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Quem vigia os vigilantes? Um caso que passou despercebido esta semana é uma exposição cristalina de como funcionam os meandros do poder. Um dos casos mais rumorosos de violência doméstica na história recente de Brasília envolve ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral. No dia de ontem, os 5 ministros da 5a turma do Superior Tribunal de Justiça decidiram por unanimidade que não é perturbação da paz contratar detetive para ir atrás da ex-mulher. E isso num contexto em que até a PGR fez denúncia de agressão e foram requeridas medidas protetivas ao STF. O contratante do detetive é justamente o ex-ministro do TSE.
Trata-se de caso lapidar sobre os meandros do poder principalmente para quem cai na lábia dos poderosos. Estamos numa batalha ideológica? Os cidadãos talvez, os poderosos jamais. Estão lutando para ficar no poder. O caso de violência doméstica em questão envolve o advogado da chapa de Dilma Rousseff. Foi indicado ao TSE por Michel Temer. Agora é advogado de Jair Bolsonaro na área eleitoral. Avalie quem brigou com família por causa desse povo.
Meu falecido pai me ensinou que o único ambiente em que floresce a ideologia é aquele formado por gente que cai no cheque especial. A partir de determinados patamares na escalada do Olimpo, a vida de deidade na Terra, isso passa a ser uma tremenda bobagem. Quer dizer, mas ou menos. Ainda é poderoso instrumento para influenciar aqueles que caem no cheque especial e pagam a conta do Olimpo. Apelar a valores e ideologia é uma forma de mantê-los pagando e felizes. Se não sempre felizes, eternamente pagando.
Admar Gonzaga Neto é um profissional brilhante que começou sua carreira próxima ao poder ainda na Assembleia Nacional Constituinte. Assessorou todos os tipos de partidos e todos os tipos de candidatura. Nasceu politicamente como assessor do PFL, ajudou a erigir o partido de Kassab, foi o advogado da primeira campanha de Dilma Rousseff. Saiu do mandato no TSE porque ele acabou mesmo. O caso de violência doméstica, escancarado por uma denúncia da filha logo no início do mandato, não chegou a prejudicar sua atuação. Continuou participando normalmente das sessões e dos julgamentos enquanto o processo se desenrolava.
Como ministro do TSE, tinha prerrogativa de foro. Já havia sido ministro substituto. A corte eleitoral é formada também por ministros do STF e STJ. O foro privilegiado era o direito de ser julgado exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal. Ou seja, o caso específico de agressão da então mulher ficaria a cargo de alguém do mesmo meio, podendo ou não ser próximo. Caiu nas mãos do ministro Celso de Mello que, como primeira medida, mandou retirar o sigilo do processo.
"Cabe acentuar, desde logo, que, em princípio, nada deve justificar a tramitação, em regime de sigilo, de qualquer procedimento que tenha curso em juízo, pois, na matéria, deve prevalecer a cláusula da publicidade. Não custa rememorar, tal como sempre tenho assinalado nesta Corte, com apoio na lição de NORBERTO BOBBIO (“O Futuro da Democracia”, 1986, Paz e Terra), que os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério, pois a prática do poder, inclusive a do Poder Judiciário, há de expressar-se em regime de plena visibilidade. Desse modo, e fiel à minha convicção no tema em referência (Pet 4.848/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), não vejo motivo para que estes autos tramitem em “segredo de justiça”. Determino, portanto, a reautuação deste procedimento penal, em ordem a não mais prevalecer o regime de sigilo", despachou o ministro ao encaminhar os autos à PGR.
Estamos no ano de 2017. A Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, ofereceu denúncia de violência doméstica contra o então ministro. Já havia boletim de ocorrência, registrado pela mulher agredida e pela filha. Além de xingamentos, a mulher havia sido empurrada, caiu e tinha o olho roxo. O então ministro alegou que ela havia bebido vinho e ficou muito irritada e com crise de ciúmes após saber do diagnóstico de uma doença autoimune. Havia partido para a agressão física e ele só se defendeu. As marcas seriam de um escorregão.
“Não são fatos, mas a versão expressada por uma pessoa acometida de grave crise de ciúmes, e que havia degustado algumas taças de vinho a mais, sem o acompanhamento de adequada alimentação. Assim como agravante para a desestabilidade emocional, sucedeu-se a descoberta de doença autoimune, denominada esclerodermia, conforme já revelado em petição da própria requerente, muito atormentada pela exposição que estamos sofrendo”, alegou a defesa.
