Ouça este conteúdo
Garry Kasparov é uma lenda viva do xadrez. Eu entendo do tema o tanto que a série "O Gambito da Rainha me ensinou", para desespero do meu filho, irritado com minha inabilidade no tabuleiro. Entre quem realmente entende de xadrez, ele é frequentemente considerado o melhor enxadrista de todos os tempos.
O que pouca gente sabe é como terminou a carreira de campeão de xadrez de Kasparov, justamente no 20o ano em que era considerado o melhor do mundo. Ele é oficialmente russo, tecnicamente nascido no Azerbaijão na época da União Soviética. A família toda é de outra etnia, azeri, a de mais de 90% da população.
Na década de 1990, com a queda da URSS, a violência étnica disparou entre as antigas repúblicas. Disputas que pareciam esquecidas viraram um caldeirão de pólvora. Os azeris foram alvo de perseguição étnica e a família de Kasparov fugiu do Azerbaijão em 1995. Dez anos depois, ele deixou o xadrez para integrar o movimento pró-democracia da Rússia. Em 2013, ameaçado de prisão por Putin, mudou-se para Nova Iorque, onde chefia uma organização de Direitos Humanos.
Kasparov é um escritor prolífico. Tem livros sobre xadrez, poder, democracia. Gosto muito de um que compara o xadrez às decisões que tomamos na vida. O mais famoso, no entanto, é o que previu em 2015 que Putin invadiria a Ucrânia depois da operação feita na Criméia. "Winter is Coming", título inspirado em Game of Thrones, classificava Putin como uma ameaça existencial escondida à vista de todos.
"A moral prática é que você não deve confiar em um escorpião porque a lógica e a razão não ajudam muito quando você está morto. Outra lição é que nem todos agem no interesse um do outro, ou mesmo em seu próprio interesse, e que a verdadeira natureza pode superar a lógica e a autopreservação. Penso nisso toda vez que ouço diplomatas europeus falarem sobre um cenário em que todos saem ganhando quando se trata de Putin e da Ucrânia", escreveu Kasparov há 7 anos. Acharam que era vendetta, imperialismo americano ou misto dos dois.
Garry Kasparov analisa o fim da União Soviética como uma ilusão de liberdade democrática que acabou em um passo decisivo na ilusão de construir a "Grande Rússia". Para ele, um ponto é particularmente perigoso. A ditadura da URSS era uma estrutura de poder, precisava minimamente respeitar regras para existir. Agora não. A ditadura é de Putin e quem fica no caminho dele é inimigo.
Tenho visto muita gente tentando entender se Vladimir Putin é de esquerda ou de direita, se é liberal ou conservador. É um erro tentar aplicar uma lógica das democracias liberais a um tipo de regime e ideia de soberania muito distantes da nossa cultura. A ideia da "Grande Rússia" não é dentro dos parâmetros políticos que fazem parte do nosso imaginário, por isso fica tão difícil entender essa guerra.
Há muitos anos, conheci em Roma uma russa que havia conseguido fugir do país após o fim da União Soviética. A família dela era perseguida politicamente, foi embora sozinha, perdeu o contato dos parentes. É um relato que jamais me saiu da cabeça. Ela dizia que a alegria da liberdade foi logo substituída pela sensação de pisar em outro planeta quando chegou à Itália.
Ela havia crescido na União Soviética, tinha como verdade que o mundo gravitava em torno da Rússia. Os planos de fuga traçados aos 20 anos e na era pré-internet levavam em conta que todo mundo falava russo, que os costumes e cultura da Rússia eram a regra em todos os outros países, que os produtos russos estavam por todos os lados.
Não sabia dizer o que havia sido mais difícil. Aprender as habilidades necessárias para ganhar a vida sozinha num outro país foi um esforço enorme. Talvez pior tenha sido o impacto psicológico de entender que sua vida havia sido construída em torno de uma mentira. Como saber o que é verdade? A gente já passa raiva com fake news e imprensa tendenciosa. Avalie ter essa vivência. É algo muito distante do nosso imaginário e presente nas ex-repúblicas soviéticas.
Por isso a análise de Kasparov é tão preciosa. Ele compreende o pensamento ocidental, mas também tem a vivência que não tivemos, a da União Soviética. "Você vai dizer que eu sou irracional, cego pelo ódio, como ouvi em 2015? Espero que não. Putin deve ser detido porque o impensável agora é o possível. O mundo acordou, finalmente, e muitos passos que recomendei na semana passada estão acontecendo. Não é o suficiente.", adverte o ativista pelas redes sociais.
Sinceramente, não tenho parâmetros para saber se ele está certo ou errado. Kasparov tem uma teoria segundo a qual comportamentos futuros são previsíveis levando em conta comportamentos passados, ainda que as pessoas possam mudar. Ele acertou em 2015 sobre a inevitável invasão da Ucrânia. Estaria certo agora?
Confesso que pensei uma dezena de formas diferentes de resumir o que Kasparov disse em seu livro prevendo a invasão da Ucrânia e agora, ao analisar o ocorrido. Infelizmente, o danado escreve bem demais. Não tem como explicar melhor do que ele próprio explica. É uma análise embasada, contextualizada e que leva em conta fatos que começam na virada do milênio. Resolvi traduzir trechos, falam melhor do que eu faria.
