Hoje cedo me mandaram uma notícia por whatsapp. Claro que é verdade, concluí num processo de fast-checking. Tudo o que chega por whatsapp é verídico desde que mandado por pessoa de confiança. E vinha de um jornal de confiança, de uma coluna de confiança. Uma associação teria ido ao STF requerer que documentos públicos brasileiros não tivessem mais campos com "mãe" e "pai". Passaria a ser "filiação 1" e "filiação 2".
A justificativa dada pelos advogados é o constrangimento de casais homoafetivos e pessoas trans ao não saberem onde e como colocarem seus nomes nos documentos dos filhos. A notícia foi replicada em diversos portais, blogs e nas redes sociais. Antes de qualquer coisa, peguei meu RG. Não tem campo para pai e mãe nem filiação 1 e 2. Tem só filiação mesmo. Do meu filho? Mesma coisa. Passaporte? Igual. Carteira de Trabalho? Nem tem o nome dos pais.
Pense em um documento seu que tenha o campo para nome do pai e da mãe. Eu pensei em vários, mas é porque nasci em outra era geológica. Na minha cabeça veio logo a certidão de nascimento, que também tem os nomes dos avós. A do meu filho tem apenas os campos "filiação" e "avós". Só a minha tem pai, mãe, avô materno, avó materna, avô paterno e avó paterna. Foi datilografada, carimbada e assinada a mão no cartório em Santo André. Colocada numa caderneta rosa, de menina, suponho.
Juro que não entendi mais nada e fiquei o dia todo atrás disso. Quanto é que mudaram isso e tiraram pai e mãe de tudo? O movimento identitário está apagando essas palavras? Não exatamente. Movimentos que ganham poder nas redes e no grito apagam nosso senso de proporção e nossa conexão com a realidade. Iniciativas com base em números e fatos são distorcidas para caber em narrativas.
Revirei todos os documentos aqui de casa. A Receita Federal, por exemplo, pede só nome da mãe. Protocolos judiciais idem. Os únicos documentos em que a ficha tem os campos de preenchimento sobre pai e mãe foram os de escolas particulares e planos de saúde. Já não estava entendendo nada sobre a utilidade de trocar "filiação" por "filiação 1 e 2". Menos ainda sobre colocar em discussão algo que nem existe mais nos documentos, as palavras mãe e pai. Mas não deixaria você na mão.
Existe uma discussão recente, midiática e que pega fogo nas redes sociais sobre as palavras pai e mãe nos documentos. Vira uma briga de faca no escuro entre a militância identitária e defensores da família tradicional. Ocorre que a mudança nos documentos não tem nada com isso, é anterior e por razões bem diferentes. Esqueça ideologias. Sabe quando adulto arruma problema e quem paga é a criança? Pois bem, estamos falando justamente disso.
A família é a célula da sociedade e tem proteção do Estado de acordo com as leis brasileiras e de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O conceito inicial civil no Brasil vem do Código Civil de 1916, que colocava a família como os laços gerados por meio do matrimônio. Antes, o conceito era herdado do casamento na Igreja Católica. Ele foi mudando até 1988, mas não exatamente por militância identitária ou avanços nos costumes, foi pela vida mesmo.
Não vou cair na tentação de questionar o modelo de família tradicional para lacrar nas redes. Raramente escolhemos sair do conforto, mas muitos somos expulsos deles. Como faz com a tia que cria os sobrinhos depois que os pais morreram num acidente? Não é família? O avô e a avô que ficam com os netos também não são? A gente ama um filho adotivo menos do que ama um filho biológico? É menos filho? A burocracia mudou por isso, porque milhões de famílias não são perfeitas como estava no Código Civil de 1916, mas ainda assim eram famílias.
Com a Constituição de 1988 é o laço sanguíneo e não o casamento que passa a ser o norte. Acaba a história de filho legítimo e filho bastardo. O adulto que arque com as consequências de suas próprias palhaçadas, filho não pediu para vir ao mundo. Filhos adotivos e biológicos passam a ser simplesmente filhos no papel, como talvez sempre tenham sido no coração das famílias. E o apagamento da mulher, da mãe e do pai? Chego lá. Esse movimento pegou carona numa história que não tem nada com isso.
Como os laços passam a ser biológicos - e não mais burocráticos - os documentos têm o lugar para os nomes da mãe e do pai. Como a minha certidão de nascimento de outra era geológica. Ocorre que nem todos têm a sorte de ter um pai como o que eu tive, responsável. Quando o pai não assumia o filho, todos os documentos vinham com a inscrição "pai desconhecido", que passava a ser uma marca de vergonha.
