| Foto: Divulgação Netflix
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Não se consegue mais ver filme em paz. A confusão entre realidade e ficção já ultrapassou todos os limites. Agora, além de julgar que as próprias fantasias são reais, a patrulha quer transformar tudo quanto é filme em documentário. Quando eu tinha uns 13 anos, as freiras do colégio onde eu estudava resolveram fazer uma sessão de "Eu, Cristiane F. - 13 anos, drogada e prostituída". O filme tinha até David Bowie no elenco. Fosse hoje, iam ter de explicar que não estavam incentivando a prostituição.

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Vou confessar que amei "Não Olhe para Cima" porque adoro filme em que ninguém presta. O herói do filme se deixa seduzir pela fama repentina, trai a mulher, ela vai atrás dele, o cara manda a mulher embora, volta para casa arrependido e ela deixa entrar. A heroína vai na mídia gritar que o mundo vai acabar, todo mundo vai morrer e depois entrega para Deus e se joga nos braços do novo amor olhando o cometa. E esses são os bonzinhos. É assim que eu gosto.

Também acho que gostei porque vi em duas partes, metade num dia e metade no outro. Vários amigos acharam lento. Seja como for, não é um documentário. Eu sei que o Leonardo di Caprio apareceu no Twitter falando de aquecimento global. Também sei que a fina flor da intelligentsia tupiniquim jura que é praticamente um documentário sobre o governo Bolsonaro e já arrumou um personagem para cada figurão. De repente, é só uma comédia mesmo e todos estamos lá.

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Quem ficou tentando analisar não gostou. Tenta analisar "Super Xuxa contra o Baixo Astral", você vai gostar? O pessoal fala do filme como se fosse um enredo do Ingmar Bergman, um clima de "O Sétimo Selo". Intelectuais acham que só eles próprios vão entender aquele conteúdo super sofisticado. Ocorre que eles não entendem o contexto, que é a internet. E se tem uma coisa de que o brasileiro entende é zueira na internet. Tudo agora na política e na mídia é medido via redes sociais por gente que não entende direito a relação entre as reações e o mundo real.

Eu chorei de rir vendo a análise de mídias sociais sobre os conteúdos jornalísticos. Tivemos essa discussão outro dia no Master Novo Poder, da Go New: ainda temos jornalismo ou se produz o que as redes sociais propagam mais? Tem uma matéria dizendo que a Terra vai acabar em 6 meses devido ao impacto com um asteroide. Não importa, a cientista virou meme, reação negativa, pouco engajamento. Matéria importante mesmo é a do casal reatando, vão casar, traição perdoada. Engajou super, todo mundo comentando. Estamos ou não vivendo isso?

Na verdade, estávamos vivendo isso naquele preciso momento. A patrulha da lacração fazia análises divertidíssimas do filme nas redes sociais. Algumas chegavam a ser mais engraçadas do que o filme em si. Foi no meio dessa discussão que aconteceu um momento exatamente igual ao do filme e o pessoal se leva tão a sério que nem percebeu.

Serginho Groisman recebeu a atriz Juliana Paes no Altas Horas. Ela virou recentemente mais uma das inimigas número um da lacração por dizer que não quer se posicionar politicamente. No meio do programa, teve um depoimento da atriz Marieta Severo sobre suas vivências pessoais na época da ditadura militar. Contou com serenidade sobre o que viveu, sua experiência, deu suas opiniões.

Juliana Paes não interferiu no depoimento de Marieta Severo, que pediu por um país com menos polarização e mais entendimento. Algum gênio dos bastidores fez exatamente como a produção de TV do "Não Olhe para Cima", manipulou a audiência. No meio da fala de Marieta Severo, a câmera foca em Juliana Paes. Pronto, dane-se o pedido da Marieta Severo. A lacração entendeu que era uma verdadeira surra ideológica na atriz, uma lição de democracia e toma xingar Juliana Paes. Sobrou até para mim que nem vi o Altas Horas naquele dia e nunca fui convidada.

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O mais interessante dessa "treta" é que ela só existiu na cabeça de quem fantasiou sobre ela. Não houve embate e sequer discordância entre as atrizes. O simples fato de que pessoas que não são da mesma ideologia estejam no mesmo espaço já acende a fantasia da briga e um lado que se imagina vencedor. É preciso comemorar essa vitória nas redes sociais para afirmar a própria virtude. Esse espetáculo de satisfação psicológica ocorre à revelia da realidade.

É um processo que independe de ideologia e ocorre também fora da política. Escolher sair da realidade sempre foi possível. Mas não arcar com o ônus social dessa escolha é uma novidade. Inúmeras pessoas que se imaginam moralmente superiores vieram argumentar comigo que não é possível admitir que os apoiadores de Jair Bolsonaro saiam ilesos, que é impossível uma reconciliação com eles.

Eu não imagino qual é a proposta de quem diz ser impossível uma reconciliação com seus compatriotas por razões ideológicas. Encomenda um meteoro para explodir tudo? Sai um matando o outro e vê quem sobra vivo? Perdemos o arcebispo Desmond Tutu e a lacração saiu postando a frase de que quem cala diante da opressão assume o lado do opressor. É um reducionismo que convém à religião da lacração mas deixa de lado o principal ensinamento: não há nada que não possa ser perdoado e nenhuma situação que não possa ser superada.

As redes sociais não inventaram esses comportamentos patéticos, isso é da gente mesmo. Elas só dão recompensa social ao que antes era socialmente repudiado. Portar-se como dono da verdade e imaginar qualquer questionamento como sinal de perseguição é algo comum e que acaba sendo endossado pelo grupo. O filme mostra isso. É sempre um contra o outro, todos crentes que são o lado certo e o mais forte enquanto fazem suas presepadas. No final, todo mundo acaba igual e junto.

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Desmond Tutu dizia que o sonho dizia que o sonho de Deus é que todos nós percebamos que "somos uma família, somos feitos para a união, para a bondade e para a compaixão". Martin Luther King provocava que "ou aprendemos a viver juntos como irmãos ou pereceremos como idiotas". O tuiteiro lacrador vai me dizer que palavras bonitas não enfrentam autoritarismo. Talvez ele tenha mais resultados que dois dos maiores ativistas pelos direitos civis da história da humanidade.