Preciso confessar o meu nível de ignorância. O único ritual indígena com uso de espingarda que eu conhecia até o dia de hoje era o filme de faroeste norte-americano. Daí eu descobri um parecer do Ministério Público Federal em que um assassinato de um menor de idade com arma de fogo é considerado ritual indígena. Deve ser mesmo, eu é que sou burra. Antropólogos e procuradores opinaram. Aliás, o MPF faz citações contrárias à decisão que ele próprio toma. Mas o erro deve ser meu.
Vamos à história. Em 24 de julho de 2015 uma mulher indígena foi à delegacia de Itaituba, denunciar que seu filho de 16 anos foi assassinado com arma de fogo um mês antes por dois homens indígenas da aldeia Sai Cinza. Ela própria teria dito na delegacia que o filho foi morto no contexto de algo chamado "pajelança brava", uma tradição Murunduku de matar quem faz magia negra. Pelo jeito não é consenso, já que ela foi à polícia. Mas o MPF pediu arquivamento do caso. É um ritual tradicional, gente.
Depois do assassinato, o corpo do adolescente indígena foi arrastado por 10 quilômetros até um rio e esquartejado em pequenos pedaços. Fígado e coração foram retirados do corpo e triturados. As outras partes foram amarradas em uma pedra e jogadas ao rio. A "pena" teria sido estabelecida pelas autoridades da tribo após uma morte por afogamento.
Os pais da vítima consultaram o Pajé, o Capitão, o Cacique e Lideranças da aldeia. Todos eles concluíram que o afogamento só poderia ter um motivo: magia negra praticada pelo adolescente. Na tradição Murunduku, é um crime que precisa ser punido com pena de morte. Todas as aldeias dessa etnia, que é guerreira, foram fundadas com banhos de sangue. É uma situação antropológica complexa, diz o MPF. Concordo. Já estou me sentindo num filme do Indiana Jones aqui.
Ignorante que sou, li a peça do MPF dizendo ser uma situação antropológica complexa o assassinato com arma de fogo, esquartejamento, evisceração e vilipêndio do cadáver de um adolescente. Era tudo ritual típico daquele povo. A primeira cena que me veio à cabeça é a de "Indiana Jones e o Templo da Perdição", de 1984. Daí eu lembrei do Daniel Munduruku, que é um dos escritores mais premiados do Brasil. Afinal, de que cultura estamos falando aqui?
A etnia Munduruku tem 147 aldeias espalhadas em uma região que é, ao mesmo tempo, uma mina de ouro e um barril de pólvora. Há uma cobiça imensa sobre garimpo e madeireiras, mas muitas lideranças indígenas já têm experiência de negócio. Ficam esmagadas entre os interesses de garimpeiros, madeireiros e ONGs internacionais. Muitas liderenças indígenas reclamam que são subestimadas pelo MPF nessas negociações. Este ano chegaram a organizar um protesto em Brasília.
O local específico em que o adolescente foi assassinado é uma conhecida zona de confronto com inúmeros assassinatos e mobilização constante de forças de segurança e do Ibama. Em maio deste ano, as lideranças Munduruku fizeram uma carta ao ministro Barroso do STF cobrando ações mais efetivas das Forças de Segurança para garantia das vidas indígenas, de acordo com a Constituição.
Transcrevo a carta antes de voltar à manifestação do MPF sobre os mesmos Munduruku que moram no mesmo lugar falando do assassinato, esquartejamento e evisceração de um adolescente. Todos os grifos são meus.
"Povo Munduruku pede responsabilidade das forças de segurança do Estado para proteger o povo, lideranças e caciques que são contrários a invasão garimpeira na região.
Essa manhã manifestações a favor do garimpo, incentivada pela prefeitura do município de Jacareacanga, tiveram como alvo o contingente da força nacional e polícia federal que estão na região. Tentaram queimar os equipamentos e foram respondidos com bombas de gás. Não conseguindo atingir os policiais os garimpeiros e seus grupos de indígenas cooptados, foram atacar as casas de nossas lideranças.
