Até ontem, o Facebook estava derrubando toda e qualquer postagem que sugerisse que o coronavírus foi criado em laboratório. Ontem, decidiu que não vai derrubar mais porque não é mais fake news. O YouTube anunciou ter derrubado vídeos que promoviam tratamento ineficaz contra o coronavírus. No Brasil, 70% dos vídeos antivacina consumidos no YouTube foram indicados aos usuários pelo próprio YouTube. Mas agora a plataforma diz combater a desinformação.
Há duas correntes de cientistas de Taubaté se digladiando pela profecia que fizeram sobre a origem do coronavírus. Uma diz que foi feito em laboratório na China de propósito. A outra diz que com certeza não saiu de laboratório, teve origem na natureza. Não dá para saber qual das duas é mais picareta. A segunda, no entanto, acabou conquistando boa parte da imprensa no mundo. O fato é que ainda não sabemos como esse vírus surgiu e tem gente séria e que entende do tema investigando.
Ontem, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pediu um relatório em 90 dias sobre as origens do coronavírus. Foi uma bomba na imprensa norte-americana, que havia decidido acreditar que não havia nenhuma hipótese de ter saído de laboratório. A ciência jamais disse isso. A crendice foi um contraponto à crendice oposta, da manipulação do vírus como guerra biológica. Chamo de crendice porque, nessa altura do campeonato, não tem como saber.
A ciência está sempre aberta a novas evidências que são descobertas ou testadas com a evolução da tecnologia e mais pesquisas. Os exemplos clássicos são café e ovo, que a gente nunca sabe se fazem bem ou mal porque a cada semana se descobre uma novidade.
Voltando aos vírus, você sabe qual a origem do HIV? Sempre a gente acha que sabe, mas as pesquisas nunca param. Ano passado, no meio da pandemia, descobriram que o primeiro caso de HIV não era aquele que todo mundo pensava, tinha outro antes. Mais interessante ainda, descobriram o vírus do sarampo em amostras datadas de séculos antes do registro do surgimento dele. Diante disso, difícil entender como adultos confiam em pessoas que têm certeza sobre a origem de um vírus que a gente descobriu ano passado.
Natasha Loder é a editora de políticas de saúde da revista Economist. Ontem, ela fez postagens pedindo aos colegas jornalistas mais "rigor intelectual". "Agora que a mídia dos Estados Unidos implodiu por causa de sua rejeição apressada da hipótese de vazamento de laboratório, poderíamos, em um ataque de rigor intelectual, parar de rejeitar de forma reativa a hipótese de comida congelada porque nos parece encaixar em alguma narrativa chinesa?", provocou.
Rigor intelectual é a lição de casa que autoridades e formadores de opinião estão devendo aos cidadãos. Durante a pandemia, o padrão de comportamento tem sido reagir com axiomas inventados a toda e qualquer teoria maluca. Inventaram que o vírus foi criado pela China para acabar com o mundo? Então vamos inventar que com certeza não saiu de laboratório. E dane-se o cidadão que quer ser informado.
O conhecimento sobre o coronavírus evolui a cada dia e as pessoas têm dúvidas sinceras e direito à informação. Ridicularizar dúvidas e anseios legítimos dos cidadãos por birra de político não tem o menor cabimento, pior ainda no meio de uma pandemia.
O que já sabemos sobre o vírus, afinal?
Pode ser que nunca saibamos como surgiu o coronavírus. Pode ser que essa comissão dos Estados Unidos tenha uma conclusão em 90 dias mesmo. Ainda não sabemos. O que se sabe até agora sobre as origens do vírus?
Há duas informações: os estudos da estrutura do vírus, no início da pandemia, mostraram que ele não é uma montagem típica de laboratório. Isso quer dizer que não é o padrão de algo que se montou recentemente para alguma finalidade específica. A segunda informação é que há décadas cientistas do mundo todo produzem mutações de coronavírus em laboratório com as mais diversas finalidades e isso já deu problema antes.
Entre as hipóteses dos estudos iniciais sempre estava o trânsito do vírus entre seres humanos e animais até chegar na cepa atual. Isso pode ocorrer passando do ser humano para o animal ou o oposto, na natureza ou dentro de um laboratório, com vírus nativo ou com vírus que era trabalhado em laboratório e sofreu mutações depois. A ciência nunca foi feita de verdades absolutas, a burrice e a audiência de redes sociais sim.