Em 2013, Garry Kasparov deixou a Rússia, diante da ameaça de encarceramento feita por Putin. Em 2014, ocorreu a invasão da Criméia, o primeiro conflito em que Putin usou também a máquina de propaganda russa para desinformação e os ataques cibernéticos como guerra auxiliar. Em 2015 foi publicado "The Winter is Coming".
Trechos do livro de Kasparov em 2015
"Sem uma estratégia orientadora a seguir, as democracias perdem para ditaduras oportunistas que podem agir mais rapidamente e sem equilíbrio de poderes ou pessoas a serem responsabilizadas. Não podemos esperar para agir até que a catástrofe já esteja em andamento. Essa atitude de 'me acorde quando a Polônia for invadida' foi tola em 1938 e é ainda mais tola em 2015 porque temos, para nos educar, a lição de setembro de 1939 – quando a Polônia foi invadida – e os seis terríveis anos que se seguiram. Pelo menos Chamberlain não tinha então um livro de história para lhe dizer o que estava por vir".
“No Kosovo, assim como na atual invasão da Ucrânia [ele se refere à de 2014], nenhum país da OTAN estava sendo atacado. Mas Bill Clinton continuou: Se nós e nossos aliados permitíssemos que esta guerra continuasse sem resposta, o presidente Milosevic interpretaria nossa hesitação como uma licença para matar. (…) Imagine o que poderia acontecer se nós e nossos aliados decidíssemos olhar para o outro lado enquanto essas pessoas são massacradas às portas da OTAN. Isso desacreditaria a OTAN, a pedra angular sobre a qual nossa segurança se apoiou nos últimos 50 anos".
"Toda a catástrofe de 2014 parece um choque repentino. No entanto, como tenho alertado muitas vezes por pelo menos 15 anos (ele começou os alertas em 1999), a última erupção repressiva e violenta de Putin foi construída de forma constante ao longo do tempo e só se intensificou após anos de negociações ocidentais e fingindo que estava tudo bem. Não houve nenhuma grande mudança por parte de Obama que provocou Putin, nenhuma mudança drástica nas atitudes de Putin ou na sorte da Rússia que exigiu a invasão da Ucrânia. Sempre se moveu nessa direção, e a única questão era se os líderes ocidentais mudariam ou não sua atitude para evitar que tal erupção acontecesse."
“As raízes de Putin na KGB infelizmente moldaram um estilo de governo que não era reformista nem democrático. O fio condutor de sua política doméstica com sua política externa era seu esforço para explorar o medo: os temores dos russos de que seu país estivesse sob ataque de forças externas hostis (os chechenos, a OTAN, os defensores do livre mercado, por exemplo). Teme que, sem um líder forte e pragmático, a Rússia volte a se tornar ingovernável, instável e potencialmente agressiva. Quinze anos depois, as táticas de intimidação de Putin continuam as mesmas e igualmente eficazes."
"Quando o pior da violência russo-georgiana sobre a Ossétia do Sul estava terminando (isso foi aproximadamente em 2008), lembrei-me de uma conversa que tive em Moscou em 2005 com um alto funcionário da União Europeia. A Rússia era muito mais livre do que hoje, mas o ataque de Putin aos direitos democráticos já estava se acelerando.
'O que seria necessário', perguntei ao funcionário, 'para a Europa parar de tratar Putin como um democrata?' Proibir todos os partidos da oposição? Ou se ele começar a matar pessoas nas ruas?
Ele deu de ombros e me disse que mesmo assim haveria pouco que a UE poderia fazer, acrescentando que 'manter o vínculo sempre será a melhor esperança para os povos da Europa e da Rússia'. Espero que os cidadãos da Geórgia e da Ucrânia discordem."
"O Kremlin não podia admitir que os ucranianos, as pessoas mais próximas dos russos, lutavam por sua liberdade."
"Em toda a Euromaidan (Revolução da Dignidade, que derrubou o presidente ucraniano pró-Rússia em 2013), autoridades russas proclamaram acusações cada vez mais histéricas sobre o papel de 'agentes estrangeiros' nos protestos. Apesar de não ter provas, o Kremlin denunciou repetidamente os cidadãos ucranianos por terem sido treinados e armados pelos Estados Unidos e tramarem um golpe violento. Esse argumento lembrava a maneira como a União Soviética se referia aos dissidentes.”
“Mais uma vez, Putin refutou as previsões de seus apoiadores ocidentais e continuou sua invasão do leste da Ucrânia. Alguns meses depois, milhares de ucranianos, incluindo muitos civis, foram mortos e centenas de milhares foram forçados a fugir. As forças armadas ucranianas estavam em número muito inferior às 'forças rebeldes', embora não houvesse nenhum movimento rebelde ou separatista notável no leste da Ucrânia até que Putin descobriu um exército enorme e bem armado."
