Especialistas já falam em tratar como tema de Saúde Pública a radicalização de adolescentes online.| Foto: Divulgação
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Imagine que no seu bairro tem uma turminha com quem você não quer que seus filhos saiam de jeito nenhum. Um pessoalzinho metido com coisa esquisita, sempre encrencado, que gosta de bancar o valente e ridicularizar família. Você tem um pressentimento de que não é só rebeldia, é coisa pior, mas não tem certeza. Aliás, prefere nem saber, melhor coisa é tratar com educação sem dar intimidade.

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Suponha que esta turma arrumasse a chave da sua casa para entrar e conversar com seu filho sem que você soubesse. Eles parecem ousados e a conversa, no princípio, não tem nada demais. Falam de lutar por um mundo melhor, valores, uma missão heroica na vida. Seu filho fica com medo de contar para você e eles incentivam a não falar nada, afinal família nunca entende jovem, sempre subestima. Pais são antiquados e autoritários. Eu não preciso continuar porque você imagina como isso acaba.

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A chave da sua casa já está disponível para esse pessoal perigoso, chama-se internet. Pais tendem a subestimar a influência que pode ser exercida sobre seus filhos por redes sociais e games. Por isso não é incomum que, diante de tragédias provocadas por radicalização, pais e mães reajam como se estivessem em um pesadelo, sem entender como as coisas tomaram essa proporção.

A adolescência é uma fase difícil e conturbada mesmo nas melhores famílias. A perspectiva de independência associada a uma bomba hormonal traz mudanças de comportamento aos adolescentes, é natural. Para os pais, a adaptação exige muita sabedoria, paciência e olho vivo.

A preocupação com os relacionamentos dos adolescentes é natural das famílias desde sempre, o tal medo das "más companhias". Há quem trate essa história como desculpa esfarrapada de pais que não educam os filhos da maneira correta. Infelizmente não é, trata-se de ciência. O ser humano tende a moldar seu comportamento e suas opiniões às do grupo em que sente-se seguro e acolhido.

Há alguns anos, extremistas encontraram na internet uma ferramenta muito eficiente de recrutamento. O caso mais famoso é o do Estado Islâmico, que recrutou 40 mil jovens ocidentais pelas redes sociais e convenceu 3 mil deles a ir morar no "califado". Diversos grupos de extremistas políticos e religiosos estão bebendo desta fonte, veem nas redes sociais a forma de chegar até jovens e adolescentes em conflito com a família ou sem perspectivas.

O acesso de extremistas a adolescentes de famílias comuns explodiu na pandemia, quando o mundo todo procurou algum modelo de ensino online. Neste período, os Estados Unidos registraram 180 tiroteios de "lobos solitários", a grande maioria cometida por jovens que se radicalizaram online e pegaram as famílias de surpresa. É por isso que especialistas já falam em tratar a radicalização pela internet como questão de saúde pública.

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Parece o tipo de coisa típica da realidade dos Estados Unidos, onde pela primeira vez ouvimos falar nos chocantes tiroteios em escolas. Ocorre que já temos um processo parecido por aqui. Não se trata de um grupo hierarquizado e com objetivos definidos, como o Estado Islâmico, mas de um avanço da radicalização e do extremismo no modelo da internet, descentralizado.

Os grupos radicais surgem primeiro dando segurança e apoio emocional aos seus membros, mas na lógica de que o grupo é 100% bom e luta contra um mundo 100% ruim. As barreiras humanas e morais são removidas pouco a pouco, por meio de ataques online seguidos de uma justificativa moral para ações inaceitáveis. Pode porque é por um bem maior. Alguns casos descambam para ações na vida real.

Pouco adianta buscar pelo tema, pelo conteúdo das conversas. Há radicalização justificada com quase todo tipo de coisa. Claro que, se o adolescente fala em se unir a um califado ou começa a dar razão a Hitler, a família percebe nitidamente o perigo. Mas e se não fala? E se fala em outras coisas que parecem boas? Mesmo quando fala, tendemos a crer que nossos valores e mecanismos tradicionais de controle dão conta da situação se aquele filho leva uma vida normal de estudo e trabalho. É um erro.

Conheço pessoas que têm a ilusão de que conseguirão manter seus filhos fora das redes ou do alcance dos predadores online. É ilusão, como seria a ideia de manter nossos filhos para sempre trancados em casa. O que salvou muitos de nós de encrencas na rua não foi a tranca na porta, foi o fato de que nossos pais sabiam direitinho o que acontecia nas ruas e como reagir aos perigos. O desafio da nossa geração é entender a internet.

