Há diversos registros históricos de períodos de isolamento social e em todos eles existe, além do óbvio impacto econômico, o registro da mudança social e também do inesperado, das invenções, das qualidades humanas que passam despercebidas e acabam sendo reconhecidas como o milagre que são.
Algumas linhas filosóficas e religiosas defendem que o sofrimento engrandece a alma, dignifica, eleva o espírito. Eu, particularmente, não gosto desse raciocínio por entender que leva à falsa conclusão de que seria necessário provocar o sofrimento para formar um ser humano digno. E, por outro lado, há quem sofra as consequências de chafurdar num chiqueiro moral e, mesmo assim, continue no chiqueiro.
A ciência moderna, exatamente o que pode encerrar o pesadelo da pandemia, foi inaugurada na prática durante uma pandemia, a de peste bubônica, na Inglaterra, entre 1665 e 1666. Recluso, Isaac Newton elaborou suas duas teorias mais importantes.
Estudante da Universidade de Cambridge, foi liberado com todos os alunos para voltar para casa. Continuou os estudos sozinho, mesclando observação da natureza com experimentos. Elaborou a Teoria da Gravitação Universal: "dois corpos atraem-se com força proporcional às suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que separa seus centros de gravidade". Depois da quarentena, a teoria seria verificada e aceita pelos pares, iniciando a era em que nós deixamos de precisar de explicações divinas para fenômenos da natureza e começamos a elaborar o que hoje se chama de método científico.
Além disso, Isaac Newton iniciou seus estudos sobre óptica usando prismas e, na área de matemática, iniciou as teorias que dariam origem ao cálculo moderno. Voltou à Universidade de Cambridge após à quarentena com tudo isso em mãos e teve uma ascensão meteórica, virou fellow em 6 meses e professor em dois anos.
Nesta pandemia, aposto que há pessoas desenvolvendo obras e teorias que só iremos conhecer e apreciar daqui a algum tempo, quando tudo isso já tiver passado. E também há os que estão na linha de frente, seja na pesquisa ou no atendimento direto às pessoas contaminadas. No mundo inteiro há profissionais da saúde voluntários para o atendimento e histórias emocionantes de quem deixou uma aposentadoria confortável para voltar aos hospitais e ajudar seu país a voltar aos eixos o mais rápido possível.
No Brasil, há mais de 350 mil estudantes e acadêmicos da área de saúde, de universidades públicas e privadas que já se voluntariaram oficialmente para participar da linha de frente do combate ao coronavírus. Serão necessários. Somente em São Paulo, mais de 1400 profissionais já foram afastados do trabalho porque se infectaram tratando dos doentes.
Imagine, neste exato momento, quantas centenas de milhares de pais e mães estão tratando de fingir que estão calmos para que os filhos pequenos não entrem em desespero durante a pandemia. Quantos filhos estão ajudando os pais que lutam diante da incerteza do futuro, que tiveram de mudar a rotina para trabalhar em casa ou que estão saindo todos os dias para o trabalho com o coração na mão. Há, por todo canto, vizinhos solidários, gente que doa comida, máscaras, álcool em gel.
Milhares se organizam para comemorações à distância de tudo o que fazíamos de importante e só tem sentido juntos. Tem vizinhos cantando parabéns para crianças e idosos pelas janelas, comemorações familiares por computador, missas para igrejas vazias com fotos dos fiéis nos bancos, casamentos com público virtual, funerais virtuais.
Muito do que é importante e entrará para a história, de cada um e de todos nós, é silencioso no momento. O mais ruidoso, que é a criação de caos e falsas polarizações, como a torcida organizada de remédio, não arrisco dizer qual lugar merece.
O Brasil vive um pesadelo de falsas polarizações como combustível do debate político desde o início da pandemia. É o banquete de consequências da nossa permissividade com pessoas públicas que fogem das responsabilidades da própria atuação e não são cobradas por nós, sistematicamente, nos últimos anos.
A primeira falsa polarização foi "salvar vidas x salvar economia", desmentida deu lugar a "isolamento horizontal x isolamento vertical", desmentida deu lugar a "Mandetta x Osmar Terra", desmentida deu lugar a "torcida organizada da hidroxicloroquina x torcida organizada do coronavírus". O nível de surrealismo aumenta a cada desmentido.
Torcida organizada de remédio é uma invenção brasileira que tem enorme potencial de qualificar para o anedotário mundial da pandemia. Primeiro pelo absurdo: torcer contra ou a favor de remédio não adianta nada. Depois pela canalhice.
Há dezenas de remédios e vacinas em testes e vários deles, os mais promissores, já fazem parte do protocolo de tratamento experimental em vários países, incluindo o Brasil. A hidroxicloroquina é um deles, principalmente em determinadas combinações. Outros remédios também são testados, mas ainda não há certeza de que eles podem curar todas as pessoas. Inventar que há alguém contra um remédio experimental ou que ele está sendo negado às pessoas em plena pandemia é de uma perversidade que escapa à minha capacidade humana de compreensão.
Eu torço por um remédio sim. O mais rápido. Qualquer um, uma vacina, um soro, de onde quer que seja. De preferência vários. Que as pessoas tenham várias alternativas de prevenção e de tratamento. Não importa qual é o cientista, o remédio, de onde veio, como surgiu. Importa que seja comprovado, que salve vidas, que sirva para aliviar sofrimento dos doentes e tranquilizar a alma de quem está passando pelo pesadelo da pandemia.
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