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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

O dom de acreditar

O que deve ser patrimônio imaterial do Brasil: o pilantra ou o otário?

(Foto: Unsplash)

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Confesso que o artigo não seria sobre este tema, mas sobre uma live da OAB em que se debatia a possibilidade de extraterrestres terem atacado o Exército Russo na invasão da Ucrânia. Infelizmente, o entrevistado, médico ucraniano especialista em cognição, acabou com a minha alegria nos primeiros minutos da live.

Estava lá só para ficar perguntando sobre ET no chat e ele foi brilhante falando sobre desinformação, manipulação de redes sociais, manipulação de imprensa e processos cognitivos do cérebro. Vi tudo e esqueci dos ETs, um absurdo. Quando me peguei pensando como o pessoal realmente embarcou nessa de ET, resolvi entrar no Twitter, que é a cracolândia ideológica da internet. Entendi de cara.

Havia uma briga de sinalizadores de virtude em torno do BBB: o cabo de guerra entre antirracistas e antimisóginos entrou em ação e, obviamente, chegou aos Trending Topics. Pelo que eu entendi, era um quadro de bate-boca entre um homem e uma mulher que envolveu todo mundo.

O homem, marido campeão nacional de puladas de cerca, teria feito manterrupting e gaslighting com a mulher. Seria misoginia? Depende. Logo surgiu um grupo dizendo que a mulher havia feito um gesto racista dias atrás. Então, não seria misoginia porque ela merece. Dois minutos depois já tinha chuva de meme falando do perigo das lágrimas da mulher branca.

Esse importante debate entre intelectos tão sofisticados como o Dollynho foi interrompido por uma bomba: o homem do bate-boca é assessorado por uma poderosíssima agência de comunicação digital. Tudo o que faz é marketing e a mulher dele, que é ex-BBB, usa as redes para desviar a atenção quando ele erra. Lembra da história de ser proibido de comer pão em casa? O estupro alimentar? Então, era marketing. Quem diria, não é mesmo? Parecia tão verossímil.

Nos idos de 1980, era corriqueiro o público enfrentar na rua e até chegar a bater em atores e atrizes que interpretavam vilões de novela. Mas era uma minoria. A quantidade de gente que eu vi hoje chocada com a profissionalização do Big Brother é impressionante. Estamos falando de um homem que foi ator de Malhação, casado com uma mulher que se fez profissionalmente no Big Brother. Ele vai lá no improviso tentar a sorte? Quem ali está no improviso mais de 20 anos depois da primeira edição?

Há uma fixação com o conteúdo do tipo machismo ou racismo. Ela vem acompanhada de uma incapacidade notável de ler o contexto. Há 20 anos não havia rede social, a relação do público com a atração era diferente e a vida após o Big Brother dependia muito das relações que a pessoa desenvolveria com a Globo. Agora todos podem alavancar a carreira se tiverem uma atuação de redes profissionalizada.

O objetivo daquela exposição muda com o avanço tecnológico. Existem equipes competentíssimas para criar personas e arquétipos que serão usados na casa, balanceando os diversos competidores. Talvez por isso os fãs de BBB reclamem tanto que não tem ação. No último, gente que exagerou demais se deu mal. Há coisas que funcionam bem nas redes mas não na televisão. A estratégia foi ajustada, simples assim.

Aproveitar uma oportunidade de exposição na era da economia da atenção é um padrão de comportamento. Era o que eu pensava até hoje. Aprendi que isso é ser pilantra. E aí fico na dúvida se o orgulho nacional é o pilantra ou o otário. Quem acredita em espontaneidade na mídia também deve acreditar que comentar Big Brother é militância.

Por falar em militante, há um outro ponto. Sempre me incomodou a cegueira deliberada sobre os arremedos de militante inventados pela publicidade. Toda militância política pretende mudar estruturas de poder. Projetos de publicidade e empresas pretendem manter a estrutura de poder que conquistaram. Hoje ficou claro para mim por que as pessoas acreditam.

Quem é otário o suficiente para achar que comentar Big Brother é militância política também vai acreditar que aparecer em publicidade de empresa é militância. O problema é a quantidade de gente da imprensa que acredita nisso. De repente, esse pessoal que repete clichês, persegue os outros e vive de publicidade tomou o lugar de militantes políticos até no noticiário político. Chama-se jornalismo kamikaze.

