Livros e lápis em primeiro plano. Ao fundo, uma lousa desfocada| Foto: Freepik
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Imagine uma escola sem livros. Não vou dourar a pílula, a maioria da sala de aula iria amar. Se o movimento fosse feito por alunos, não tenhamos nenhuma ilusão, eles iriam preferir trocar tudo por videogame. Aliás, durante a pandemia, muitos deles conseguiram. O estranho é quando a proposta não vem dos alunos, mas dos professores. Pensando bem, dependendo do salário, é melhor tirar tudo quanto é livro. Se fingem que pagam, que mal tem em fingir trabalhar? Ocorre que é nos Estados Unidos.

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Unidos pela hashtag #DisruptTexts, professores, tuiteiros e ideólogos das teorias críticas querem higienizar a linguagem e propõem banir tudo o que for racista, misógino, antissemita ou contra pessoas com deficiência. E isso vai de Homero a Shakespeare, sem absolver ninguém. Capaz de só poder mesmo usar livros escritos por eles próprios.

O movimento em si foi criado por quatro professoras negras que dizem claramente não recomendar banimento de livros nem índice de livros proibidos. Mas parece que ler não é mesmo o forte do pessoal que as segue. Não estão nem aí para isso e continuam advogando o banimento de obras, autores e, se reclamar, parece que vão banir duas vezes. Aliás, as próprias educadoras parece que não leram essa coisa de ser contra banimento, já que advogam por isso nas redes sociais.

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Se você ainda não aprendeu como funciona o radicalismo na era das redes sociais, talvez você seja da época em que radical era sério. Eu vivi esse tempo. O radical vivia como pregava, levava as coisas lá dele a ferro e fogo, ficava meio escanteado pela sociedade. Agora não precisa de mais nada disso e nem de muito esforço, só ser bem cara-de-pau. Prega algo bem radical, repete, incita os outros e, quando reclamarem, diz que foi mal entendido ou era brincadeira. Vale para qualquer radicalismo, nas mais diversas tendências ideológicas e em tudo quanto é país.

No caso do banimento dos livros, o pessoal do #DisruptText está há um ano nas redes sociais falando individualmente dos livros e autores que pretende ver banidos ou se recusa a ensinar. A imprensa golpista começou a dizer que isso é impedir que as crianças tenham acesso à literatura. Qual a solução? Faz um textão, vídeo, post e o que mais der na telha se vitimizando, dizendo que jamais quis banir livros de verdade e que isso é dito para legitimar perseguições. O golpe está aí, cai quem quer. E nós, brasileiros, somos peritos nisso: acreditar em golpista.

Mas esse está tão bom que funciona até com americano. Se bem que eles andam acreditando ultimamente num povo que até a gente acha motivo para dar risada. Uma das criadoras do movimento, que se define como educadora antirracista, reclama que muitos dos clássicos foram escritos há mais de 70 anos. “Pense na sociedade dos EUA antes disso e nos valores que moldaram esta nação depois. ISSO é o que está nesses livros”, diz nas redes para defender que crianças não devem ter acesso a eles.

“Absolver Shakespeare de responsabilidade ao mencionar que ele viveu em uma época em que sentimentos movidos pelo ódio prevaleciam, corre o risco de enviar uma mensagem subliminar de que a excelência acadêmica supera a retórica odiosa.”, explica a escritora Padma Venkatraman ao defender que crianças só tenham acesso a publicações escritas no vernáculo politicamente correto contemporâneo. Coincidentemente, ela escreve nesse tal vocabulário. Não há nenhum interesse envolvido.

Há farto material de professores afirmando que prefeririam morrer a ensinar sobre algum livro. Um exemplo é "A Letra Escarlate", romance clássico norte-americano que se passa na Salem de 1850 e foi traduzido para o português por Fernando Pessoa com o título "A Letra Encarnada". Muitos argumentam que só usariam o livro para ensinar a brigar contra a misoginia. Eu não queria dar spoiler, afinal você teve menos de 300 anos para ler, mas o final do livro é uma das primeiras publicações em que mulheres dão a volta por cima na hipocrisia dos puritanos ingleses.

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Devo esclarecer que não sou contra a iniciativa. Explico. Todos que fazem o menor questionamento ao cancelamento de textos e autores viram alvos do grupo defensor do #DisruptText. Obviamente a pessoa passa a ser xingada de supremacista branca, fascista, racista, nazista e misógina. Basta fazer uma pergunta para passar a personificar todo o mal do universo. E eu estou sem tempo para ver mais xingamentos, prefiro esse pessoal fiel que me xinga diariamente há anos e inventa mentiras para justificar a própria perversidade.

Assim que alguém questiona o #DisruptText, os seguidores passam a perseguir a pessoa, como foi feito com a escritora Jessica Cluess. Ela cometeu o disparate de dar um spoiler sobre o final de "A Letra Escarlate" no Twitter. Bastou para passar a ser xingada com consistência por toda essa gente fina, elegante e sincera que luta para banir a linguagem ofensiva. E, obviamente, os líderes do movimento disseram que não têm nada com isso porque não controlam os seguidores. Nós temos mais trouxas, mas não a exclusividade.

A minha grande curiosidade é sobre o resultado que toda essa gente bem intencionada pretende atingir. Todos os movimentos contra a discriminação no mundo foram feitos por gente que cresceu lendo autores machistas, racistas e escravagistas. A bem da verdade, de 100 anos para trás, podemos colocar todos nesse balaio. Você só combate o que reconhece. Qual será o resultado de uma geração a quem a gente não conta o que é errado e esconde que os antepassados erraram?

Mas nada disso importa porque criança odeia bate-boca de Twitter e parece que o grande objetivo é mesmo esse. Muito mais importante do que as gerações futuras e o preconceito é poder juntar um grupo de gente perfeita e muito melhor que todas as outras pessoas. É para isso que existe rede social. Não duvido que, no meio desse grupo, exista muita gente bem intencionada, pensando em como construir um mundo com menos preconceito. Como diria o filósofo, o problema não é o 99% santo, é o 1% vagabundo.

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