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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Redes Sociais

O Linkedin parece perigoso para você? Para a China sim.

O LinkedIn será substituído na China por uma plataforma sem compartilhamentos e comentários em posts (Foto: BigStock)

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Até que durou muito a presença do Linkedin na China. Nenhuma rede social quer perder os mercados bilionários da China e da Rússia. O descompasso de regulação existe tanto no mundo democrático quanto nas potências ditatoriais, só é diferente. No mundo democrático, as Big Techs operam nas brechas legais, mentem para governos e trituram vidas reais em nome do lucro. No mundo ditatorial quem tritura as pessoas é só o governo, que acaba dobrando as Big Techs.

O Linkedin nos parece a rede social mais inofensiva. Eu, particularmente, só vejo dois perigos: coaches e posts felizes de gente demitida. Claro, tem as campanhas insuportáveis das empresas que tentam não ser canceladas e tentam soar como instituições de caridade, não de lucro. Talvez isso seja ainda mais perigoso porque dá poder a grupos extremamente autoritários, mas isso já é outra conversa.

O fato é que a Microsoft decidiu fechar o Linkedin na China devido à política de "compliance" do Partido Comunista Chinês. Na prática, a demanda consistia em bloquear no território do país perfis de cidadãos norte-americanos considerados ofensivos pelo governo. Aviso à turma do "ah, mas aqui também, somos uma ditadura" a respirar antes desse belo argumento. O governo pede direto à empresa, sem julgamento, contraditório, processo, nada disso. Não tem discussão.

Nas democracias ou onde se vive culturalmente a ideia de democracia, discutimos muito sobre liberdade de expressão, censura, avanço do Poder Público sobre o espaço público de livre debate. Na China e na Rússia não tem isso. É manda quem pode, obedece quem tem juízo. O Linkedin era a única rede social ocidental que funcionava no país e estava instalada desde 2014. O Yahoo funciona no país depois de entregar ao governo dois dissidentes, que passaram anos presos.

A Microsoft garantiu que operaria seguindo as regras do governo da China, que exige transparência total no uso de dados e algoritmos de sua população. Também prometeu que seria completamente transparente sobre eventuais requisições para manipulação da plataforma, cessão de dados ou mudança de algoritmos. Ninguém disse, no entanto, como isso seria feito. A iniciativa é interessante, a terminativa não deu muito certo. Confesso que tinha esperança no modelo que, infelizmente, faliu.

O escândalo começou no final do mês passado quando o Partido Comunista Chinês exigiu que alguns jornalistas dos Estados Unidos tivessem seus perfis de Linkedin bloqueados no país. Ao contrário do que a gente pensa de imediato, não são jornalistas conservadores nem jornalistas políticos. Eram jornalistas de tecnologia. São hoje os mais perigosos para ditaduras e populismos.

Vivemos uma fase de transição tecnológica. É evidente que regimes como o chinês e o russo perseguem quem se coloca contra os governos. Ocorre que ensinar às pessoas comuns como funciona a dinâmica digital do poder é mais perigoso. Ainda vivemos agarrados ao que é dito, engatinhamos para perceber quais os resultados daquela fala. O fator tecnologia muda completamente o equilíbrio dos poderes.

Jornalistas políticos ocidentais que critiquem a China, mesmo com toda veemência, não conseguirão tocar os sentimentos de quem já confia no Partido Comunista Chinês. Aliás, quanto mais exaltados, mais úteis são para a linha de propaganda em que são inimigos do povo chinês. Já os que falam de tecnologia e controle de discurso por algoritmos tornam-se perigosos. A vida do cidadão chinês já é digitalizada. É possível que liguem os pontos sozinhos, o que é muito mais poderoso que convencimento retórico.

A primeiríssima a divulgar o bloqueio foi a jornalista do portal especializado em tecnologia Axios. Bethany Allen-Ebrahimian é especialista em China e está escrevendo um livro sobre como o governo aumentou seu poder via controle tecnológico. Ela soube colocar as cartas na mesa. "Acordei hoje para descobrir que o Linkedin bloqueou meu perfil na China. Eu costumava esperar que os censores governamentais chineses ou censores empregados por empresas chinesas fizessem esse tipo de coisa. Agora uma companhia dos Estados Unidos está pagando seus próprios empregados para censurar norte-americanos", divulgou nas redes.

Chamo atenção a um detalhe que mostra a diferença de tratamento dada pelas redes sociais a cidadãos das grandes democracias e da periferia do mundo. Em países com cultura democrática não se admite sair derrubando perfil sem explicação. Aqui no Brasil, até políticos e jornalistas deixam-se levar pelo engodo de que Big Techs devem controlar os discursos em suas plataformas. É um acúmulo de poder preocupante já considerado violação de Direitos Humanos.

