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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

O Natal das Ausências

ARVORE DE NATAL / CURITIBA 17/ 11/ 05/ VIV / MATERIA SOBRE ARVORES DE NATAL E SEUS ENFEITES NA LOJA SANTA CLAUS / FOTO MARCELO ELIAS/ GAZETA DO POVO (Foto: GAZETA)

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Esses dias não conseguia disfarçar o desgosto com as privações que esse maldito vírus vai impor ao meu Natal em família, que meu filho ama de paixão. Alguém fez um post perguntando "qual foi o pior Natal da sua vida?" e a resposta do meu colega Milton Neves me paralisou. "É este, o primeiro sem a minha Lenice em 52 anos". Nada ocupa mais espaço numa ceia de Natal que a primeira ausência de quem se foi.

Lenice Chame Magnoni Neves perdeu uma batalha contra o câncer aos 65 anos de idade. "Foram 10 anos de namoro e 42 de casamento, 3 filhos, 2 netas, com ela cuidando sozinha dos meninos enquanto eu mais trabalhava na vida. Hoje, com tanta realização, foi-se o pilar", escreveu Milton Neves nas redes sociais. Inúmeras famílias vivem a dor profunda da primeira ausência todo Natal, mas este ano a dor se junta à outra, da paz que nos foi tirada há meses.

Só no Brasil, serão 188 mil 259 lugares vazios pela primeira vez na ceia de Natal devido à pandemia de COVID no Brasil, uma dor coletiva que se soma a todas as dores que esse vírus já impôs sobre todos nós durante o ano. Percebi que eu não tenho nem direito de reclamar do meu Natal com distâncias mas sem ausências. E, se no nascimento de Cristo pudermos ser um pouco como Ele, precisamos acolher quem vive essa dor.

Há profissões que são tradicionalmente ausentes nessas datas importantes. Jornalista é uma delas. Não me lembro direito quantas vezes passei Natal, Ano Novo, Páscoa, Dia dos Pais, Dia das Mães e aniversários importantes trabalhando. É do jogo, como ocorre em diversas outras profissões como porteiros, seguranças, médicos, enfermeiros, faxineiros de hospital, policiais, bombeiros, garçons, um elenco impressionante no qual não costumamos pensar na hora do brinde.

Eu tive durante anos uma experiência pessoal que foi especialmente dura para a família. Jornalistas geralmente fazem escalas de plantão de Natal e Ano Novo, dobrando o turno em uma semana para folgar na outra. A maioria das redações forma dois times que se revezam nos diversos feriados para que as pessoas possam se programar e minimizar a ausência na convivência familiar nesses momentos. Só que eu trabalhava em um lugar onde isso não tinha a menor importância.

As folgas de Natal e Ano Novo eram só no dia 25 e primeiro e, às vezes, na véspera. O principal problema é que nos informavam aos 49 do segundo tempo, às vezes no dia 23 de dezembro, o que impedia qualquer tipo de programação com a família nessas datas ou em qualquer outro feriado. Passei quase 10 anos pedindo para folgar no Ano Novo porque tinha o sonho de ver os fogos na areia de Copacabana, consegui só depois dos 30 anos de idade. Era assim em todos os feriados e não se emendava jamais.

Numa dessas confusões, me avisaram numa sexta-feira que eu teria de passar o final de semana no litoral de São Paulo e voltaria só na segunda. Meu pai ficou muito contrariado porque já tinha comprado tudo para um churrasco, queria reunir os filhos e eu havia confirmado. Do alto dos meus 20 anos, bati o pé que minha profissão era assim e ele não entendia. Ele retrucou que era um desrespeito impedir o convívio familiar e só faziam isso sempre comigo porque eu não era filha de ninguém importante e deixava fazerem. Batemos boca, muitos anos depois descobri em quantas dimentões ele tinha razão.

Esse diálogo telefônico foi o último que eu tive com meu pai. No dia seguinte, ele enfartou aos 47 anos de idade. Eu voltei do plantão direto para o velório. Passados os dias de luto, a primeira reportagem que me foi passada incluía uma ida ao Instituto Médico Legal, onde teria de ver um cadáver. Implorei para não ir, fui ameaçada de demissão. Foi a primeira lição que a vida me deu sobre como é importante escolher a quem dedicamos nossa presença.