Sobre o olho roxo a alegação foi de que “tal lesão, pelo que me recordo, foi causada pelo tombo que se sucedeu ao escorregão que sofreu sobre o Listerine, e que a levou a bater com o rosto na banheira, mas jamais em face do alegado empurrão em seu rosto.” Depois que o caso estourou na imprensa, a ex-mulher do ministro tentou fazer uma retratação no Boletim de Ocorrência. Fez, mas isso não tranca as ações. Também, num determinado momento, desistiu das medidas protetivas da Lei Maria da Penha, como o pedido para que parasse de entrar em contato com ela ou se aproximasse. Com a saída do TSE em 2019, o processo foi para a Justiça comum.
Precisamos falar sobre suspeição. Quando ministro, nomeado por Michel Temer após o impeachment de Dilma Rousseff, Admar Gonzaga julgou a chapa Dilma-Temer. Não declarou suspeição porque havia sido advogado da chapa nas eleições de 2010 e o julgamento era sobre 2014. O TSE achou certo. Votou pela absolvição da chapa. No caso de violência doméstica, depois de tudo o que já aconteceu, o ex-ministro colocou um detetive particular para seguir a ex-mulher. O STJ diz que isso não é importunação, é normal. Mandou suspender a ação penal.
Cinco ministros do STJ decidiram por unanimidade que não é importunação contratar um detetive para vigiar ex-mulher. E isso num caso tão complicado que envolveu o STF em pedido de medida protetiva após denúncia de agressão. O fato de que o beneficiado com tal decisão unânime seja um ex-ministro do TSE não ajuda a compreender a decisão. O Ministério Público foi contrário, novamente. Ainda cabe recurso da decisão.
O raciocínio dos 5 ministros do STJ, o tribunal da cidadania, é de que não se pode aplicar a pena porque o artigo legal em questão exige um dolo especial. Pedi explicação e repasso. Não basta fazer o que a Lei de Contravenções Penais diz que não pode, é preciso fazer pelos motivos que a lei diz.
Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:
Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa
A pena só seria aplicada no caso de motivação por acinte ou por motivo reprovável.
Vamos então ao detalhe. O que é exatamente acinte? Segundo o Dicionário Oxford:
advérbio
1.de forma intencional, de propósito, de modo provocador.
2.substantivo masculino
ação praticada com premeditação, de caso pensado, a fim de contrariar, desgostar ou ofender alguém; provocação.
Creio que, no caso da lei, trata-se do substantivo masculino.
Passemos ao detalhe de número 2, o motivo reprovável. O que é reprovável exatamente? É mais um daqueles casos de classificação altamente subjetiva que cada um entende como quer e, às vezes, de acordo com a cara do freguês. Obviamente não foi o caso. Segundo o Dicionário Oxford, reprovável é:
adjetivo de dois gêneros
1. que merece reprovação.
Nem o dicionário ajuda muito. Duas pessoas diferentes merecem reprovação pela mesma atitude? Antes de dizer que sim, vamos a uma hipótese. Merece reprovação o indivíduo que buzina na frente de um hospital? E se ele estiver passando mal ao volante e for a única forma de pedir socorro? A vida não é tão simples.
Temos um dos casos mais rumorosos de violência doméstica de Brasília, um escândalo da alta cúpula do poder. Torna-se ainda mais complicado pela exposição e pelo status dos envolvidos, como vemos agora. Um ex-marido acusado de agressão, contra quem se pediu medida protetiva, parte em um processo marcado pelo litígio, contrata um detetive particular para seguir a ex-mulher. É um acinte? Foi feito de caso pensado para contrariar, desgostar, ofender ou provocar? Merece reprovação? O Superior Tribunal de Justiça diz que não: "no caso concreto, o agente contratou, por interposta pessoa, detetive para vigiar a vítima, sem haver elementos que demonstrem a intenção dele de, com essa conduta, molestar ou perturbar o alvo da vigilância".
A Justiça brasileira acatou as alegações da defesa. Se houve algum comportamento indevido, se a ex-mulher sentiu-se perseguida ou foi de alguma forma molestada, não é por culpa do ex-marido. Aí é com o detetive, que pode ter saído da linha sem que o marido saiba. Ele contratou um advogado para que contratasse um detetive particular para seguir a ex-mulher. Detetive particular não é ilegal, é profissão legalizada."Ora, o fim específico de tão somente monitorar alguém não pode ser considerado crime, até porque, como se vê do seguinte precedente firmado na Sexta Turma deste Tribunal, a atividade de detetive particular é profissão regulamentada pela Lei 13.432/2017, não tendo a simples contratação desse profissional o condão de caracterizar a ocorrência da contravenção penal de perturbação à tranquilidade", diz o relatório do STJ.