A jornalista de tecnologia recebeu um aviso de bloqueio com 14 dias para enviar uma contestação. A mensagem passivo-agressiva segue o mesmo modelo das propagandas politicamente corretas das plataformas. Traduzo:

"Oi, Bethany!
Seu perfil do Linkedin é uma parte integrante da forma como você se apresenta profissionalmente para o mundo. É por isso que acreditamos ser importante informar você de que, devido à presença de conteúdo proibido localizada na área Currículo do seu perfil, seu perfil e sua atividade pública - como comentários e postagens que você compartilha com sua rede - não serão mais visíveis na China. Seu perfil e atividade continuam visíveis no resto dos países onde o Linkedin está disponível. Nós vamos trabalhar com você para minimizar o impacto e podemos rever a acessibilidade ao seu perfil na China se você atualizar a seção Currículo do seu perfil. Mas a decisão sobre atualizar ou não é sua.
Em fevereiro de 2014, nós começamos a oferecer uma versão local do Linkedin na China. Nós acreditamos que pessoas em todos os lugares podem se beneficiar da possibilidade de cidadãos chineses conectarem entre si e fazer conexões com usuários do Linkedin em todo o mundo. Acreditamos também que a criação de oportunidades econômicas pode ter um profundo impacto sobre suas vidas e sobre as vidas de suas famílias e comunidades."

Não foi só com ela. A história transformou-se em um escândalo que gerou reações de congressistas dos Estados Unidos quando começaram a chover postagens de jornalistas relatando bloqueios semelhantes com a mesma mensagem passivo-agressiva. Redes sociais bloqueiam perfis a pedido de governos em diversos países do mundo. A diferença agora é isso ser feito diretamente dos Estados Unidos.

Nenhuma das duas jornalistas havia entendido direito o que exatamente era proibido em seus perfis. Outro jornalista, Greg Bruno, conseguiu identificar exatamente porque a seção em desacordo com as regras era a de publicações e ele tinha só um livro ali. Era um livro que escreveu sobre a interferência chinesa no Tibet. Não se sabe e a plataforma não comentou por que exatamente agora vieram os pedidos de bloqueio, eram postagens antigas. Ninguém mudou posts.

A história escalou por causa do precedente. Em países onde a opinião pública ainda vive naquela ladainha polarizada sobre Big Tech ser libertação ou censura, isso não acontece. É uma tecnologia que muda a dinâmica do poder e estamos em fase de adaptação. Já existe um debate sobre controle de conteúdo, mas agora havia um precedente perigoso. Uma empresa sediada justo nos Estados Unidos usando cidadãos norte-americanos na tarefa é outro passo.

Recentemente a Apple, o Google e o YouTube tomaram ações por interferência direta do governo Putin em suas operações na Rússia. Os apoiadores do crítico do governo russo Aleksei Navalny criaram um app de votação pelo celular. O ativista está preso. Google e Apple tiraram o app de suas lojas. O YouTube recentemente derrubou uma campanha de anúncios do mesmo grupo e a CEO admitiu à Bloomberg que foi um pedido direto do governo russo. Mas Navalny não é cidadão dos Estados Unidos.

A Microsoft quer continuar operando em território chinês, como todas as demais Big Techs, mas está do outro lado do cabo de guerra na briga de mercado. É a primeira empresa a oferecer que seus algoritmos passem por escrutínio legal. O Linkedin já havia tentado censurar em julho um pesquisador sueco. Jojje Olson foi orientado a remover de sua página toda e qualquer menção ao massacre da Praça da Paz Celestial. A menção não era uma postagem política, era a informação de que ele escreveu uma tese sobre o tema. Mas Olson não é cidadão norte-americano.

Foi uma queda de braço entre Estados Unidos e China? Sim. Mas também há algo mais profundo que a interferência dos governos na questão. Estão definitivamente no tabuleiro os poderes criados pelos grupos que sabem como defender liberdade via internet. São enxovalhados pela propaganda do Partido Comunista Chinês, acusados de produzir Fake News para desestabilizar o governo. A seita política de esquerda acredita nisso piamente, defensores da liberdade não caem na armadilha.

A Microsoft optou por descontinuar o Linkedin na China. Se a exigência era banir perfis selecionados e dizer a eles o que podem ou não colocar nas próprias biografias, melhor fechar. A empresa criará um serviço específico para o país chamado IJobs, que será uma plataforma para busca e ofertas de vagas de emprego. A Microsoft continuará operando no país e tentando políticas de relacionamento diferentes das imaginadas por outras plataformas.

Os últimos acontecimentos mostram que os governos da Rússia e da China conseguem interferir diretamente nas Big Techs. O governo dos Estados Unidos não consegue, nem para defender seus próprios cidadãos. Há uma polarização ferrenha nos Estados Unidos, mas o valor maior é que a sociedade civil tem consciência de que o preço da liberdade é a eterna vigilância. O desfecho do caso fugiu das mãos dos políticos, foi determinado pelos valores de liberdade do mercado e da sociedade civil. Conseguiremos seguir por este caminho? Espero que sim.

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