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Uma decisão tomada ontem pelo Superior Tribunal de Justiça foi celebrada em vários órgãos de imprensa como o fim do drama de um inocente. Não é bem esse o caso, trata-se de uma decisão histórica que afeta a vida de cada um de nós e pode ter consequências muito benéficas sobre uma das principais reclamações dos brasileiros, a impunidade. Julgando um habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública de Santa Catarina, o STJ reviu a própria posição e decidiu que apenas o reconhecimento fotográfico ou visual de um suspeito não é suficiente para condenação.
O defensor público Thiago Yukio Guenka Campos não precisou de mais de 5 páginas para convencer os ministros com uma argumentação brilhante sobre um caso que seria cômico se não fosse trágico: o condenado era 25 centímetros mais alto que o suspeito identificado no local do crime. O homem que estava quase iniciando o cumprimento da pena de prisão domiciliar após o julgamento em segunda instância tinha quase 2 metros de altura. O assaltante tinha 1,70m.
O caso específico é o de um roubo ocorrido na churrascaria Costelão, anexa ao posto Presidente, na cidade de Tubarão, em Santa Catarina, no ano de 2018. Dois homens armados e usando capuz, moletom e chinelos de dedo renderam funcionários e clientes para subtrair R$ 50 do caixa e pertences pessoais. O Boletim de Ocorrência foi registrado, partiu-se para a tentativa de reconhecimento e aí começa o famoso processo de desleixo em cima de desleixo que termina prendendo o primeiro que aparece enquanto os criminosos ficam livres.
Até ontem, o Brasil entendia que era possível admitir que somente o reconhecimento fotográfico do suspeito fosse a base de uma condenação. Depois de ver que estamos condenando em Segunda Instância e mandando para a cadeia uma pessoa 25 centímetros mais alta que o criminoso real, decidiu-se mudar a regra. Todos agradecemos.
Caso não houvesse desleixo, seria impossível que, dadas as idas e vindas de um processo penal, uma pessoa fosse condenada em Segunda Instância sendo evidentemente diferente do suspeito descrito pelas vítimas. Detalhe: ele já iria preso em Segunda Instância, como a imensa maioria dos presos brasileiros, por isso o recurso foi feito ao STJ, que o inocentou. Vale saber que 1/3 dos presos brasileiros não foi julgado nem em primeira instância.
Nesses casos, aponta-se imediatamente o dedo para a polícia e com razão. O delegado responsável pelo caso fez o reconhecimento fotográfico sem dar muitas escolhas. Em um dos casos, mandou por e-mail uma foto do homem que acabou condenado perguntando se era aquele. A vítima disse que sim. O mesmo ocorreu com as demais. O processo foi aberto pelo Ministério Público contra um homem de quase 2 metros de altura informando textualmente que o suspeito descrito tinha 1,70. O homem foi julgado e condenado. O culpado está solto.
O que muda agora na lei?
A forma como o STJ interpretava a lei anteriormente dependia do bom senso na condução do processo para funcionar e vimos que não é possível contar com isso. Mas há um ponto ainda mais importante, ignorava-se uma característica importantíssima da mente humana chamada pelos cientistas de "Efeito Mandela" devido ao fato de muitas pessoas terem a memória real da notícia morte de Nelson Mandela na prisão.
Entre os fãs de Star Wars, como eu, há o clássico "Efeito Mandela" de lembrar nitidamente de Darth Vader dizendo "Luke, eu sou seu pai", frase que ele nunca disse. Uma boa para os fãs de música: como Freddy Mercury terminava "We Are The Champions"? Se você já ouviu mentalmente ele emendando "of the world" errou. Ele faz isso no meio, mas não no final da música na gravação original. Tanta gente tinha essa memória errada que ele começou a realmente cantar no final nos shows ao vivo para não deixar o público cantando sozinho.
Pela internet você encontrará explicações dizendo que vivemos no multiverso ou na matrix. A realidade não é tão emocionante, vem do comportamento instintivo do cérebro humano, fundamental para a nossa sobrevivência. Nosso cérebro reconhece padrões, trabalha o tempo todo assim. Se não temos todas as informações de que necessitamos, ele preenche lacunas inconscientemente. É assim que se escapa de uma picada de cobra por ter visto uma sombra no mato, da mesma forma que se identifica alguém por engano numa foto.
