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Suspeito que existe uma cota para homem que tem medo de mulher nas eleições. Ou nós tivemos o dom de eleger todos eles, por todos os cantos do Brasil, em todos os espectros políticos. Homem que tem medo de mulher tende a se expressar com agressividade, violência ou condescendência para se convencer de que é forte. Não é machismo, é mecanismo de defesa, mas significa frouxidão.
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Há quem argumente que também se passou do limite no tratamento com homens e que há mulheres que se comportam de forma reprovável. É verdade e não anula a escalada de ataques de baixo nível contra mulheres. A psicologia explica a utilidade desses ataques para o marketing político na era da vida digital.
Escolher mulheres como alvo é uma técnica para formar grupos unidos pelo ressentimento e que agem na lógica do inimigo comum. Por que mulheres? Primeiro porque é mais fácil unir homens pela violência e depois porque elas serão a representação dos conflitos pessoais não resolvidos. Inventar que o ataque baixo tem relação com política, por exemplo, é o alívio moral que une o grupo, a desculpa para que a indecência seja vista como nobre. Eles até acreditam mesmo.
Calculo que, se a gente juntar a energia do desrespeito a mulheres da CPI, não tem risco de apagão e pode até fechar Itaipu. Hoje, o presidente da República, no exercício da função, xingou uma mulher de quadrúpede. Já fez até insinuação sexual sobre mulher em forma de gracejo. Políticos talvez gostem desse comportamento digno de bordel de beira de estrada, mas têm de aprender a se comportar feito gente.
Quem me acompanha sabe que falo desse tema há tempo, principalmente porque é uma ferramenta de criação de grupos digitais o ataque contra mulheres. Não no geral, do tipo "separar a ovelha do rebanho", focar sempre em uma só para maximizar o ataque e diminuir a defesa. Isso gera um clima de excitação, uma competição no grupo para ver quem é mais radical que o outro. Contaminou as relações pessoais.
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O noticiário político desses tempos talvez venha a ter nas crianças o mesmo efeito do acesso fácil a filmes pornô. Aprendem que mulher não vale nada, serve só para ser usada e jogada fora, idealizam o que é uma relação entre homens e mulheres, passam vergonha no mundo real porque pensaram que iam abafar. Homem bem sucedido e poderoso é o que se comporta da forma indecente que temos visto? Não é isso que eu quero ensinar ao meu filho.
Estava vendo o depoimento da doutora Luana Araújo na CPI. Os senadores adoraram a presença dela. Mas nem gostando da mulher eles conseguem tratar feito ser humano. Onde o senador Humberto Costa esqueceu a noção para dizer a ela, naquele tom condescendente, que errou ao pensar que poderia salvar vidas neste governo? Ela é criança? Ele sabe por que ela tomou a decisão e se poderia ou não salvar vidas? Não, mas se não deixar nas entrelinhas que é melhor que ela, talvez tenha algum surto de urticária, sei lá.
A diferença do tratamento dado às mulheres e homens que foram depor na CPI não é admissível. Os ex-ministros jamais foram inquiridos no estilo leão de chácara utilizado para tratar as médicas Nise Yamaguchi e Mayra Pinheiro. Talvez na família deles isso seja normal. Na minha não é e eu aposto que na sua também não. Ali não é o Carandiru, é o Senado, eles têm de se comportar feito gente. Não se comportam porque não exigimos isso dos políticos que gostamos.
Como faz muito tempo que cancelaram minha carteirinha do clube das feministas devido à recusa em ser capacho e compactuar 100% com pacotes ideológicos, estou escolada em como funciona defesa de mulher. Se é do mesmo espectro político, todo mundo fica indignado. Se for do espectro oposto, começa o festival de arrumar desculpa para o que não tem. Ela mereceu, provocou, não deveria ter feito tal coisa, esperava o quê, é mimimi, muito sensível, enfim.
O lodaçal moral em que nos metemos pode ser medido pelo caso do médico que conseguiu a façanha de ser preso por assédio no Egito. Numa ditadura islâmica. A lei egípcia não considera que mulheres estejam no mesmo patamar dos homens. O testemunho judicial de uma mulher não tem o mesmo valor. É recente a lei que permite que a mulher peça divórcio e, em caso de separação, tenha direito de pleitear a guarda dos próprios filhos.
Não precisa nem considerar que mulher tem os mesmos direitos que o homem para saber quando ele abusa. O médico brasileiro foi a uma loja de produtos históricos, conversou com uma mulher religiosa que estava trabalhando, tratou como se fosse idiota, falou indecências numa língua que ela não conhece, colocou na internet e isso viralizou. Num país que oficialmente considera mulher inferior já se tem noção da maldade e falta de respeito no ato. Aqui teve gente realmente achando que é brincadeira e não tem problema. É o alçapão que dá no subsolo do fundo do poço.