Falsos consensos científicos
Em tempos de caos como o que vivemos agora, é natural buscar certezas. Na era digital, isso nos torna vulneráveis aos oportunistas. O que mais gera engajamento é a criação de grupos com base em ódio e medo. Um cientista disse algo da pandemia? Vai lá a pessoa e diz o contrário só para engajar. Então a mídia, em vez de informar, faz um julgamento moral da pessoa e cria uma verdade absoluta do lado oposto para engajar também. Infelizmente, por enquanto, além de Deus, só os picaretas podem nos oferecer certezas.
Cientistas de Taubaté estão criando falsos consensos científicos em massa, abduzidos pela dinâmica digital da formação de grupos rivais que se atacam mutuamente e freneticamente o dia todo. Os políticos, que agora ainda contam com uma CPI, se refestelam. O problema é que, sem rigor intelectual, o cidadão começa a não ter mais em quem confiar e essa situação não pode prosseguir.
Tudo virou torcida contra e a favor. Cloroquina, lockdown, Coronavac, Pfizer, Astra-Zeneca, Janssen e Sputnik são os novos popstars de um espetáculo que nos leva à insanidade coletiva e à morte.
O ser humano é pequeno, não tem força nem pelagem, sobrevive graças aos dons do raciocínio lógico e capacidade de cooperação. Formando grupos que brigam o dia inteiro por teorias que eles mesmos inventam sobre coisas das quais a nossa vida depende não vamos chegar a bom termo.
A única coisa realmente certa sobre um vírus e uma pandemia é a impermanência. O vírus muta e o conhecimento evolui. Pelas experiências anteriores, sabe-se que podemos eliminar infestação de bactéria numa localidade matando com remédio, mas de vírus ainda não conseguimos. Tem como salvar pessoas e aliviar o sofrimento com remédio algumas vezes. Conter a circulação do vírus até hoje se faz com medidas sanitárias e vacinas, diferentes em cada caso e que mudam com o tempo. Um governo deve ter um plano levando em conta as 3 áreas, esclarecer a população e distribuir o orçamento de acordo com o melhor custo/efetividade.
Em vez de fazer julgamentos morais e censurar questionamentos sobre dúvidas legítimas dos cidadãos durante uma pandemia, talvez fosse mais útil esclarecer. Pouco importa se o cidadão ficou em dúvida por razão legítima, porque não consegue mesmo compreender ou porque foi estimulado por um oportunista. Ridicularizar dúvidas faz com que as pessoas fiquem presas a grupos que oferecem verdades absolutas e suporte emocional.
Não podemos debochar das dúvidas
Ontem, por exemplo, diversos senadores da CPI fizeram uso político da partida do nosso querido Nelson Sargento, um patrimônio do samba. Aos 96 anos, sucumbiu ao coronavírus mesmo depois de vacinado. Claro que tem gente indecente que vai politizar isso e alarmar as pessoas mesmo sem ter informação, isso dá audiência nas redes sociais. Ocorre que é necessário esclarecer o que se faz diante de um caso desses, que era esperado, que são acompanhados, há relatório, são estudados e, se for detectado um problema, muda-se a conduta. Quantas vezes a gente já ouviu que a vacinação da marca x ou y foi interrompida e depois voltou?
Outro dia teve um milagre, o bebê cuja mãe foi vacinada e já nasceu com anticorpos. Ah, então toda grávida passa anticorpos? Não sabemos, é necessário rigor científico para isso. Pode ser que dependa da vacina, pode ser que dependa de características do indivíduo. Podemos estar diante de um milagre, um caso único. Também podemos estar diante do primeiro registro de um fato científico. Ainda não sabemos.
No início da pandemia, a gente queria tomar banho de álcool em gel e não usava máscara. Depois, com o acompanhamento do vírus, os cientistas foram descobrindo que a máscara era mais importante e já estamos até em qual tipo de máscara funciona melhor. E, no meio disso, com aval das redes sociais, muita gente ganhou dinheiro com a guerra pró x contra máscara.
Sinceramente, se amanhã descobrirem que cloroquina funciona, qual o problema? Eu vou louvar de pé qualquer coisa que salve uma vida. Vai ter imbecil se fazendo de profeta e falando que "sempre soube". Enquanto houver otário, malandro não morre de fome. Pesquisa-se o uso da hidroxicloroquina em várias doenças virais há muitos anos e no laboratório ela funciona. O que ainda não descobriram é a forma exata de fazer com que ela funcione fora do laboratório ou em quem ela funciona, o que impede que funcione. Como brasileiro é doido por uma automedicação, todo cuidado com essas informações é pouco.