Quem me acompanha sabe o quanto tenho dedicado os últimos anos a compreender o funcionamento das redes sociais, o impacto nas nossas emoções, a manipulação, questões de poder político e econômico. Sei que poucas pessoas têm paciência para debater o tema comigo. Minha decisão por este caminho foi emocional, para proteger meu filho. Então fiquei apaixonada, como uma adolescente que só fala do menino por quem se apaixonou. Ninguém aguenta.

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Uma das poucas amigas que topam comentar livros e pesquisas comigo, para me trazer uma nova perspectiva, é a pesquisadora Michele Prado, autora do livro Tempestade Ideológica. Como ela tem se dedicado a conhecer ideologias extremistas, o que não é minha área, acabou me apresentando para uma das maiores especialistas mundiais em extremismo e terrorismo, a doutora Cynthia Miller-Idriss, professora universitária e fonte de informação do Congresso dos Estados Unidos.

Foi aí que conheci a ideia de tratar como questão de saúde pública a radicalização dos jovens via internet. Para Cynthia Miller-Idriss, o uso de inteligência e forças de segurança para desmobilizar grupos extremistas fez sentido enquanto eles eram "outsiders" na sociedade. Agora que já encontraram uma maneira de virar "mainstream", chegar a qualquer um, é preciso que as famílias também se mobilizem.

Na verdade, as famílias já estão mobilizadas porque muitas sentiram na pele o pesadelo do extremismo debaixo do próprio teto. O caso mais conhecido aqui no Brasil é o do assassinato da gamer Sol. A mãe do assassino recebeu a moça na própria casa sem desconfiar de nada, pensou que era um encontro romântico. Ela e o irmão acionaram a polícia e não entendiam o que havia acontecido.

Como estou infiltrada em diversos grupos radicais, alguns dos membros me mandaram um arquivo gigantesco com prints acompanhando o planejamento do crime por mais de um ano. São fóruns difíceis de explicar a quem não acompanha. A maioria estava chocada, falava atrocidades e compartilhava ideias violentas imaginando que era tudo da boca para fora. Havia um pequeno grupo, no entanto, que levava a sério e comemorava a ação como heroica.

Com essa leitura eu compreendi por que a família não se deu conta: sem ter familiaridade com este universo, é impossível desconfiar porque o jovem leva uma vida absolutamente normal. O mesmo aconteceu, por exemplo, no caso tenebroso do jovem que cometeu assassinatos numa creche de cidade pequena em Santa Catarina. A cidade toda o conhecia, tinha emprego, estudava, nem a família desconfiou. No entanto, estava em grupos radicais diariamente, dentro de casa.

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Há diversos casos ocorridos no Brasil que, nos Estados Unidos, são classificados como terrorismo doméstico. Aqui, a lei classifica como terrorismo atos que sejam motivados por determinadas questões. Nos EUA, pouco importa o motivo, terrorismo é o ato que barbariza por uma causa com a intenção de espalhar terror. O Departamento de Estado dos Estados Unidos, que monitora esses grupos, ajudou as autoridades brasileiras a evitar dois ataques a escolas.

Aparentemente, esses casos são isolados, não têm ligação entre si. Eles não são perpetrados pelo mesmo grupo nem da mesma forma, não há um líder, um comando ou um objetivo claro que não o do indivíduo. O Congresso dos EUA, no entanto, segue a explicação de Cynthia Miller-Idriss. Os grupos não têm relação entre si, são células isoladas, mas utilizam os mesmos mecanismos de radicalização de jovens e adolescentes, sem que as famílias percebam.

Isso não ocorre porque as vítimas sejam burras ou especialmente frágeis, mas porque estamos diante de um mecanismo poderosíssimo acessível a diversas pessoas perversas. Os líderes de grupos que radicalizam jovens e adolescentes são predadores assim como os pedófilos que ficam entrando em jogos online atrás de crianças. Sabem o poder que têm, o mal que causarão e fazem porque querem.

Nós percebemos que é algo diferente, mas é difícil dizer exatamente o que. Por isso há especialistas que estudam o tema. Depois que os EUA perceberam que até adultos podem ser radicalizados, acendeu a luz amarela. "Desde 6 de janeiro, meu laboratório de pesquisa, o Laboratório de Pesquisa e Inovação de Polarização e Extremismo, recebeu dezenas de pedidos de ajuda de diretores de escolas, pastores evangélicos, empregadores, professores, líderes universitários, pais, grupos de aposentados, prefeituras e bases militares . Todos procuram ferramentas para combater o extremismo. Em todo o país, coalizões de cidadãos estão assumindo a responsabilidade de aprender como prevenir a radicalização de formas locais, muitas vezes integradas a esforços para combater formas mais amplas de ódio", conta Cynthia Muller-Idriss.

