Nem todo canalha é covarde, mas todo covarde é canalha. O refúgio mais aconchegante dos canalhas é o anonimato. Especialistas em segurança pública já argumentaram comigo diversas vezes sobre a importância real de denúncias anônimas e eu ouço porque não é minha área. No meu ramo, que é o da comunicação, existe um argumento falacioso de que o direito de falar de forma anônima nas redes seria liberdade de expressão. Tem liberdade quem tem responsabilidade para arcar com as consequências das próprias decisões, não quem pretende fugir delas.
Veículos de comunicação, agências de publicidade e marcas estão diante do desafio de lidar com grupos anônimos, todos unidos em torno de um discurso nobre e ações de ataque coletivo sem nenhum nexo com o discurso. Hoje circulam pela internet 3 amostras da chantagem virtual: Sleeping Giants, Planilha das Agências e Exponha seu Cliente. Como agir diante da popularidade desses mecanismos?
O Sleeping Giants (Gigantes Adormecidos, em inglês) é cópia de um projeto semelhante nos Estados Unidos. Trata-se de um grupo anônimo que diz combater o "discurso de ódio" por meio de desmonetização. Como em todo caso de militância simbólica e desvinculada da realidade, eles também toleram discurso de ódio e miram alvos específicos sem se importar com as consequências.
A "Lista das Agências" é um documento feito de forma colaborativa por muitos anônimos contando os bastidores do mercado publicitário. Começou também com ótimas intenções, a de enfrentar o assédio sexual e moral no ambiente de trabalho por meio do enfrentamento dos casos denunciados. Anos depois, a lista tornou-se um suco de recalque com pitadas de sadismo, uma forma de vingança contra desafetos, de catarse da inveja.
Este ano, a tal lista trouxe um desdobramento, o "Exponha seu Cliente". Também é uma lista feita de forma colaborativa por anônimos. Na coluna da esquerda, foram colocados os nomes de várias marcas importantes, que contratam com agências de publicidade para que as pessoas contem os bastidores de atender a publicidade dessas empresas. Se, até agora, tínhamos os clássicos casos de ótima iniciativa com uma terminativa patérica, a nova lista já nasceu de um poço de rancor.
Desprezo discurso feito sob anonimato. Aprendi com meu primeiro chefe, Fernando Vieira de Mello, que"quem não defende a própria dignidade mente quando diz defender uma ideia". Compreendo os que preferem pseudônimos e estão dispostos a assumir as consequências do que falam nas redes, mas não me sinto disposta a levar a sério o que dizem. Obedecer anônimos que se intitulam arautos da virtude é adubar um jardim de tiranetes.
Há mais de 10 anos a Gazeta do Povo publica entrevistas sobre o risco da atuação dos anônimos na internet. Aqui, aqui e aqui vão exemplos. Minha opinião pessoal de que devemos cumprir a Constituição e ninguém tem direito de se expressar anonimamente rendeu frutos interessantes. Os anônimos começaram nos xingamentos, passaram à difamação e chegaram até ameaças de morte a familiares. Alegavam fazer isso para renovar a política, versão repetida até por amigos pessoais , que me aconselhavam a "fazer as pazes" com esses anjos bem intencionados. Listo aqui os 10 últimos artigos que escrevi sobre anonimato:
- Julgar os outros, a nova forma de militância - Apontar os erros alheios em grupo é uma atitude que tem sido confundida com militância na era da glamurização da inutilidade.
- Os falsos guerreiros da liberdade de expressão - De um lado, os sommeliers de discurso permitido. De outro, os que chamam de “liberdade” obedecer regras particulares.
- Quando a militância virtual mata na vida real - Postagens agressivas e até ameaças são frequentemente reduzidas a zueira ou brincadeira. Mas você realmente sabe a diferença entre os recados de quem é ou não capaz de cometer atrocidades?
- Na pandemia, esgoto da internet chega às crianças - Entenda o caso “Jonathan Galindo”, em que perfis falsos utilizando a foto de um homem com máscara do Pateta tentam falar em privado com crianças e adolescentes.
- Rússia usa desinformação como arma de guerra nas eleições dos EUA - Secretário de Trump reconhece que há abalos contra a democracia e defende ação urgente do Pentágono.
- Somos todos trouxas nas redes sociais? - Tentei dar uma chance às plataformas: Twitter, Facebook, Youtube, Instagram. Quebrei a cara.
- Preso homem que abusou sexualmente de dezenas de crianças usando perfis falsos - Syllas Sousa, perfil famoso no Twitter, fingia ser uma menina adolescente no Instagram há pelo menos quatro anos e fez vítimas em todo o Brasil.
- Eles filmam o abuso sexual que cometem e viram estrelas do mundo pornô - O Brasil já tem milhões de visualizações e milhares de fãs do nicho que consiste em publicar vídeos de mulheres abusadas no transporte público.
