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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Identitarismo e Doutrinação

Novilíngua e controle de pensamento transformam universidades em seitas

Blackboard with 2+2=5 written on in white chalk. (Foto: )

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Diversos professores tentam entender de que forma, nos últimos anos, as universidades abriram mão da liberdade intelectual e cognitiva para abraçar uma olimpíada de superioridade moral com requintes de autoritarismo. Muitos pais chamam isso de doutrinação.

Pode parecer fácil entender esse processo e como reverter. Se há doutrinação é porque professores doutrinam os alunos. Faz sentido, mas é assim que funciona? A molecada não anda aprendendo nem tabuada, vai aprender teoria política? E agora vai ser convencida por professor em vez de contrariar e tirar sarro? Há algo mais complexo nessa história.

Professores universitários de diversas partes do mundo tentam compreender o processo que começa com o pós-modernismo na década de 1960 e se instala com o bebê de Rosemary que ele gerou: as Teorias Críticas, que derivaram para o "wokeísmo" ou identitarismo.

O ponto central é que não se trata de convencimento, mas da criação de uma estrutura autoritária, que infantiliza alunos e minorias, centrada em julgamentos e justificativas morais. Fosse só convencimento, bastaria dizer o oposto ou pedir pluralidade. Ocorre que não adianta.

Tão importante quando compreender esse fenômeno em profundidade é encontrar um caminho de volta e critérios objetivos para evitar que voltemos a avançar nas liberdades individuais em nome de moralismo ou bom mocismo. Isso requer método.

Dá impressão de que ninguém está fazendo nada, principalmente se você mora no Brasil. Falar do viés ideológico da produção universitária gera automaticamente um carimbo de reacionário, fascista, terraplanista, negacionista e até nazista. Essa é uma das etapas desse processo, que só será revertido se for plenamente entendido.

Em diversas partes do mundo, professores universitários começaram a se unir para lutar pelas liberdades individuais e pela liberdade cognitiva nas universidades. Um deles é Peter Boghossian, que ensinou filosofia por 10 anos na Portland State. Leia um trecho da carta de demissão dele:

"Nunca acreditei — nem acredito agora — que o propósito da instrução fosse levar meus alunos a uma conclusão específica. Em vez disso, procurei criar as condições para um pensamento rigoroso; para ajudá-los a obter as ferramentas para buscar e sedimentar suas próprias conclusões. É por isso que me tornei professor e por isso amo ensinar.

Mas, tijolo por tijolo, a universidade tornou impossível esse tipo de exploração intelectual. Transformou um bastião de livre investigação em uma fábrica de Justiça Social cujos únicos produtos eram raça, gênero e vitimização e cujas únicas saídas eram queixas e divisões.

Os alunos da Portland State não estão sendo ensinados a pensar. Em vez disso, eles estão sendo treinados para imitar a certeza moral dos ideólogos. O corpo docente e os administradores abdicaram da missão de busca da verdade da universidade e, em vez disso, promovem a intolerância a crenças e opiniões divergentes. Isso criou uma cultura de ofensa onde os alunos agora têm medo de falar aberta e honestamente".

"Tirou as palavras da minha boca", talvez você esteja pensando. Na carta completa, Peter Boghossian coloca em palavras o que testemunhou de dentro da universidade. Não parou por aí, é obstinado na busca do conhecimento e da verdade dos fatos. Decidiu entender COMO chegamos a isso e COMO combater.

Ele já desenvolveu um trabalho amplo, que acabou se conectando com as iniciativas simultâneas de muitos professores descontentes com o fim da liberdade acadêmica. Em seu canal de YouTube, desenvolveu uma série em 15 capítulos com Lyell Asher, professor de inglês da Lewis & Clark. Chama-se "Por que as universidades estão se transformando em seitas". Vou me concentrar no décimo: Letramento em Justiça Social.

Aqui estamos claramente diante da Novilíngua, o idioma que seria usado para aprisionar o pensamento, segundo a ficção de George Orwell. Perceba a sutileza: você é favorável ou contrário à Justiça Social? É tentador dizer que sim, somos favoráveis ao conceito de sociedade justa. Ocorre que este termo foi sequestrado para significar outra coisa, que curiosamente desanda para Injustiça Social.

A ideia de uma educação que fosse especificamente sobre injustiça e poder nos Estados Unidos data de 1932. O educador George S. Counts havia ficado encantado com o trabalho feito pelas escolas da União Soviética. "Ah, mas eu tinha certeza de que era doutrinação comunista", alguns já devem ter pensado. Cuidado com as certezas, parece que é algo mais complexo.

Se você vai dizer que há doutrinação comunista, vai ouvir de volta que Justiça Social e Identitarismo não são contemplados pelo comunismo. E é verdade mesmo. Como fazer para não ficar com cara de tacho? Aprender o pulo do gato. Counts propunha copiar os métodos da União Soviética, não as ideias.

Em 1932, ele lançou um livro chamado "A escola ousaria criar uma nova ordem social?" que tem alguns trechos livres neste link. A ideia era usar os métodos das escolas soviéticas para ensinar os valores americanos. E como isso descambou para esse autoritarismo todo? Pelo método, ele foi validado.

Counts propunha que a escola deixasse de ser um ambiente que ensinasse a buscar diversos tipos de conhecimento, filosofia e formas de pensamento para dar um passo além. Isso seria assumir que a sociedade seria melhor adotando o progressismo coletivista e direcionando os alunos para isso, a busca da Justiça Social. Poder e opressão seriam agora o centro do ensino.

Ele próprio se arrependeu da publicação, vocalizou isso, retirou o que disse, admitiu que estava errado. Isso foi após ver 2 milhões de pessoas serem mandadas pela União Soviética ao exílio na Sibéria para morrer de frio e fome. A barbárie foi justificada pela Justiça Social, ensinada como prioridade a todos nas escolas. Counts admitiu estar errado, mas suas ideias ainda circulam como se fossem novas.