Já passou o tempo em que só as poderosas agências de inteligência e autoridades de segurança davam conta de combater extremismo e terrorismo. Na era da hiperconexão, o poder precisa também estar nas mãos das comunidades locais e das famílias. É preciso que aprendam os sinais e como agir. Predadores virtuais têm sempre um primeiro passo em comum, afastar crianças e adolescentes dos adultos em quem eles confiam.

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Os temas mais famosos de radicalização e polarização vão mudando com o tempo, conforme mudam os confrontos geopolíticos e o equilíbrio de forças. Já houve o protagonismo da luta do islã contra os valores ocidentais, que seriam impuros. Agora, há um claro predomínio de teorias políticas de extrema-direita, ressuscitadas no mundo todo. Mas até os temas que parecem mais inocentes, como defesa da igualdade e não-discriminação, podem dar origem a comunidades que mais parecem cultos.

O Laboratório de Pesquisa e Inovação de Polarização e Extremismo produziu um manual destinado aos pais, ensinando a perceber sinais de tendência a radicalização dos filhos e formas eficientes de intervir. Segundo o levantamento feito após a leitura com os pais, apenas 7 minutos de dedicação a esse tipo de esclarecimento já mudaram a visão sobre o problema. Traduzo alguns trechos fundamentais:

Adolescentes tendem a viver nos extremos, como reconhecer o que é um problema de extremismo que precisa de intervenção dos pais?

A radicalização online ocorre quando as atividades online de alguém - ler, assistir a vídeos ou socializar - ajudam a levá-los a adotar pontos de vista politicamente ou religiosamente extremistas. As crenças extremistas dizem que um grupo de pessoas está em conflito terrível com outros grupos que não compartilham a mesma identidade étnica, religiosa ou política. Extremistas acreditam que este conflito imaginário só pode ser resolvido por meio de separação, dominação ou violência entre grupos. Isso freqüentemente leva a opiniões e objetivos antidemocráticos, como o desejo de ditadura, guerra civil, ou o fim do Estado de Direito.

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Como convencer um adolescente de que não é sensato pensar dessa maneira nem entrar em um movimento revolucionário para implodir tudo?

O manual não fala em convencimento, mas em aproximação, conexão e sabedoria. Nem todos os adolescentes que entram nesses grupos vão virar extremistas e a maioria não entra pela ideologia. O que leva aos grupos é a necessidade de que alguém realmente ouça suas necessidades, valorize sua visão de mundo e acredite em suas potencialidades. Reverter este processo é uma caminhada de 15 passos:

1. OUVIR o que as crianças estão dizendo. Se eles começarem a repetir temas ou vocabulário associado a extremistas e teorias da conspiração, tente não ridicularizá-los ou puni-los. Ridículo e repreensão têm demonstrado fortalecer sistemas de crenças problemáticos. Em vez disso, sugira que as pessoas que passam essas mensagens podem ter seus próprios motivos além da verdade e do bem-estar de uma criança.

2. PERGUNTAR o que as crianças estão fazendo online, o que estão aprendendo e em que tipos de sites e plataformas passam tempo. Aborde essas questões com ar de curiosidade ao invés de monitoramento. Evite perguntas finalizadas e opte pelas abertas, como "Quais valores você defende?" ou “Que tipo de pessoa você quer ser?”. Fazer perguntas que mostrem interesse genuíno nas atividades e hobbies de uma criança pode abrir novas linhas de comunicação em que eles compartilhem o que fazem online. Faça perguntas que deixe-os ensinar algo sobre suas vidas, como “Como esse jogo funciona? ” ou “Como você acha que seus professores poderiam estar se saindo melhor na transição para o aprendizado online?”. Os adolescentes podem se abrir mais se você levantar questões durante atividades casuais onde eles não são o único foco de sua atenção. Falar enquanto dirige no carro, lavando roupa ou durante um passeio pode reduzir a pressão.