Foi ai que a violência contra nosso povo ultrapassou todos os limites. Nesta tarde, do dia 26 de maio, por volta de 12:30h, a aldeia Fazenda Tapajós, onde mora a coordenadora da associação Wakoborun, Maria Leusa Kaba, foi invadida por garimpeiros armados e atacada, atiraram contra as casas e pessoas. Duas casas foram incendiadas, casa da própria coordenadora e de sua mãe, cacica da aldeia. A informação é que ninguém foi ferido, mas todos estão em estado de choque.
A promessa agora é seguirem para aldeia de Ademir Kaba e Ana Poxo, lideranças de nosso povo e fazer o mesmo. Precisamos que as operações da polícia prendam os criminosos que estão nos atacando e mantenham nossas lideranças seguras para realizar seu trabalho e expulsar os invasores de nossas terras, se não isso nunca vai acabar.
É inaceitável que mesmo com a presença da Força Nacional na região a aldeia de uma das nossas principais lideranças tenha sido invadida por homens armados, portando galões de gasolina que incentivam o ódio contra todos nós. Tememos pela vida daqueles que lutam sem cansar para defender a vida do povo Munduruku e o futuro de todos nesse planeta.
Por defender o rio limpo e a floresta em pé estamos sendo vítimas da política de morte desse Governo, que nos deixa à mercê de garimpeiros armados dentro do nosso próprio território.
Pedimos com urgência a presença da Polícia Federal para impedir mais violências, assassinatos e massacres decorrentes do incentivo à atividade garimpeira ilegal e da impunidade aos criminosos, como vemos acontecendo nos Yanomami e na Mundurukânia.
O nosso povo só quer VIVER EM PAZ e TER NOSSOS DIREITOS RESPEITADOS. Não somos nós que pedimos violência. Pedimos apenas a proteção das nossas terras e vidas indígenas pelo Estado, como manda a Constituição Federal. Clamamos por socorro.
ASSINAM: Movimento Munduruku Ipereg Ayu, Associação das Mulheres Munduruku Wakoborun, Associação Da’uk, Associação Arikico, Conselho Indígena Munduruku do Alto Tapaós- CIMAT"
Se faltava alguém para confirmar que as lideranças indígenas Munduruku têm plena consciência de que a Constituição manda o Estado proteger vidas dentro do território deles, estão aí elas próprias falando. Mas estamos na era do flanelinha de minoria. Pouco importa o que falem as lideranças indígenas, elas serão vistas conforme o imaginário de quem decidiu tomar conta delas. No caso, não vêem assassinato como violação da lei brasileira, diz o MPF em nome das lideranças.
Procure no Google as palavra Munduruku e assassinato. É uma experiência triste e assustadora. Toda essa região está mergulhada em um conflito sangrento há anos. Conflitos por madeira e garimpo empilham corpos de indígenas, policiais e outros moradores da região. Se, nesse contexto, ocorresse um assassinato com arma de fogo e alguém te dissesse que foi uma pajelança para eliminar a magia negra que provocou um afogamento acidental, você acreditaria? Pois é...
Minha parte preferida do documento é a que tenta explicar o reconhecimento dos métodos indígenas de justiça desde que não ultrapassem os direitos fundamentais, direitos humanos e nem impliquem em métodos infamantes. No caso específico, o MPF quer arquivar porque nada disso teria acontecido. A cultura indígena é diferente e os culpados não viram nada de errado no crime. Mas e a mãe? Não vamos complicar a história, ok?
Eu realmente fiquei muito curiosa com o raciocínio. Essas lideranças indígenas escreveram ao STF exigindo cumprimento da Constituição pelo abalo psicológico com um ataque violento que não deixou feridos. Mas, segundo o MPF, é normal para elas assassinar com requintes de crueldades um adolescente. E nada tem relação com a guerra econômica na região, foi ritual.
Só penso agora no que vai acontecer a essa mãe, que é jogada de lado como se fosse um pano sujo no começo da análise. Fosse algo tão sedimentado assim na cultura, ela poderia até se revoltar, mas não iria à polícia. O que será dela com a decisão do MPF de simplesmente não levar adiante depois que ela deu o primeiro passo? O interessante de culturas ancestrais é que elas têm muitos rituais.
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