- A desembargadora que difamou Marielle e os anônimos superpoderosos - Desculpas em privado reparam enxovalhamento público nas redes sociais? O Judiciário brasileiro tem uma decisão histórica a tomar.
- Redes Sociais: os idiotas sempre tiveram voz, a diferença está em quem os ouve - Uma viagem no tempo comparando as postagens que fazemos hoje às inscrições feitas em Pompéia, engolida pelo Vesúvio em 79 d.C.
Há quem defenda a existência de grupos anônimos bem intencionados e acredito. Afinal, de boa intenção o inferno está cheio. Dizem, meu pastor não confirma, que no inferno há um Brazilian Day destinado a essas ótimas iniciativas com terminativas patéticas.
Desde 2015 não há um dia em que eu não seja atacada por grupos anônimos, alguns mais e outros menos organizados. A trajetória deles é invariavelmente a mesma:
- Começam com um propósito nobre, uma luta David x Golias ou cidadãos contra o establishment.
- Unem pessoas em torno da causa e conseguem algumas vitórias reais e importantes para essas pessoas.
- O poder obtido sem arriscar nada faz o anônimo passar para a fase em que a amálgama do grupo é em torno de um líder infalível.
- O líder passa a eleger indivíduos como alvos, com recursos de desumanização, e atacar fingindo ser em nome da causa mas sem explicar como aquela ação ajuda na causa.
- Se o indivíduo reclamar, o líder anônimo dobra a aposta, o que pode ser feito com um simulacro de pedido de desculpas em forma de dupla ofensa. Não quis ofender, portanto a pessoa atacada não é inteligente o suficiente para ver isso.
- Grupos que não colapsam nesse momento específico vão se radicalizando.
As reações dos seguidores os dividem em dois grupos. Aqueles que não se desengajam moralmente e continuam interessados numa causa vão questionar o líder, muitos acabarão desistindo de se juntar a um anônimo. O outro grupo, o que se desengaja moralmente, pode ter basicamente 3 tipos de reação:
- Partir para o ataque direto e violento contra quem questionou o líder infalível, seja com xingamentos ou ameaças.
- Pedir que a pessoa aceite a dupla ofensa como se fossem desculpas porque o líder infalível já fez muitas coisas boas e é bem intencionado.
- Começar a minimizar o ataque, dizendo que foi só brincadeira, que a pessoa reclama de tudo, que o mundo está sem graça.
Caso a pessoa persista, surgirá o grupo dizendo que reconhecerá o ataque, mas justificará moralmente, dizendo que a pessoa merecia, pediu, chora demais, que tem gente sendo mais atacada.
Entre a guerra e a desonra
Ações virtuais e militância simbólica são importantes na justa medida em que tiverem impactos positivos na vida de pessoas reais. O anonimato e a supervalorização da militância puramente simbólica e dissociada da realidade produziram o fenômeno dos grupos que produzem no mundo real o efeito contrário àquele que pregam.
No meu caso específico, o grupo de anônimos Sleeping Giants utilizou o recurso do "só quero saber sua opinião" para tentar me intimidar a chancelar publicamente ação anônima em enxame contra um indivíduo. Respondi à altura e então usaram o recurso da dupla ofensa travestida de pedido de desculpas, o que funcionou muito bem para atiçar os seguidores. Alguns entenderam até que era para pedir a minha demissão e andam animadíssimos. Outros mandam mensagens de carinho e respeito como: "Madelena, tem como vc me ajudar aqui na horta da minha casa????? Esta faltando esterco!! kkk Você pode deitar aqui no chão para adubar a terra."
Eu não cedo a chantagem de anônimo pelo princípio da liberdade. Quem se dobra diante de intimidação de anônimo passa seu poder de tomar decisões a ele. Decidi não ceder com base em anos de experiência com grupos anônimos que se dizem virtuosos. Há muita gente do mercado de comunicação que, por acreditar nas intenções legítimas, cede diante de anônimos como esse perfil e o pessoal das listas das agências e clientes. É preciso rever essa posição.
O esgoto das redes sociais e da super bem intencionada "Lista das Agências" tem o mesmo nível tóxico e uma particular perversidade contra mulheres que se destacam no mercado. Se a intenção inicial era denunciar assédio, hoje estamos nesse nível:
" """""Chefe""""" que (...) se acha a pessoa mais f*** pelo número de seguidores que tem nas redes sociais. Só se mantém firme porque vazo ruim não quebra e lambe o rabo de todos os superiores, que sabem que inúmeras pessoas saíram da agência por causa dela e não fazem absolutamente nada".
"nome dela começa com D e termina com A, deve ter sérios problemas mentais, arrogante, estupida"
" As sócias são confusas e uma delas "a famosinha" não vai nem na empresa".