3. CONVERSAR sobre as notícias com as crianças de uma forma adequada à idade. Visite sites para saber como você pode evitar desinformação e propaganda. Visualize o conteúdo que eles estão assistindo, analisando as avaliações. Sugira materiais publicados por fontes de notícias confiáveis e ler um artigo juntos todos os dias. Inscreva-se e ouça a um podcast confiável de eventos atuais. Preste atenção às fontes de notícias preferidas pelas crianças e pergunte-lhes como
saber se as fontes de suas informações são confiáveis. Direcione-os para fontes de notícias confiáveis. Continue a se educar sobre como identificar desinformação nas notícias e em outros lugares.

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4. EDUQUE as crianças sobre as formas como a propaganda e a desinformação são usadas para manipular as pessoas. Fale com eles sobre os estilos e estratégias da propaganda extremista (como usar um bode expiatório ou oferecer soluções simples para problemas complexos). Explique que a propaganda pode ser entregue em qualquer meio - escrita, vídeo, música, memes, etc. - e muitas vezes pode se disfarçar de humor.

5. ACONSELHE as crianças a zelar pela segurança na Internet. Eles devem ter cuidado ao clicar em links que eles não reconhecem e não devem clicar em links enviados por pessoas que não conhecem. Manter as configurações de privacidade - e atualizá-las regularmente - em todos os aplicativos e contas de mídia social é importante.

6. INCENTIVE seus filhos para examinar criticamente as mensagens
que recebem e tratar as informações que consomem como dispositivos persuasivos, destinados a convencê-los de uma visão de mundo. Fale sobre o que eles podem fazer se encontrarem uma mensagem extremista online ou na vida real. Essas habilidades de pensamento crítico e vigilância podem ajudar uma criança a identificar e superar mensagens radicalizantes.

7. EXPONHA a maneira como os extremistas se aproveitam dos sentidos de vulnerabilidade e identidade dos jovens. Demonstre às crianças como
essas mensagens podem até atraí-los. Seja honesto sobre um tempo no passado em que você pode ter sido enganado por um indivíduo ou grupo que não tinha seus melhores interesses como prioridade.

8. LEMBRE seus filhos que as pessoas podem não ser quem dizem que
são online. A internet permite que qualquer pessoa use uma máscara - especialmente predadores. Às vezes, pessoas parecem populares mas o sucesso é realmente um fracasso. Pessoas que parecem divertidas podem ser intolerantes e até abusivas. Isso é especialmente verdadeiro em espaços extremistas, onde a violência e a exploração dentro de grupos são bastante comuns.

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A principal dica é conter o impulso de achar que é tudo frescura e tentar resolver por meio da imposição, como nós aprendemos com nossos pais. Já funcionou em um mundo que não existe mais, aquele em que conseguimos manter os predadores para fora da porta da nossa casa. Se as armas forem arbítrio e violência, os predadores são infinitamente melhores. Famílias são melhores em princípios, valores, misericórdia e acolhimento.

O movimento chave do predador online, seja um pedófilo ou extremista político e religioso, é afastar o adolescente dos adultos em que ele confia e da sua comunidade. Dessa forma, o grupo passa a ser a nova identidade social. Nunca vivemos um período em que fosse tão importante para os filhos reafirmar diariamente que eles são parte amada da nossa família e têm seu lugar na nossa comunidade.

Extremistas querem destruir tudo o que é diferente deles. Por isso é importante mostrar que conhecemos outras culturas e jeito de viver e aceitamos pacificamente. No entanto, nunca é demais reforçar que temos nossa cultura e nosso jeito de viver, nossas raízes e valores e que isso é importante para nossa força de caráter. Somos parte de um grupo em que um ajuda o outro nos momentos difíceis e conhece tanto os defeitos humanos quanto o perdão.

Grupos radicais são tensos, convencem os jovens de que o destino deles está absolutamente fora de controle e só ações violentas podem reverter isso. Você e eu sabemos que não controlamos nosso destino. A forma mais eficiente que a humanidade arrumou para lidar com esse fato é organizar-se em famílias e comunidades. Não temos controle, mas podemos ter um porto seguro.

O paradoxo da tecnologia e da globalização é nossa realidade. Quanto mais avança a tecnologia, mais se torna necessário conhecer e valorizar a natureza humana. Quanto mais possibilidades temos de nos comunicar e conviver numa comunidade global, mais importantes são os nossos valores e saber quem somos de verdade. A internet traz perigos inimagináveis mas também trará possibilidades incríveis aos nossos filhos. Hoje, eles têm o potencial de fazer o que imaginarem no mundo. Mas essa caminhada exige a força que vem das nossas raízes.

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