A ideia de luta do bem contra o mal foi entrando pouco a pouco nas universidades, conforme Teorias Críticas ganhavam o espaço do conhecimento. Tudo gira em torno de uma luta dos oprimidos do lado certo da história contra os opressores.

O pulo do gato é selecionar quem são os oprimidos e quem são os opressores de forma coletivista e apartada da realidade. Os oprimidos são todos os negros, homossexuais, mulheres, transexuais e, ultimamente, gordos. Não importam a individualidade nem ações concretas, os demais são opressores.

Desconsiderar a individualidade e dividir uma sociedade por grupos, como se fossem homogêneos, sempre nos levou a grandes tragédias. Quando um grupo é considerado intrinsecamente bom e o outro intrinsecamente mau, fica borrada a linha entre o certo e o errado. Os princípios deixam de existir.

Em 2009, um documento marca formalmente a priorização do ensino sobre oprimidos e opressores. "Desenvolvendo o Letramento em Justiça Social - UMA CARTA ABERTA PARA NOSSOS COLEGAS DE FACULDADE - Apenas concordar que a justiça social é importante não é suficiente. Educadores devem praticar a justiça social ou então o conceito não tem sentido", escreveram Özlem Sensoy e Robin DiAngelo.

É uma carta de princípios que passou a ser adotada em várias universidades dos Estados Unidos e foi importada de maneira acrítica no Brasil. A ideia é dividir as pessoas em grupos de oprimidos e opressores. O opressor pode se livrar da maldade intrínseca ao se tornar um "aliado". Isso significa passar pelo "Letramento em Justiça Social", que ensina a aceitar de forma bovina a ideia da luta do bem contra o mal.

Dessa forma, um "opressor" só pode deixar de ser mau caso se "desconstrua" e passe a ativamente valorizar, proteger e apoiar pessoas "oprimidas" mesmo quando elas não têm razão. É nesse documento que surge o conceito de "racismo estrutural", hoje tratado como axioma por muita gente inclusive no Brasil.

O conceito de racismo, preconceito de uma raça com outra, é substituído pelo ensino de poder e opressão. O conceito de racismo só pode existir se for do opressor contra o oprimido. Para não ser racista, a pessoa do grupo opressor precisa concordar que só seu próprio grupo pratica racismo porque tem poder naquela estrutura social. É aí que se cria a ideia do "racismo reverso", sendo que racismo nunca teve mão de direção. A estrutura de poder é um outro elemento de análise do racismo e seu real impacto numa sociedade, não o único.

"Existem princípios compartilhados, mas nenhuma abordagem unificada para a justiça social Educação. Como em outros campos, os estudiosos estudam uma série de teorias e conduzem pesquisa examinando as funções da opressão e estratégias para sua aperfeiçoamento na educação. No entanto, existem alguns princípios compartilhados:
• Existem diferenciais muito reais no acesso ao poder social e institucional entre os membros do grupo posicionados relacionalmente.
• Embora todas as pessoas tenham preconceitos socializados e possam discriminar, apenas o grupo dominante é apoiado pelo poder social e institucional, que é multidimensional e em constante funcionamento, sendo contestado, e renegociado. • Aqueles que afirmam ser a favor da justiça social também devem estar engajados na auto-reflexão sobre sua própria socialização em padrões de opressão e procuram continuamente contrariar esses padrões. Este é um projeto para toda a vida e é não alcançado na conclusão de um artigo ou workshop",
diz a carta aberta.

A prioridade é dividir grupos entre oprimidos e opressores e ter como pessoas boas e morais apenas as que defendem priorização dos oprimidos mesmo que não concordem com eles nem entendam direito o que eles defendem. Esses e os oprimidos são os bons. Quer dizer, menos os oprimidos que questionarem essa lógica de concessão de superioridade moral.

O escritor e ativista soviético Maxim Gorky justificou moralmente o genocídio de 500 mil dos 2 milhões de exilados na Sibéria: "se o inimigo não se rende, ele deve ser destruído". Afinal, ele considerava que o regime agia em nome do que ele considerava justiça social, tendo do lado oposto um grupo inerentemente mau. A individualidade e a sacralidade da vida humana são simplesmente escanteadas.

No ambiente educacional ocorre o mesmo. Começa em pequenos grupos que sinalizam virtude e lançam justificativas moralistas para agir fora das regras. É necessário atacar ou calar tal pessoa porque ela compactua com os métodos do opressor.

Na era das redes sociais, ser taxado como racista, misógino, homofóbico, transfóbico, fascista ou nazista pode ter um preço alto na vida real. A escolha de muitos é calar ou mimetizar a ação mirando no grupo contrário. É um erro. Ao fazer isso, esse método de atuação é legitimado. Há quase um século, George S. Counts já admitiu que estava errado ao defender esse tipo de ideia.

O que é certo é certo e o que é errado é errado. Não existe "veja bem" com relação a isso. Diante do que tem sido chamado de "guerra cultural" e "doutrinação ideológica", sentimos a necessidade de entender mais sobre teorias políticas. Elas só fazem sentido quando colocamos em primeiro lugar os nossos princípios e o respeito às regras de convivência em sociedade.

Dividir a sociedade entre bons e maus, criando um vocabulário próprio, é um método excelente de controle autoritário. E resultará num cenário autoritário qualquer que seja a teoria política usada como justificativa moral. Os dissidentes são constrangidos, calados e aniquilados. Precisamos reaprender a compreender seres humanos como complexos, com várias identidades sociais, passíveis de erro e com capacidade de redenção.

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