Até as 17h da tarde do dia em que esse artigo foi escrito, havia mais de 5 mil postagens na "Lista das Agências". A maioria não fala de assédio, são desabafos de rotinas acúmulo de trabalho e equipes cada vez menores e com mais tarefas. Gostaria de compreender, mas assusta que ninguém se insurja contra as ofensas pessoais. Pessoas não são o que pregam, são o que toleram.
A planilha "Exponha seus Clientes", falando das marcas de sucesso que são atendidas pelas agências, é um pudim do mais legítimo chorume da internet. Funcionários de agências de publicidade referem-se nominalmente a diretores de grandes empresas em termos, digamos, bem pouco ortodoxos. Mais grave ainda: como a participação é anônima, não dá para saber nem se quem postou trabalha em agência mesmo ou é só um desafeto que recebeu o link.
Em "Exponha seus Clientes", temos pérolas do justiçamento social de teclado. À esquerda da tabela colocaram os nomes das grandes empresas e os comentários são colocados logo ao lado:
"MI MA DOS! A gerente (cita o nome dela) é extremamente grosseira e gosta de deixar as pessoas desconfortáveis - não queira estar em reunião ou precisar conviver com ela".
" Se preocupam com reciclagem, mas tratam cliente igual lixo".
" Diretor de mídia completamente maluco, do nível de criar situações para prejudicar funcionários da agência".
"(Cita o nome de um diretor de multinacional), diretor de mídia completamente maluco, do nível de criar situações para prejudicar funcionários da agência".
" O maior lixo do universo. Pessoas completamente fora da realidade, estúpidas, sem caráter, literalmente TODOS DA (NOME DA EMPRESA) SÃO ASSIM, com excessão dos cargos mais baixos, mas aí se subirem eles vão se tornar assim".
"Querem vender mais mas as ofertas são sempre as mesmas, quando tem promoção é tudo pela metade do dobro".
É preciso repensar o deboísmo
Existem inúmeras técnicas de comunicação para sair de crises e nenhuma delas leva em conta que anônimo tenha credibilidade. Com as redes sociais, essa variável passou a existir. Pensando falar de novidades e da própria pauta, influenciadores, jornalistas, órgãos de comunicação, agências de publicidade e marcas têm dado aval às supostas boas intenções de grupos anônimos que não conhecem. Entendo que, num primeiro momento, a maioria meça a iniciativa pelos próprios valores e acredite nas boas intenções. Mas não há como evitar o confronto, já que esses grupos ganharão poder emprestando a credibilidade de pessoas reais e sem ter a mesma responsabilidade que elas.
Esperar a poeira abaixar ou ceder ao anônimo no calor do ataque para depois se reposicionar podem parecer boas alternativas e, no curto prazo, realmente podem ser. O problema é que comprometem a sobrevivência porque deixam as decisões de pessoas e marcas do mundo real à mercê dos caprichos de desconhecidos. Quando falo em ceder, há quem entenda que é fazer os caprichos do anônimo. Meus erros me mostraram que ceder é bem mais simples, basta reconhecer que a intimidação de um anônimo merece consideração e a arena romana estará montada.
Na 2a Guerra Mundial, imaginando que era possível entregar o que o povo demandava, o primeiro-ministro Neville Chamberlain assinou um tratado de paz com Hitler e Mussolini. Winston Churchill, do mesmo partido mas rival, cravou como resposta uma de suas frases mais famosas: "Entre a desonra e a guerra, escolhestes a desonra e terás a guerra". Dessa turma toda, a única viva é a Rainha Elizabeth que, aos 19 anos de idade, entrou para o Exército e trabalhava como mecânica de automóveis.
O melhor seria poder evitar ou contornar todas as guerras, mas é preciso reconhecer quando calar diante de ataques é um atentado à própria sobrevivência. Mal Chamberlain pousou com o acordo assinado, os ataques de Hitler começaram. Churchill nunca acreditou que uma negociação com Hitler e Mussolini fosse ser levada a sério, seria lida como submissão. Muito da discussão é feita sobre ideais pacifistas, mas não era esse o ponto em jogo, era dar credibilidade à palavra de quem já descumpria tratados de paz.
O Reino Unido mandou até sua princesa adolescente para o campo de batalha. Sugeriu-se que, para financiar a guerra, fosse cortado o orçamento da cultura. Churchill não quis, argumentou que, se não era para preservar a cultura do país, melhor então se render de vez. Foi esse o espírito de combate do país que conseguiu devolver a paz, enfrentando as tropas de Hitler. O mercado da comunicação tem uma decisão sobre estratégia: vamos à moda de Churchill ou de Chamberlain? Eu já fiz uma escolha.
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