Aqui não adianta tentar contemporizar. Não é certo diminuir alguém porque o documento tem a inscrição "pai desconhecido". Mas é um objeto de desejo? Você quer ter isso? O mais injusto é que a única pessoa que não tem culpa nenhuma na situação é a que arca com as consequências. A lei que criou o RG é anterior à Constituição, de 1983, assinada pelo presidente Figueiredo. Ela não fala em pai e mãe, fala em "filiação". Assim foi mantido. Coloca dois nomes ou um só.
E por que ressurge essa conversa? Porque fomos afastados da dimensão da realidade. Essa questão de colocar pai e mãe nos documentos foi encaixada em uma narrativa identitária que não faz nenhum sentido numérico. Quantos são os casais homoafetivos no Brasil? 80 mil. Somente em 2021, são 100 mil crianças sem o nome do pai na certidão de nascimento. No total, são quase 6 milhões. Estatísticas sobre população trans eu não achei em fontes oficiais, recomendo ler o texto do Eli Vieira.
Não ignoro os problemas burocráticos das famílias homoafetivas. Eles existem. Meu questionamento é se a solução está em mudar os documentos de 200 milhões de brasileiros. Os documentos têm só filiação, mas juridicamente há categorias. Há o vínculo biológico, o socioafetivo, o processo de adoção, várias situações. Não é justo criar impedimentos, por exemplo, para escola, plano de saúde e viagens para tipos específicos de famílias. Precisamos resolver. Isso não vai ser feito gritando em rede social contra a família tradicional.
Li outro dia um processo de um casal de lésbicas que adotou um embrião. Uma delas engravidou e era a mãe para a justiça. Embora não fosse tecnicamente um laço biológico, ela deu à luz a criança, ficava mais fácil sentenciar que é a mãe e potno final. Fosse pelo Código Civil de 2016, ela é casada e o bebê teria direito à filiação da cônjuge. Mas a cônjuge é o quê? Mãe? Mãe e mãe? Ou poderia ser uma mulher e pai? E se ela virasse trans? Ocorre que ela não queria virar nada. Queria só legalizar a parte burocrática.
Foram anos de discussão jurídica, pareceres, advogados, teses, petições. No processo, parece um livro. Na vida real, é uma unidade familiar em que apenas uma pessoa fica encarregada de ter de decidir tudo. A outra metade do casal, durante anos, legalmente não pode decidir nada sobre o próprio filho. Ficamos tão inebriados com essa bobajada de processo de "filiação 1" e "filiação 2" que esquecemos problemas concretos. Esse tipo de coisa precisa de solução.
Sempre ouvimos falar das exceções por confronto às tradições da família. Mas e aquelas criadas justamente para preservar? Existem. Muitos anos atrás acompanhei uma decisão judicial banhada a lágrimas que felizmente tornou-se praxe. O viúvo cuja mulher morreu no parto casou-se novamente. A única mãe que o menino conheceu queria adotá-lo, mas ele não queria tirar o nome da mãe falecida dos documentos. As duas foram mantidas.
Na "inovação" do filiação 1 e 2, qual das mães ficaria? A que morreu no parto ou a que criou o menino? Deixar as duas é um tipo de decisão judicial que não tem nenhum efeito prático. A mãe de fato é a que criou o menino, que toma decisões sobre a vida dele. Mas, para que ela possa ser mãe de direito, precisamos obrigá-lo a apagar o nome da mãe que morreu no parto? Não. É mantida a memória e o laço familiar de amor. É um símbolo, é família, é protegido pelo Estado. Há inúmeros casos semelhantes.
Finalizando, fui procurar no sistema do STF o processo do "filiação 1" e "filiação 2". Não está lá. Pode ser que tenha até sido protocolado, mas ainda não consta do sistema. Pouco importa. Não é um debate sobre casos reais, problemas reais e dores reais, é uma disputa por poder. Colocar "filiação" ou "pai e mãe" nos documentos tornou-se uma discussão completamente dissociada da realidade prática dos cidadãos. Serve, no entanto, para energizar massas políticas.
De um lado ficarão aqueles determinados a eliminar do vocabulário humano a ideia milenar de mãe e pai. Seriam ofensas a um grupo diminuto da sociedade. Importante lembrar que pouco interessa a opinião deste grupo, quem opina são os flanelinhas de minorias. Talvez este grupo já tenha resolvido quem é a mãe e quem é o pai e esteja tocando a vida, como contei no artigo sobre o especial de Dave Chapelle.
Há muitas piadas sobre a família tradicional e a família perfeita. Nenhuma família é tão perfeita como gostaria de ser porque todas são compostas de seres humanos imperfeitos. Há, infelizmente, famílias muito tóxicas e problemáticas. Felizes os que têm famílias capazes de viver com alegria e compreensão todos os desafios da condição humana. Lacrar rende cliques, mas está na contramão das nossas necessidades em tempos de caos. Precisamos de mais família, não de menos.
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