Hoje, o presidente reclamou do comportamento da CPI com a doutora Nise e também xingou uma mulher de quadrúpede. Formadores de opinião que ficaram indignados com o xingamento acham que o comportamento da CPI ontem foi sensacional. Um número gigantesco de influenciadores sonsos justifica indecências do político que admira com a alegação de que o outro lado só defende os seus. Esse circo de insanidade e canalhice passou dos limites.
A direita acusa a esquerda de se dizer feminista mas também desrespeitar mulheres quando convém e de defender só mulheres de esquerda. É verdade. Só que não justifica o fato de milhares e pastores evangélicos e conservadores que apoiam o presidente da República calarem diante de comportamento completamente indecente com mulher. As pessoas são o que toleram.
A esquerda acusa a direita de ser retrógrada e tolerar machismo, só falar de feminismo quando é para defender uma mulher de direita e cobrar as feministas. É verdade. Não justifica o silêncio diante dos ataques baixos às mulheres que se recusam a pagar pedágio ideológico. Para ficar em três exemplos, Tábata Amaral, Marina Silva e Heloísa Helena recebem da esquerda um tratamento que não se dá nem a cachorro, fora o festival de difamação com fake news.
Diante de chiliques e ofensas baixas contra mulheres emerge um surto de sonseira. Não foi isso que ele quis dizer é a versão telepata. Ele é assim mesmo é a versão cínica. Ele está sendo espontâneo é a versão tucana, que usa uma palavra chique para descrever uma atrocidade. Não é a sociedade que precisa se adaptar aos problemas de comportamento de quem quer poder, são as pessoas que pretendem exercer poder que precisam aprender a se comportar.
Algumas pessoas têm a impressão de que sempre fomos assim. Lembre da reação da maioria das pessoas a dois episódios: o "estupra mas não mata" de Paulo Maluf e o "feministas de grelo duro" de Lula. Nós temos agora uma metralhadora disso a cada minuto e a maioria acha normal. De alguma forma, o país em que vivemos foi transformado nesse baile funk em boca de fumo que estamos vivendo.
Não arrisco dizer quais os componentes dessa derrocada moral. São múltiplos e complexos, de várias áreas. Tenho clareza daqueles que são da minha área, a influência da dinâmica de redes e dos algoritmos no aprofundamento do lodo moral e na criação de justificativas morais para perversidade e indecência.
Há uma característica da alma humana muito explorada pelos algoritmos, o schadenfreude. Não tem tradução, é uma espécie de contrário da inveja. Na inveja a pessoa fica brava porque outra pessoa se deu bem. No schadenfreude a pessoa fica feliz porque outra pessoa se deu mal. A pessoa fica tão inebriada pelo sentimento de prazer ao ver outra sofrendo que nem pensa se considera a situação certa ou errada. Tudo o que te provocar schadenfreude chegará rápido a você porque provoca interação e mais tempo usando a plataforma.
Aí passamos para as tais das bolhas, a convivência em grupos que pensam da mesma forma e gostam das mesmas coisas. Muitas pessoas sentem segurança na ideia de que estão num grupo inteiramente bom, lá dentro só há coisas boas. Tudo o que é ruim vem de fora e o que vem de fora é ruim. Tudo o que eu faça para proteger o grupo é válido. Tudo o que eu faça para impedir ataques das pessoas de fora é válido.
Há dois problemas com a ideia de viver num grupo perfeito que luta contra o mal, a relativização da dignidade humana e a subtração dos conceitos de certo e errado. A dignidade deixa de ser inerente à condição humana e inegociável, passa a depender de estar ou não no seu grupo. Cria-se a ideia de que tudo é possível, não tem mais certo nem errado a depender de quem é. Qual a chance de dar certo?
As redes também nos dão facilidade de obter algo que o ser humano ama, julgar os outros. Apontar o dedo para julgar, mesmo que seja só dentro da nossa cabeça, dá um prazer danado. Só disciplina religiosa para livrar de julgar os outros e mesmo assim tem gente achando que "orai e vigiai" é a vida alheia. Há um benefício extra ao fazer isso em bolhas, sinalizar para as pessoas do próprio grupo que você não tem o defeito que apontou na outra pessoa.
A tragédia é que o pessoal começa realmente a acreditar nisso e sentir conforto nessa dinâmica. E ela leva a prestar mais atenção no que o adversário faz do que na nossa própria conduta, o que é uma insanidade. Temos formado times para enxovalhar quem é do outro time e a justificativa é a conduta da pessoa atacada. Só que permitimos a mesma conduta dentro do nosso próprio time.
Nunca foi tão importante ter princípios, ter disciplina para tentar viver de acordo com eles e lembrar que discurso sem ações que o sustentem de nada vale. A postura de desprezo pelo sofrimento alheio e descaso com a defesa da dignidade humana é um câncer que precisa ser extirpado.
Não se chega a esse lodo só pela ação dos imorais, o combustível é principalmente o silêncio de quem tem valores e deveria defendê-los. Calar diante de uma injustiça é compactuar com ela. A sorte é que isso torna o caminho mais fácil. Se cobrarmos daqueles que admiramos um padrão de comportamento no mínimo à altura do que cobramos dos nossos adversários, já é um grande passo.