Aqui é mais um ponto em que ressurge minha dúvida sobre o que seria o grande patrimônio nacional, o pilantra ou o otário. Não é qualquer um que se meteria a convencer os outros de que publicidade de empresa pode ser militância política pela mudança em estruturas de poder. Avalia se realmente o povo acaba com a "cultura do patriarcado" do dia para a noite o que aconteceria. Convencer os outros de algo tão absurdo assim coloca meu coração na balança do pilantra.

Em seguida descobri outra coisa. Ano passado foi fundada a Ajor, Associação Brasileira de Jornalismo Digital, uma associação patronal. Estão lá muitas das grandes estrelas da era digital do jornalismo brasileiro. O estatuto e o código de conduta são muito bem feitos. Mesmo assim, a associação tem um filiado que é troll de internet e persegue justamente jornalistas. Quem é melhor aqui, o pilantra ou o otário?

Você já deve ter ouvido falar em troll porque muita gente prega "não alimente o troll". Há uma confusão entre não interagir com ele e ignorar sua ação. Troll é alguém que passa o dia inteiro atacando outras pessoas na internet. Antes da mudança dos algoritmos, por volta de 2010, esse comportamento era uma questão de perversão moral e prazeres mórbidos.

Hoje, agir como troll pode servir para crescer perfis, criar uma rede de apoiadores fortes e alcançar objetivos políticos. Um dos principais combustíveis de engajamento nas redes é o Schadenfreude, palavra alemã que significa o prazer pelo sofrimento de quem não gostamos. Um dos filiados da Ajor cresceu suas redes atacando jornalistas.

Aqui não falo de "ataque" com o mesmo sentido que você ouve muito jornalista falar, que é a crítica ao conteúdo, o xingamento ou a ameaça. O ataque é a orquestração de um número de perfis atacando a pessoa que torne impossível a defesa e aumente exponencialmente o engajamento de quem iniciou o movimento. Para isso, é preciso carregar nas tintas. Eu explico nesse vídeo como funciona o mecanismo:

O glorioso associado da Associação Brasileira de Jornalismo digital é um troll prolífico. Em 3 dias fez MIL E QUINHENTAS postagens sobre mim. Isso mesmo, MIL E QUINHENTAS. Diversos colegas jornalistas engajaram com ele na ocasião. Diante dos ataques, vinham me dar lições de moral e demandar pedidos públicos de desculpa pelo que eu nem tinha dito. Confira a seguir, algumas das "críticas" do colega:

A cereja do bolo: o método de crescimento de perfil utilizado pelo associado da Associação Brasileira de Jornalismo Digital, Ajor:

Aqui estou novamente em um impasse. É um patrimônio nacional alguém que declaradamente vive de atacar jornalista na internet pedir para fazer parte da Associação Brasileira de Jornalismo Digital. Mas daí me vem a Ajor e aceita o pedido. Como decidir se nosso patrimônio é o pilantra ou o otário?

Sem a ajuda involuntária da imprensa brasileira, os movimentos de ataque digital na política não teriam tanto sucesso. Tudo o que é feito por esses perfis é para que cheguem à mídia mainstream. Eles já chegam diariamente no noticiário, que não cobre mais a vida real, cobre o Twitter. O jornalismo declaratório é a antessala do jornalismo kamikaze.

A fase realmente kamikaze é quando os jornalistas começam a emprestar a credibilidade conquistada em décadas a aventureiros de internet. Na Ajor, a opção foi emprestar a credibilidade da associação toda para um troll de jornalista. Em outros casos, o empenho é individual.

Existe um perfil famoso no Twitter chamado "pensar a história". Na verdade, é um perfil que faz campanha política para o PT, o que é direito dele e não tem nada de ilegal. Enquanto houver otário... Enfim, a técnica aplicada é da breadcrumb trail, uma das mais famosas na manipulação política digital. No caso específico, ela é muito bem utilizada.

Breadcrumb trail é quando você elenca diversos fatos verídicos e verificáveis mas cria entre eles uma razão de causa e consequência que não existe. Enxergar padrões é um dos grandes talentos do cérebro humano, inclusive enxergar padrões que nem existem. Quando olhamos para nuvens e vemos animais, é isso que nosso cérebro faz, reconhece padrões.

Entendo quem considera errado que se faça isso ou contas que fingem ser sobre um assunto mas são militância política. Fosse com crianças, concordaria 100%. Com adultos não deveria nem funcionar. Mas funciona muito. Aliás, funciona até com jornalistas, que emprestam a própria credibilidade a essas contas apócrifas.

