O escândalo da Cambridge Analytica foi o que chamou a atenção do mundo para o uso de dados dos usuários de redes sociais em campanhas manipuladoras, principalmente na área política. Um bom resumo de como funciona esse mecanismo mundial é feito pelo documentário "Verdade Hackeada", à disposição na Netflix.
A estrela é uma personalidade muito interessante, Brittany Kaiser, uma moça de 30 anos de idade com problemas financeiros e de saúde na família. Não pensem que vamos ver mais uma historinha de como Trump é mau e Obama deveria ser canonizado, ela trabalhou nas duas campanhas e diz que o queridinho dos progressistas usava as mesmas técnicas de manipulação, a diferença é que houve um progresso na tecnologia, principalmente do Facebook.
Brittany Kaiser trabalhava como voluntária no Partido Democrata até que seu pai teve uma doença incapacitante e a família foi ameaçada de despejo. Ela tentou ser contratada para alguma vaga, mas não conseguiu. Foi então sondada pela Cambridge Analytica, que trabalharia com o Partido Republicano e estava disposta a oferecer ótimas condições de trabalho. Ela aceitou na hora e, no documentário, diz que não se arrepende.
Depois de depor no Congresso dos Estados Unidos e rodar o mundo contando o que fez na eleição de Trump e no referendo do Brexit, Brittany Kaiser começou 2020 com uma nova empreitada: está virando uma espécie de Wikileaks da manipulação das mídias sociais. Ontem, ela abriu uma conta no Twitter que não tem o nome dela, mas da qual assume autoria, e postou os documentos originais da Cambridge Analytica sobre 5 países e o primeiro da lista é o Brasil.
Brittany Kaiser quer divulgar mais de 100 mil documentos detalhando as ações de manipulação de mídias sociais da Cambridge Analytica em 68 países. Eu trago para vocês um resumo do que há sobre o Brasil.
São, ao todo, 16 documentos sobre o Brasil, 12 PDFs, 2 documentos de Word, uma planilha de Excel e uma apresentação no Powerpoint. Os PDFs são emails trocados entre a própria Brittany Kaiser, o diretor de campanhas eleitorais do SCL Group - ao qual pertencia a Cambridge Analytica - e a pessoa que deveria ser o correspondente deles no Brasil, Pedro Vizeu. A troca de emails começa em 2016, quando se planeja a vinda da especialista em campanha ao Brasil para fazer contatos políticos.
Imaginar que a Cambridge Analytica tinha preferências ideológicas ou focava em aliados de Trump é uma enorme bobagem. Em 2016, Brittany estava escalada para trabalhar em 12 países, atendendo políticos das mais diferentes ideologias.
Chegou a ser feito um material em português do Brasil oferecendo o que seriam os serviços do SCL Group por aqui. Não havia equipe própria, mas uma tentativa de parceria entre a Cambridge Analytica no Reino Unido e parceiros locais, como se fez em vários dos 68 países onde se pretendia operar. No caso do Brasil, havia uma única empresa parceira, a Ponte Strategica, que também dizia estar tentando parceria para expandir para o Equador.
O resumo dos serviços é bastante interessante. Dá nomes bonitos a coisas que viraram tabus nas redes, como criar perfis falsos para impulsionar campanhas. (CLIQUE AQUI para ver o folder completo.)
Pode até dar um pouco de medo porque parece ficção científica, mas como esse tipo de ação pode distorcer a política sendo que somos todos adultos, decidindo como adultos e convivendo em sociedade?
O segredo é interditar o diálogo entre as pessoas: um grupo não vê as mensagens que o outro recebe e, quando se falam, um tem a impressão de que o outro está louco, o que apenas reafirma sua convicção inicial.
O "case" mostrado no folheto é o levantamento de fundos para a campanha de John Bolton em Arkansas, Carolina do Norte e New Hampshire. Foi feito um levantamento com base nos anseios, comportamento e gatilhos psicológicos do eleitorado e, então, se percebeu que a questão de segurança era uma das principais preocupações. Só que havia pessoas com opiniões diferentes: algumas querendo respostas mais radicais e outras a favor de medidas mais contemporizadoras. Como falar com os dois grupos? Mandando uma mensagem diferente para cada um:
Os anúncios do político não têm mais relação com a plataforma dele, cada grupo recebe exatamente aquilo que pensa e sente e não vê os anúncios que dizem o oposto, direcionados apenas ao grupo que pensa diferente. Não seria necessário mentir a um dos grupos? Claro que sim, talvez aos dois.
Os dois grupos pensam que o candidato tem alinhamento com seus pensamentos e passam a ver o outro grupo com desconfiança. Se alguém na classificação "neurótico" recebe diversos anúncios criticando a política de segurança dos governos anteriores, não vai acreditar no amigo do grupo "cordato", que vê o candidato minimizando o conflito político. Cada um recebe sobre o candidato aquilo que pensa, não aquilo que o candidato realmente propõe.
O que a Cambridge Analytica trouxe é uma nova forma de fazer política, em que pouco importam as convicções ou propostas de um candidato, o importante é falar ao eleitorado exatamente o que ele quer ouvir, individualmente, no fundo da alma, sem que ninguém mais saiba o que foi dito a ele. O candidato não tem uma proposta, tem a projeção individual dos desejos de cada eleitor.
O QUE ACONTECEU NO BRASIL?
O desfecho dos meses de trocas de email entre a Cambridge Analytica e seus sócios por aqui é o que eu geralmente defino como "um suco de Brasil'. A reunião em São Paulo foi preparada durante meses e foi requisitado que o diretor global da área eleitoral do SCL Group pudesse se reunir com pessoas proeminentes no campo político, integrantes de "think tanks" influentes, intelectuais, pessoas do mercado e empresários.
Na semana da viagem, o parceiro brasileiro, Pedro Vizeu, avisa o tal diretor que estava "preso na Europa" em outros compromissos e não poderia acompanhá-lo ao Brasil. Seria recebido pelo sócio, André Torretta, que já havia dado entrevistas detalhando como a Cambridge Analytica atua e que tipo de serviços ofereceriam no Brasil, já que o modelo deles mede 7 mil pontos de informação para traçar perfis psicológicos individuais, mas a lei brasileira permite o acesso apenas a 750 desses pontos necessários. Ele havia alegado que a complementação seria feita cruzando dados individuais com dados do IBGE.
O parceiro brasileiro da Cambridge Analytica disse à sede que estava tendo problemas em marcar reuniões com políticos por causa da Operação Lava Jato - e mandou um link da Wikipedia explicando do que se tratava. O diretor global pergunta a Brittany Kaiser se ela não tem outro contato no Brasil porque Pedro Vizeu havia sido "uma grande decepção". A nossa participação no vazamento termina aí.
De acordo com os documentos, a única perspectiva era ter encontros com 4 candidatos a prefeito, nenhum líder nacional. Depois, na hora de marcar mesmo, nem isso se conseguiu. Pedro Vizeu prometeu apenas os contatos de 3 ou 4 líderes políticos e empresariais brasileiros. Também falou na possibilidade de trabalhar para cerca de 20 empresas na área de telecomunicações, bancos e energia, mas sem especificar quais seriam nem marcar contatos.
O vazamento tem a lista de contratos que Brittany Kaiser acompanhou entre 2015 e 2017, com detalhes do lucro obtido em cada um, nomes de contato no país e duração. São, ao todo, 37 contratos, em países de todos os continentes. O Brasil não está entre eles.
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