Ouça este conteúdo
A radicalização é muito beneficiada pela captura de debates sérios, que acabam reduzidos a truculência e gritaria. Grupos autointitulados inclusivos e democratas têm como estratégia de convencimento a gritaria unindo uma turba nas redes, rotulando como transfóbico qualquer pessoa, seja ou não transfóbica.
Isso é o que especialistas têm chamado de transideologia e não tem nada a ver com a defesa das pessoas trans, é uma forma de utilizar essas pessoas para ganhar poder e relevância fingindo falar em nome delas. Você sabe a diferença entre militância e jogo de poder olhando o poder de convencimento. Se a intenção não é convencer, mas cancelar, não é política.
Há uma invasão dos autoritários com desculpas moralmente justificáveis no debate político, no jornalismo e nas universidades. Durante muito tempo, foi algo mais localizado na área de humanidades, já que o método científico ajuda a afugentar a introdução de vieses na pesquisa. Agora, uma das maiores especialistas em autismo do mundo reclama da intromissão ideológica na psicologia.
Tania Marshall é uma pioneira na psicologia, uma das primeiras pessoas a retratar o perfil feminino autista. É autora de dois best sellers na área, um guia de orientação para os pais de autistas e o outro sobre mulheres autistas, algo subestimado pela ciência até pouco tempo. Tem prêmios internacionais em assuntos femininos e autismo.
Apesar de não ser da área de sexualidade, começou a ter problemas com a militância da área de diversidade sexual. E isso não é pela internet, é no consultório mesmo. Um dos best sellers da psicóloga é fruto da pesquisa feita por ela que indicou vieses que afetaram durante anos a identificação de mulheres autistas.
Havia uma crença - desconfio que ainda há quem pense assim - de que homens são mais suscetíveis a doenças mentais que as mulheres. O diagnóstico mais preciso do autismo e todas suas variantes é algo muito recente. Um dos livros de Tania Marsall fala de como se subestimou o diagnóstico de mulheres autistas com base em preconceitos. No método científico, isso pode ser ajustado. Percebe-se o erro para criar solução.
Mulheres adultas e bem sucedidas estão recebendo o diagnóstico de autismo depois da mudança de visão. Um dos casos mais famosos é o da colorista brasileira Marina Amaral, um sucesso internacional. Um caso que acompanhei de perto é da policial civil Amanda Soares, impressionantemente detalhista e perceptiva, que recebeu o diagnóstico de autismo adulta. Para as duas, foi como rever um filme da própria vida.
Na época em que Tania Marshall escreveu seu primeiro blog e livro, ainda se utilizava o termo "Síndrome de Asperger", que afeta pessoas como Elon Musk, Bill Gates, Leonel Messi e várias outras pessoas que levam uma vida normal. No caso das mulheres, o erro de diagnóstico e tratamento era uma realidade preocupante. A "camuflagem social", gestos, falas e expressões faciais que os autistas imitam para conviver melhor em sociedade, acabam alterando o diagnóstico.
Parecia que mais dados científicos finalmente livrariam mulheres de erro de diagnóstico em autismo. Não ocorreu. "A crise somente piorou. Estou aqui porque tenho sido involuntariamente empurrada para um debate ideológico altamente polarizado sobre a segurança, ética, moral e salvaguardas relacionadas à medicalização precipitada de crianças australianas (e também em todo o mundo) como único tratamento médico para Disforia de Gênero", diz a psicóloga. Ela decidiu iniciar um movimento inspirada no caso Keira Bell, sobre o qual fiz um outro artigo.
Esta semana, Tania Marshall abriu um site de financiamento coletivo para escrever seu novo livro e tentar uma ação nacional sobre a medicalização desnecessária e precoce de crianças autistas. "Meu conselho profissional, transativistas e outros profissionais de saúde tentaram me cancelar. Profissionais de saúde são apenas um dos muitos alvos deles. Eu não quero estarnessa posição. Eu trabalhei com pessoas autistas que também têm disforia sexual anos antes que este debate começasse. Eu peço que se estabeleça uma pesquisa independente na Austrália sobre como lidar com crianças com disforia de gênero", diz Tania Marshall.
O Reino Unido e a Suécia já proibiram intervenções médicas irreversíveis em adolescentes que relatam ter disforia de gênero porque não há fundamento científico. O caso Keira Bell foi um marco ao mostrar uma verdadeira indústria montada em torno de erros de diagnóstico e uso em crianças de um tratamento experimental feito para homens de meia idade.
Não é incomum que adolescentes autistas imaginem ter disforia de gênero, sobretudo os que não foram ainda diagnosticados. O caso Keira Bell mostra que havia uma espécie de linha de produção de diagnósticos. As dúvidas dela não eram levadas a sério nem esclarecidas. A adolescente foi convencida a fazer uma cirurgia de redesignação sexual aos 16 anos, sem ter sequer recebido a investigação psicológica adequada. Arrependeu-se e resolveu brigar. O caso dela é de cicatrizes eternas, mas pode evitar outros.
Há quem tenha tido mais sorte, como o vencedor da primeira temporada do reality show de maquiagem Glow Up, Ellis Atlantis. Homossexual e drag queen, imaginou na adolescência que era transexual porque começou a ler características psicológicas na internet. Diante de especialistas, descobriu ser autista. Repensou então a questão da sexualidade. Conta que a família, principalmente a mãe, tiveram papel importante. Nem todos têm essa sorte, infelizmente.
Outro dia alguém postou no Twitter - e eu repostei - que a democracia foi criada justamente para evitar que alguém juntasse uma galera e saísse calando e dominando os demais na violência e intimidação. Infelizmente, nossa tolerância excessiva com quem faz esse tipo de justiçamento criou uma casta especial, com poder para dizer quem deve ser aniquilado socialmente e por que.
Ao vestir o manto do moralmente justificável, pessoas que fingem ser ativistas ganham imenso poder. Imagine você poder calar uma especialista em neurodiversidade com 30 anos de experiência apenas gritando "transfóbica". Não parece razoável, mas é o que aconteceu. Já tem gente xingando os dois best sellers de Tania Marshall. Há os que, como ela, não têm medo de cancelamento nem de troglodita querendo ganhar no grito. Muita gente está apoiando a iniciativa.