debate público. Se você é um democrata, deve pensar em convencimento. Você pensa que algo é correto ou sabe de um fato e tenta convencer o outro ou explicar ao outro seu ponto de vista. O autoritário não faz isso porque nem te respeita como ser humano. Ele apenas planta na sua cabeça a dúvida sobre as coisas que você valoriza e em quem você confia, tira seu chão.
Voltemos ao index de informações falsas sobre COVID criado pelo Twitter. Tem algumas que são absolutamente fantásticas:
Segundo o Ministério da Verdade do Twitterverso, é Fake News que "grupos ou pessoas específicos (ou outra identidade demograficamente identificável) são mais ou menos propensos a serem infectados ou a desenvolver sintomas adversos com base em sua participação nesse grupo".
Segundo o CDC (Anvisa dos Estados Unidos, onde fica a sede do Twitter no mundo real): "a equidade na saúde ainda não é uma realidade, pois o COVID-19 afetou de forma desigual muitos grupos de minorias raciais e étnicas, colocando-os em maior risco de adoecer e morrer por causa do COVID-19".
O Twitter vai proibir "informações falsas sobre metodologias de teste amplamente aceitas, como testes de PCR incapazes de detectar o vírus" porque as agências de checagem mostraram que uma mensagem dizendo que o teste confundia COVID com influenza era mentira.
Isso quer dizer que não há testes PCR incapazes de detectar vírus? Não. Ao definir a política pensando em desmentir Fake News e não em informar o público, temos aqui mais Fake News. Segundo o CDC, nenhum teste é 100%. Falsos positivos e falsos negativos ocorrem em vários testes, não só de COVID, por várias razões.
O Twitter vai proibir "afirmações falsas que sugerem que as vacinas contêm ingredientes mortais e gravemente prejudiciais".
De novo o vício do desmentido. Há gente dizendo absurdos sobre a vacina, do tipo "tem polônio dentro, é tomar e morrer"? Tem. Porque isso é mentira, quer dizer que não tem nada perigoso na composição da vacina? Claro que não. Eu nem vou mais ao CDC porque essa até as avós da gente sabem: a diferença entre o remédio e o veneno é a dose, não a composição. E nem falo dessas vacinas novas não. Sais de alumínio e formaldeído estão nas vacinas em quantidade benéfica para o organismo. Se você mergulhar num barril de formaldeído, pode até morrer.
O Twitter vai proibir "informações falsas ou enganosas, sugerindo que tratamentos não aprovados podem ser curativos para COVID-19". Agora complicou bastante. Tem algum tratamento aprovado para COVID no mundo? Não. Mas tem muita pesquisa. Se houver um tratamento que funciona, é necessariamente algum que não foi aprovado. Então se alguém falar da pesquisa sugerindo que pode vir dali um tratamento que funcione, será tratado como Fake News? Avalie quem fez essas regras fazendo regra para adolescente cumprir.
O grande problema das regras do Tribunal da Verdade do Twitterverso é não focar na verdade, partir da mentira. São escolhidas as teorias conspiratórias ou Fake News mais famosas e assume-se que o exato oposto é a verdade. É um raciocínio que tem a complexidade intelectual de um comercial do Dollynho e, infelizmente, tem sido adotado por boa parte da imprensa.
Pergunte às pessoas que você conhece quantas têm dificuldade de saber o que é ou não verdade no noticiário. Tendemos sempre a achar que é um fenômeno só no nosso campo ideológico, mas não é. Pergunte a um conhecido do campo ideológico oposto. Muita gente está incomodada com essa confusão toda. O problema de só conseguir enxergar o mundo pelas lentes da polarização é que a primeira a sair de cena é a verdade. Nessa dinâmica, que alimenta as Big Techs, a verdade pouco importa, a vida depende de contradizer o adversário.
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