Foi acatada a alegação da defesa. "Não há que se falar que a denúncia, ao descrever os fatos, atribui responsabilidade objetiva ao paciente, porquanto há ali a indicação de que o denunciado agiu como mandante, pois contratou um advogado para que este contratasse um detetive, ou seja, mediante sua ordem e com o fim específico de monitorar a vítima, a qual ficou assustada e temerosa com a perseguição sofrida. Diversamente do que alega o impetrante, consta na denúncia, de maneira clara, a indicação do elemento subjetivo específico do tipo consistente no acinte ou motivo reprovável, com a afirmação de que “o motivo da perseguição feita pelo denunciado foi o registro de ocorrência policial anterior feito contra ele pela vítima, de forma a manter o controle sobre a esposa”. Inexiste a alegada contradição entre a motivação exposta, relacionada com o registro de ocorrência policial e a intenção de manter o controle sobre a vítima, com o fato mencionado na denúncia de que a ofendida retratou-se do pedido de medidas protetivas, porquanto constituem, por óbvio, questões diversas.”, foi parte da argumentação.
Não foi assim que entendeu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. O ex-ministro do TSE também tentou ali interromper as ações movidas pela ex-mulher alegando a perseguição pela contratação do detetive particular. O TJDFT decidiu assim:
1. A contratação de detetive, ainda que por interposta pessoa, para perseguir a ex-companheira, causando-lhe temor, configura, em tese, a contravenção penal de perturbação da tranquilidade.
2. Não há que se falar em inépcia da denúncia cujo teor descreve os fatos típicos de maneira adequada e suficiente, narrando as circunstâncias da infração imputada ao paciente de modo a garantir o exercício do contraditório e da ampla defesa, o que satisfaz os requisitos do art. 41, do CPP.
O caso específico não é de punir ou inocentar pela contratação de um detetive particular para seguir a ex-mulher. É para que ela tenha ou não o direito de apresentar essa queixa e esperar que a queixa em si seja analisada por um juiz. A decisão do STJ significa que a mulher não tem o direito nem de se queixar à justiça sobre a contratação de um detetive particular pelo ex-marido, numa separação complicadíssima. Vejam só, o ex-marido é um dos principais conselheiros do presidente, que pode sancionar ou vetar a nova lei de stalking. Bem vindos à realidade do poder.
O STJ decidiu que a ex-mulher do ex-ministro do TSE não pode apresentar ao Poder Judiciário o caso em que reclama de perseguição pela contratação do detetive particular que a seguia. A lei em que isso se baseava já é, há muitos anos, tida como insuficiente para garantir a liberdade de pessoas vítimas de perseguição. O Congresso Nacional elaborou a muitas mãos um avanço jurídico já feito nos países do mundo civilizado, a criminalização do stalking. A nova lei não mudaria em nada este caso, já que a lei só retroage em benefício do réu.
No entanto, várias outras atitudes que hoje não são punidas passariam a ser, caso feitas adiante. A quase totalidade das vítimas de perseguição é mulher, mas também há casos de homens perseguidos pelos mais diversos motivos. (Neste artigo, o perfil completo dos stalkers). Quem já foi vítima sabe que a legislação de hoje protege o criminoso, dá a ele o direito de subtrair a paz de espírito e a liberdade da vítima se tiver vontade. Infelizmente, isso ocorre também em processos de separação conjugal.
Um dos principais conselheiros do presidente da República, a quem cabe sancionar ou vetar o projeto de stalking, acaba de ver ministros do STJ dizerem que a ex-mulher dele não tem direito nem de processar por perseguição. Esse caso terá alguma influência sobre a decisão de sancionar ou não a lei e sobre a data em que essa decisão será tomada? Jamais saberemos. Também jamais saberemos exatamente em que medida houve ou não influência sobre a decisão do STJ conhecer os envolvidos tão de perto. Só sabemos que somos todos afetados por essas decisões.
É importante deixar claro que, no caso de violência doméstica, não temos ainda um desfecho. O fato de que dure tantos anos um processo dessa natureza faz com que o processo em si se converta em castigo. É muito complicado termos tolerância com a permanência em posições de poder das pessoas envolvidas em dramas desta natureza. São brigas viscerais, que atormentam a alma humana e na qual todos nós colocaríamos em jogo as armas que estivessem às nossas mãos.
Tivemos no TSE, em pleno julgamento da chapa Dilma-Temer, um ministro que havia sido advogado da chapa e, ainda por cima, estava envolvido em um processo judicial de violência doméstica. Não discuto se tinha ou não condições de fazer tudo ao mesmo tempo, nem qualificada para isso sou. Só pergunto de quem é o interesse que estivesse em tal posição. Não me parece que seja o do povo brasileiro. Um dos nossos maiores desafios como nação é tratar o poder com o respeito que merece. Emana do povo e em nome dele será exercido. A condescendência com poderosos nos trouxe até aqui. Nos levará onde?
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