A análise de Kasparov sobre a invasão da Ucrânia em 2022
O ativista e campeão de xadrez escreveu um longo fio no Twitter analisando o atual estágio do conflito. Ele não vê como algo novo, contextualiza como um crescente desde a posse de Putin como chanceler em 1999, passando pela invasão da Criméia em 2014 e seu desdobramento agora.
Ex-integrantes da KGB estão povoando as televisões europeias nos últimos dias. Analisam a personalidade de Putin, que foi chefe deles. Alguns dizem sem titubear que não há limites para os planos do ditador russo. Houve um que, ao ser perguntado sobre o que faria Putin parar, disparou: "só se matarem ele". Garry Kasparov sugere outra linha de raciocínio, a que separa o ditador dos que estão dispostos a dar apoio a suas ideias de expansão da "Grande Rússia".
"A guerra de Putin contra a Ucrânia entrou em sua próxima fase, de destruição e matança de civis. Também faz parte da Guerra Mundial de Putin, uma guerra contra o mundo civilizado do direito internacional, da democracia e de qualquer ameaça ao seu poder, que ele declarou há muito tempo".
"A negação do mundo livre desta guerra e décadas de apaziguamento permitiram a Putin ameaçar e conquistar no exterior enquanto transformava a Rússia em um estado policial. O preço para detê-lo subiu cada vez que ele avançou sem contestação. Os ucranianos estão pagando esse preço com sangue".
"Se Putin não for detido agora, não for impedido de destruir a Ucrânia e cometer genocídio contra seu povo, haverá uma próxima vez e será na OTAN, com uma ameaça nuclear sem precedentes. Não deixem Putin escalar novamente em um momento e local de sua escolha".
"Todo mundo está citando meu livro de 2015 Winter Is Coming e dizendo que eu estava certo e 'ouça Kasparov'. Mas você ainda vai ouvir quando eu disser que isso exigirá sacrifício e risco? Não apenas os preços do trigo e do gás, não apenas chalés vazios e lobistas desempregados. O fácil acabou".
Kasparov faz uma série de recomendações:
- Não posso exigir que a OTAN ataque diretamente as forças russas, mas posso falar da história e do conhecimento de Putin. Um ditador que já cruzou todas as linhas não pode ser impedido de escalar com moderação. Se ele destruir a Ucrânia, ele não vai parar.
- Não estamos tentando apelar para o assassino em seu bunker nos Urais. A mensagem é para aqueles que cumprem suas ordens. Vão mesmo cumprir? Todos eles desejam morrer? Putin vai escalar de qualquer maneira se não for parado agora. Ele vai, como sempre fez antes, e o preço será mais alto.
- Enviem a Rússia para a idade da pedra tecnológica. Sem suporte, sem peças, sem serviços. Os boicotes do petróleo não são necessários se a tecnologia do petróleo não estiver disponível. A indústria vai parar. Isso significa um pé de guerra em sacrificar, reequipar e aumentar a produção para substituir. É guerra.
- É sempre trágico que os cidadãos comuns sofram, mas eles não estão sendo bombardeados em suas casas como os ucranianos. Todos os elementos da sociedade russa que podem pressionar Putin devem saber que precisam escolher entre ele e todo o resto. Alguns vão se agarrar a ele, mas por quanto tempo?
- Mensagem clara aos generais russos de que eles sofrerão aniquilação se uma polegada da OTAN for tocada. Enviem à Ucrânia todas as armas, incluindo os jatos que foram bloqueados, como se Putin se importasse com a diferença. Parem de adivinhar os pensamentos dele e façam o que for necessário.
- Cada dia que a Ucrânia resiste dá a oportunidade de comunicar essa catástrofe às únicas pessoas que podem realmente parar Putin, o povo russo, de oligarcas a comandantes e manifestantes. Que todos na linha vertical de poder saibam que serão tratados como criminosos de guerra. Eles são.
- Não deixem nada em reserva. A velocidade é essencial para interromper os pagamentos e pegá-los e seus ativos antes que se escondam. Ameaças como 'ele não sabe o que está por vir' não funcionam se Putin não acredita em vocês. Mostrem a ele. E mostrem aos russos que não há como voltar à situação de antes com Putin. Nunca.
- Eliminem os políticos corruptos, empresários e dinheiro obscuro que corromperam uma geração para fechar os olhos ou servir a regimes autoritários. Acompanhem as doações, pagamentos, presentes, influência. Façam com que eles sejam responsabilizados.
Kasparov estaria certo ou a experiência tenebrosa da família dele com a KGB em que Putin era chefe e sua ascensão ao governo russo contaminaram a análise? Eu não faço a menor ideia. Só sei que é uma análise que vale a pena ler. Falamos de alguém que acertou antes sobre as atitudes de Putin e conhece mais o mandatário e a cultura da Rússia do que a gente.
No momento em que uma guerra vira debate raso de rede social, vemos o esplendor do Realismo Ingênuo. É um fenômeno psicológico natural dos seres humanos. Acreditamos saber mais sobre o outro do que o outro sabe sobre a gente. O conceito está no centro da análise de Kasparov. Muita gente acredita que decifrou Putin, de tuiteiros tupiniquins a líderes políticos de grandes potências. Talvez ele é que tenha decifrado todo mundo.