Aqui eu fico ainda mais dividida. O criador do perfil é um esperto e competentíssimo em mistificação. Aliás, não esconde que faz campanha pelo PT, posta isso abertamente. Muita gente que entende de internet já percebeu e percebeu inclusive o processo de radicalização e aumento da agressividade dos seguidores do perfil. É algo natural da manipulação ideológica.

No lado do pilantra temos quem consegue fazer militância passar goela abaixo até de jornalista como se fosse história. Mas o lado do otário agora lotou. Tem primeiro os jornalistas que acreditam. Mas há ainda uma outra categoria: o bajulador de jornalista que foi enganado por perfil apócrifo. Aqui, sinceramente, meu coração começa a pender para o otário. Talvez seja nosso maior patrimônio.

Muitas vezes sou dura quando digo que o Brasil é um canavial de trouxas. Nessa área da manipulação digital e do marketing, eu muitas vezes fui essa pessoa trouxa que caiu feito um pato. Pessoas muito mais inteligentes do que eu também caem. Fomos educados com mente analógica e ainda tateamos o universo digital.

Agora eu vou para o desempate final com o Melancia Gate. Eu já tinha visto na internet a foto da suspensão do digníssimo aluno da 3a série B por levar uma melancia para dividir com os colegas na sala de aula. O texto não reflete a balbúrdia que ele causou. Já ocorreu o mesmo comigo.

As freiras responsáveis pela disciplina enviaram uma advertência para que meu pai assinasse. "Sua filha foi advertida por ter soltado 'peido de véia' na sala de aula em horário de prova", dizia o documento. Não tem como não rir. Meu pai não riu, aliás nem leu porque eu falsifiquei a assinatura e devolvi. Eu não ia ser nem louca de tentar fazer piada com isso.

Para quem não conhece, "peido de véia" é um barbantinho. Quando você queima, ele espalha um cheiro horroroso, ninguém consegue ficar no recinto. É algo que gruda no nariz. Foi um recurso informal que utilizamos para transferir a data de uma prova diante da recusa do professor em acatar o pedido. Eu tinha uns 12 anos. O da melancia é um marmanjo, tem 17:

A internet foi à loucura. A escola seria autoritária demais, a criança não pode nem distribuir uma melancia. Imagina repartir o lanche e ser punido. As reações são impagáveis. Eu fico pensando o que fariam da vida esses adultos se tivessem de impor autoridade a um adolescente. Iam chorar no banho.

Piora. A mãe do aluno em questão, um jovem rapaz, fez um vídeo no canal dela no Instragram dando razão para a escola. Ela apoiou o colégio e ainda fez o filho botar o rabo entre as pernas e pedir desculpas na rede social. Para a molecada, o problema não é pedir desculpas, é ser na rede social.

Está certíssima a mãe em reforçar a autoridade do colégio onde o filho dela estuda há 14 anos. Aliás, um dia de suspensão saiu até barato demais. Tratar todo aluno como um libertário que vai denunciar o que o professor faz de errado é um risco enorme.

Piora ainda mais. Você lembra do churrasco de melancia da Bela Gil? Creio ser o episódio mais famoso da carreira da chef. Quando soube que a escola puniu por causa de melancia, ela não se aguentou. A Bela Gil ligou para a escola tirando satisfação. Diante do surrealismo, vou repetir para ver se eu acredito. A Bela Gil ligou para a escola em defesa da melancia. Os seguidores dela acharam bom.

Imagem do corpo da matéria
Imagem do corpo da matéria

Ainda não acabou. Três dias depois do ocorrido, virou reportagem de jornal de grande circulação. Digamos que quisessem aproveitar o que bombava na internet para gerar cliques. Isso existe. Mas só perceberam três dias depois do ocorrido? Se botar para tomar conta de duas tartarugas, uma foge e a outra engravida.

Para mim ficou finalmente claro. O grande patrimônio nacional é mesmo o otário. Temos pilantras de altíssimo nível, mas não são tantos. Basta um pilantra para mobilizar uma multidão de otários de nível ainda mais altíssimo. Outro critério de desempate é o projeto de futuro. A pilantragem vai crescer, mas independe de um projeto consistente. Nas redes sociais e na imprensa vemos que está em curso um projeto nacional de formação de otários, que ainda terá muito mais sucesso.

Da minha parte, tenho até um projeto para o dia em que finalmente reconhecermos o otário como patrimônio imaterial do Brasil. Vamos precisar mudar a frase da bandeira. Nunca consegui decidir entre duas. "Sou brasileiro, acredito em tudo" e "Enquanto houver otário, malandro não morre de fome". Escolha sua preferida.

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