Nesse julgamento, a organização Innocence Project Brasil mostrou dados alarmantes. Nos Estados Unidos, num conjunto de 375 casos de condenações revertidas na justiça, 69% decorreram de identificações equivocadas. Também foi mostrado um estudo acadêmico com 2679 casos criminais em que 40% das identificações estavam erradas. Selecionando entre eles apenas os de roubo, 81% das identificações por foto estavam erradas. Além da tragédia da punição do inocente, temos outro problema, a impunidade do criminoso.
"Segundo estudos da Psicologia moderna, são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis", disse o ministro Rogério Schietti Cruz em sua decisão.
E nos casos em que a testemunha tem a memória correta e faz o reconhecimento? Agora vamos simplesmente deixar de lado? Não. Até ontem, havia uma distorção gravíssima no coração de todos os processos criminais brasileiros, que foi corrigida. A nossa lei descreve um método objetivo para tentar garantir que o reconhecimento fosse o mais fiel possível só que, se isso não fosse feito, a prova antes continuava válida. Agora não será mais.
Vamos à letra da lei, o artigo 226 do Código de Processo Penal, a forma como você deve imaginar que sejam feitos todos os reconhecimentos de suspeitos de crimes.
Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:
I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Não parece nada do outro mundo. Primeiro se pede a descrição do suspeito, depois se pede para escolher um entre vários semelhantes àquela descrição, resguarda-se a identidade da testemunha caso se tema pela segurança dela e o reconhecimento é presenciado por mais duas pessoas. Ocorre que, como os processos não eram anulados pela desobediência desse rito, há casos em que ocorre uma verdadeira esculhambação.
"Não houve prévia descrição da pessoa a ser reconhecida e não se exibiram outras fotografias de possíveis suspeitos; ao contrário, escolheu a autoridade policial fotos de um suspeito que já cometera outros crimes, mas que absolutamente nada indicava, até então, ter qualquer ligação com o roubo investigado", explicou o ministro sobre o primeiro réu, o da diferença de altura. O outro condenado pelo roubo também não havia entrado armado na churrascaria. Ele emprestou o carro da fuga aos dois assaltantes, que jamais foram identificados no processo. Também não foram investigar se ele sabia ou não do roubo.
Todas as testemunhas ouvidas confirmaram o reconhecimento por foto na polícia, mas em juízo várias disseram não ter certeza absoluta. Alguns haviam visto os dois assaltantes na parte da tarde no posto, antes das 19h, quando cometeram o crime e até sugeriram que se poderia averiguar as câmeras de segurança, o que foi feito de forma bastante interessante: viram até corte de cabelo, mas não mediram a altura.
A depoente confirma o relatado em seu depoimento de que o indivíduo que estava próximo de si tinha cerca de 1,70 (um metro e setenta) com base na altura da depoente, que é cerca de 1,60 (um metro e sessenta); [...] que a depoente não viu o indivíduo com nitidez, viu mais a parte da boca e o nariz (que era grande), barba por fazer; que estava de moletom com capuz; [...] que não tem dúvida de que o reconhecimento que fez na delegacia era relacionado à pessoa que estava próximo à depoente", diz o inquérito que aponta como culpado o homem de 1,95m.
O Ministério Público argumentou que a diferença de altura não descaracterizava a prova. O juiz acatou. "A menção das vítimas sobre a estatura de um dos acusados, não deve ser tomado isoladamente, para, de modo totalmente contrário aos demais elementos colhidos, afastar a condenação. Calha consignar que foram abordadas e surpreendidas dentro do restaurante enquanto jantavam, sendo ameaçadas para que não olhassem para os acusados", diz a sentença de primeira instância.