Lembro de ter passado meses ligando para o meu pai quando tinha algum problema e só percebia que ele estava morto depois de haver discado. E eu tive um ritual de despedida completo, com abraços, toda a família. As famílias dos milhares de mortos por COVID e milhares de outras famílias brasileiras não tiveram esses rituais. Todos conhecemos alguém que passou por isso e, de alguma maneira, seremos afetados por esse trauma da morte sem despedidas.

Eu não sou a única a colecionar arrependimentos, mas os que acabam em mortes sem despedida precisarão de mais compreensão e acolhida para que cada um se refaça e a nossa sociedade possa se reerguer. Conheço uma pessoa que, no início da pandemia, pensava que era tudo uma teoria conspiratória, tinha opiniões muito fortes, foi a manifestações e contraiu COVID. Transmitiu ao pai, que morreu. Não pôde se despedir, se explicar, pedir desculpas, nada. É um peso desumano para carregar.

Uma amiga me contou dias atrás do caso de um conhecido, estrangeiro, que meses atrás teve uma oportunidade de voltar ao próprio país nesses voos organizados pelo governo. Vários amigos disseram para que aproveitasse a chance de ver a mãe, mas ele não quis deixar o emprego pelo qual lutou a vida toda. A mãe dele morreu esta semana, infecção muito rápida, sem tempo para despedidas. Ele não pôde ir ao velório porque o país não permite a entrada de quem esteve no Brasil.

Semana passada, uma médica me contou ter ficado sem saber o que dizer à paciente dela diante do relato sobre perdas familiares. Em duas semanas, havia perdido a mãe, uma irmã e um irmão. Reclamava da dor de não poder se despedir. Na morte por COVID, alguém te liga do hospital dizendo que a pessoa morreu e, quando o parente está na pequeníssima cota dos que podem ir ao ritual fúnebre, se depara com um caixão lacrado. Nada de abraços.

Todos nós temos dentro da alma a lembrança exata do sentimento do primeiro Natal sem alguém que amamos. Sejamos primeiramente gratos pela bênção de poder usufruir do dom da vida, de passar mais um Natal, seja como for. Cada um de nós tem suas dores e mágoas para viver este ano, mas não nos esqueçamos de renovar nossas esperanças nas presenças que temos, nos que estão aqui.

Diante de tantas dores e frustrações, das mais trágicas aos menores detalhes, é um risco perder o foco no que realmente é importante na vida. As pessoas que amamos, que estão presentes mesmo à distância e a felicidade de viver essa conexão jamais podem ficar em segundo plano, seja na alegria ou na dor profunda. Tempo é nosso bem mais precioso e, às vezes por absoluta necessidade mas também por desleixo, gastamos esse bem do jeito errado, no lugar errado, com as pessoas erradas.

O pesadelo trazido pelo ano de 2020 era, até meses atrás, coisa que nos parecia exagerada até em filme de ficção científica. Você, com toda certeza, descobriu forças, talentos e habilidades que não imaginava serem possíveis no Natal passado. Este ano esfregou na cara de cada um de nós o quanto a vida é frágil, a existência é breve e nossos planos são uma piada diante da natureza e do destino. Nós não estamos no controle de coisa nenhuma e talvez nem tenhamos sido feitos para estar.

O futuro não pertence a nós, viveremos o que nos for dado com a coragem e sabedoria que tivermos naquele momento. É o Natal das ausências de todo tipo, de gente que amamos, grandes artistas, nossos rituais familiares, nossa ilusão sobre o bom senso e o respeito à sociedade de muita gente. O nascimento de Jesus foi um sopro de esperança para a humanidade. Que seja também o nosso.

O Deus menino veio numa família que fugia, teve pouso negado, precisou se enfiar num estábulo para fazer um parto, mas estava unida e tinha no coração a esperança de um mundo renovado. Que saibamos perder nosso amor por controlar e abracemos aquilo que realmente move a humanidade, a esperança. Eu não vou mais reclamar do meu Natal, oro por quem tem dores muito mais profundas que as minhas e para que saibamos superar esse trauma coletivo. O meu presente nesse furacão é definitivamente conseguir enxergar com clareza o valor da presença. Desejo isso a você.

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