O debate em torno do lockdown foi outra vergonha. Primeiro que no Brasil só teve lockdown no sentido técnico da palavra durante 3 dias em Araraquara, então nem sei por que a discussão. Aliás, sei: para bombar em rede social e formar timinho de seguidores fiéis. Os cientistas ainda estão estudando o custo/benefício e se há outras formas de obter efeitos parecidos de combate do vírus sem impor danos tão grandes à população. Outras alternativas já estão sendo testadas no mundo todo enquanto você lê este texto.
A verdade x os grupos de redes sociais
E como saber quem está falando a verdade no meio de tanto conflito? É quem não confunde ciência com profecia. É quem não forma grupos agarrados a verdades absolutas, sempre em luta contra um inimigo maldoso. É quem acolhe suas dúvidas e tenta atravessar com serenidade esse período em que nada é certo.
Não adianta a gente passar o dia inteiro na internet fuçando revista científica de uma área que a gente não domina porque acha que está sendo enganado. É inútil ficar o dia todo vendo vídeo de médico e formadores de opinião nos grupos do whatsapp só para criar mais desconfiança e passar nervoso. As informações evoluem diariamente e sem investir no nosso equilíbrio mental fica ainda mais difícil essa caminhada.
Hoje em dia, todos nós amamos alguém que arrumou um grupo bem nervoso de internet e passou a ter paixões políticas ardentes. Como os políticos capitalizam com a pandemia, já que as atitudes deles passam a ter um peso de vida e morte, muitos dos grupos apaixonados viraram uma miscelânea entre ser paquita de político, de remédio, de vacina, sei lá mais o que vão inventar.
Daí você se preocupa, tenta mostrar um fato à pessoa, desfazer uma mentira em que ela enganou e ela continua cega. "Um homem com uma convicção é difícil de mudar … Mostre-lhe fatos ou números e ele questionará suas fontes. Recorra à lógica e ele não conseguirá ver o ponto", cita o professor de psicologia da NYU Jay Van Bavel.
Essa foto é de um livro clássico da psicologia, "When Prophecy Fails: A Social and Psychological Study of A Modern Group that Predicted the Destruction of the World" (Quando a profecia falha: um estudo social e psicológico de um grupo moderno que previu o fim do mundo), publicado em 1956. Mesmo depois da evidência de que o mundo não acabou, é possível continuar acreditando que ele acabou.
Todos nós estamos sujeitos a acreditar em falsas profecias e continuar acreditando mesmo diante de fatos que as desmentem. "O principal fator que permite que as seitas mantenham suas crenças diante de evidências claras de que estão erradas é o apoio social. É improvável que um único crente isolado possa se apegar às suas falsas crenças. Mas um grupo de seguidores pode apoiar uns aos outros e fortalecer suas crenças", explica o professor Jay Van Bavel.
Há 5 fatores que levam um ser humano continuar acreditando em algo já desmentido por fatos que reconhece. Entre eles, dois chamam atenção. O primeiro é o tanto que já se comprometeu e expôs espalhando aquela história. O segundo é o suporte social de um grupo que também acredita na mesma coisa e arruma uma explicação coletiva. As redes sociais são a tempestade perfeita para jogar a gente nisso.
Infelizmente, durante a pandemia, vimos que o fenômeno não atinge só pessoas frágeis ou cidadãos comuns desacostumados ou destreinados na dinâmica da comunicação. Atingiu a imprensa e atingiu as decisões das Big Techs. Diversas teorias ou hipóteses foram defendidas como verdades absolutas e, dentro do grupo dos formadores de opinião, questionar essas pseudoverdades passou a ser um carimbo de terraplanista.
Precisamos urgentemente nos educar sobre a dinâmica de formação de grupos, nos disciplinar sobre rigor intelectual mas, acima de tudo, lembrar que a única saída está em preservar laços e a dignidade humana. O único jeito de não se trancar em grupos fanatizantes é ouvir quem pensa diferente só para ouvir mesmo, não para convencer a mudar de opinião. No final das contas, todos queremos o mesmo, que é o fim desse pesadelo de pandemia e o início de um caminho de volta ao diálogo.
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