A defesa recorreu ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina. O Ministério Público manteve a versão de que o réu era o culpado pelo crime. Os desembargadores decidiram que o argumento era válido. "Ademais, importante ressaltar que a vítima afirmou judicialmente que confirma o reconhecimento realizado na Delegacia de Polícia, apesar de na data da audiência afirmar que não teria condições de reconhecer novamente o réu em razão do transcurso de tempo . No que se refere à questão da altura do réu, que foi apontada pelas vítimas como sendo de aproximadamente um metro e setenta centímetros, quando consta do documento que ele teria cerca de um metro e noventa e cinco centímetros, tem-se que não afasta a credibilidade do reconhecimento feito no dia seguinte aos fatos, uma vez que as vítimas apontaram detalhes da face do réu, que estava com o rosto apenas parcialmente coberto. Não bastasse, as imagens apresentadas pela própria Defesa, também demonstram as semelhanças entre o autor do fato que aparece nas imagens das câmeras de segurança e o réu, especialmente a estatura, o formato do nariz e até mesmo o corte de cabelo, o que corrobora o reconhecimento efetuado pelas Vítimas na Delegacia de Polícia", diz a sentença.
Este ponto é muito interessante. Não fica claro se os desembargadores entenderam que a pessoa nas filmagens tem 1,70m ou 1,95m. Se a pessoa da filmagem tem a mesma altura do réu e teria ligação com o crime, era preciso investigar e oferecer denúncia, para que ele fosse preso. A decisão tomada, no entanto, foi outra, de seguir o processo levando em conta que ele seria o homem dentro do restaurante, o que não batia com a identificação. Pense em quantos servidores públicos regiamente pagos, com estabilidade e aposentadoria integral, foram necessários para que chegássemos a esse desfecho magistral.
A bola de neve da impunidade
Nunca saberemos a história daquele assalto à churrascaria porque não houve esforço para desvendar a verdade. Todos os esforços foram para prender alguém e dizer que era o criminoso. O julgamento do STJ é histórico porque vale para todos os casos a partir de hoje: não vai mais ser tão fácil fazer esse tipo de teatro no Brasil.
Tínhamos uma brecha perigosa que pode já ter condenado muita gente inocente. Para além disso, o reconhecimento fotográfico esculhambado era uma saída para aliviar imensas pressões pessoais sofridas por quem trabalha no enfrentamento da criminalidade. Exibir culpados à sociedade e alta taxa de resolução de crimes é um ativo político importantíssimo para os governadores. Eles são chefes diretos das polícias, que têm inúmeros problemas estruturais e de salários. Também são eles que, com o próprio poder somado à ascendência sobre as Assembleias Legislativas, definem o orçamento e muitos dos destinos e privilégios pessoais no Judiciário e no Legislativo.
Aqui não estamos falando de pessoas más que arquitetam a perversidade de jogar inocentes numa cela até o final da vida para se beneficiar. Falamos de burocratas que, pela ilusão de heroísmo, vontade de aparecer na televisão ou de apresentar ao chefe um bom resultado de trabalho, cometem pequenos deslizes. O problema é o poder que eles têm. Um papel sumido ou um carimbo de mau jeito podem parecer insignificantes para o burocrata mas, acumulados, transformam-se em inocentes presos, criminosos soltos e cidadãos ansiosos diante da criminalidade.
Nós, da imprensa, também temos nosso papel nisso. Raramente temos condições ou tempo de ir aos detalhes quando um político apresenta uma melhoria impressionante na taxa de solução de crimes ou de condenações. Damos espaço para que servidores públicos falem como heróis sobre acusações sem ler os documentos e, às vezes, damos espaço aos servidores que nem trabalham no processo. O público acaba com a sensação de que é suficiente acusar e prender. Não é. Precisa fazer direito.
Haveria muito clamor público nos casos de inocentes acusados, principalmente se tiverem dinheiro, prestígio ou poder. Mas colocar atrás das grades por um roubo quem já cumpriu pena por outro não causa frisson nem nas menores cidades, é uma história que cola. No caso em questão nem sabemos se os dois acusados participaram do crime ou não, ninguém buscou a verdade. Sabemos com certeza que há dois criminosos soltos e impunes. A brecha burocrática para que isso seja a bola de neve que é acaba de ser fechada.