Parece uma peça de ficção o comunicado conjunto emitido pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, Pacto Global da ONU e Grupo de Trabalho da ONU sobre Empresas e Direitos Humanos: há 400 mil pessoas em alto mar até agora por causa da pandemia de COVID-19. Num primeiro momento, os relatos dos passageiros e tripulação de cruzeiros turísticos nos comoveram. Havia até quem postasse seu dia-a-dia e acompanhávamos aflitos. Depois, foram os refugiados e seus terríveis dramas humanos colocados diante de decisões políticas dificílimas. Restaram os esquecidos, os trabalhadores do mar.
Pense em uma coisa no mundo que não tenha mudado desde o século XIX: a invisibilidade dessas pessoas e o pouco que conhecemos da importância delas para o nosso cotidiano. Em 1866, Victor Hugo escreveu "Trabalhadores do Mark, lindamente traduzido para o português por Machado de Assis e disponível gratuitamente no site do Ministério da Educação. Em uma homenagem à ilha de Guernessey, local que escolheu como exílio, o escritor francês conta as histórias de vida dos homens que trabalham no mar, suas dores e sua invisibilidade. Em pleno século XXI, continuamos incapazes de vê-los.
Durante a pandemia, os trabalhadores do mar estão carregando o piano e passando pelo que já foi qualificado formalmente como crise humanitária. São vitais para que o mundo consiga ter alimentos e remédios, já que 80% do comércio do mundo passa pelo mar, mas há alguns embarcados em navios ou plataformas há mais de 17 meses.
"Os trabalhadores da indústria de transporte marítimo desempenham um papel crítico na sustentação das cadeias de abastecimento globais; o papel deles tornou-se ainda mais vital durante a pandemia, pois trabalham para garantir o fluxo contínuo de equipamentos médicos, alimentos e outros bens essenciais. No entanto, os marítimos se tornaram vítimas colaterais das medidas relacionadas à COVID-19 impostas pelos governos. Isso inclui proibições de viagens, restrições de embarque e desembarque ou suspensão na emissão de viagens documentos, que têm prejudicado gravemente as condições de trabalho no setor marítimo global." , diz o comunicado da ONU, que pede aos governos uma solução para essas pessoas.
Segundo a Organização Marítima Internacional, há atualmente 800 mil trabalhadores afetados: metade que não consegue desembarcar e metade que não consegue embarcar. O problema não é só ter permissão dos governos, mas equilibrar essas permissões e emissões de documentos com a necessidade de manter o abastecimento mundial de remédios, equipamentos e alimentos. Ainda que seja possível desembarcar uma pessoa que está há meses no mar, afastada da família, ela não será substituída caso não seja possível embarcar outra. No mundo inteiro, a emissão de documentos emperrou e esses trabalhadores estão no meio do imbroglio.
A vida no mar não é fácil. Fala-se em crise humanitária porque as regras cotidianas para esse tipo de serviço já levam em conta que ele é duro e exige das pessoas. Os contratos geralmente são feitos levando em conta o tempo que a pessoa precisa ficar embarcada no navio ou em plataforma marítima e o limite é de 11 meses. Você não leu errado, é considerado normal o contrato para que a pessoa fique quase um ano embarcada. Com a pandemia, há milhares de pessoas que estão no mar há mais de 17 meses.
No último dia 11 de setembro, a Organização Marítima Internacional emitiu um comunicado oficial com um alerta sobre a situação para todos os Estados-membros da ONU, todas as agências especializadas da ONU, todas as organizações intergovernamentais e todas as ONGs com as quais tem relação no mundo. Lembrou que o mundo deve muito aos trabalhadores marítimos, que optaram por continuar suas funções mesmo sem contratos, mas alerta para a urgência da situação: eles não podem ficar indefinidamente embarcados porque isso vai ameaçar a segurança da navegação internacional.
Não se trata apenas de garantir a dignidade e os direitos desses trabalhadores, mas de medir o risco a que estamos submetendo a navegação internacional, coração do abastecimento no mundo. "Esta situação tem graves impactos sobre os direitos humanos básicos dos marítimos e de outro pessoal marítimo, incluindo o direito à saúde física e mental, o direito à liberdade de movimento e direito à vida familiar. Também aumenta drasticamente os riscos de segurança e perigos ambientais.", argumenta a ONU. A segurança é o motivo pelo qual existe um limite para que os trabalhadores fiquem embarcados. Pessoas em exaustão têm problemas de performance e atenção que, em alto mar, podem se transformar em tragédias.
O primeiro aviso oficial da gravidade da situação foi feito em julho. Em setembro, a Organização Marítima Internacional não economizou nas tintas para retratar a gravidade da situação. "Embora muitos Estados tenham respondido a essas declarações e apelos à ação, a taxa de mudanças de tripulação continua muito abaixo do que é necessário para evitar um desastre humanitário que também afetará a segurança do transporte marítimo, a proteção do meio ambiente marinho, a continuação de comércio eficiente e a recuperação da economia mundial. A questão requer atenção crescente e imediata dos governos." disse o comunicado da OMI no mês passado.
Além da bomba-relógio em torno da metade embarcada, há o drama da outra metade que não consegue embarcar: o desemprego. São trabalhadores de um nicho muito especializado e com uma rotina bem peculiar de emprego, sem nenhuma facilidade para arrumar outra alternativa de sustento principalmente na pandemia. E, na realidade, se eles tivessem conseguido recolocação rápido e desistido de esperar para embarcar, o comércio internacional sofreria um impacto severo. Esse conjunto de 2 milhões de pessoas se organiza em turnos longos, de meses, para manter 80% do comércio do mundo funcionando. Se 400 mil deles resolvessem desistir durante justo durante a pandemia, qual seria o impacto? O fato é que não desistiram e continuam apelando as àutoridades. O mesmo ocorre com os embarcados: a maioria poderia simplesmente abandonar os navios, já que estão trabalhando sem contrato.
Muitas empresas estão preocupadíssimas e os empresários foram elogiados no comunicado conjunto da ONU: vários têm se desdobrado para minimizar como podem a falta de troca de turno das tripulações. O fato é que eles não farão mágica porque se trata de um problema complexo jamais enfrentado pela humanidade. Na pandemia anterior, início do século passado, o trânsito de mercadorias pelo mundo era muito menor mais demorado, então o impacto de navios quarentenados ou impossibilidade de trocar as tripulações foi infinitamente menor.
Vivemos a economia da atenção e estamos perdendo completamente o contato com a realidade. Não se fala desses 400 mil marítimos que estão embarcados até hoje, acumulando meses no mar, a quem devemos o fato de ter comida na mesa e acesso a remédios na pandemia. O problema deles é nosso e é urgente, mas parece menor que qualquer bate-boca de rede social. A realidade e a urgência não têm voz na apoteose da superficialidade.
Segundo a ONU, a solução do problema é complexa porque exige a atuação em conjunto de diversos atores: os governos dos países, as empresas de comércio marítimo, as associações internacionais de trabalhadores, associações de negócios e industriais, agências especializadas em saúde e agências de comércio. É necessário descobrir quais os nós nas diversas leis nacionais sobre desembarque de produtos e pessoas e emissão de documentos e resolver em conjunto com as empresas, de acordo com as necessidades de pessoal e da urgência da entrega de produtos.
O protocolo para mudança segura de tripulação marítima durante a pandemia já existe desde 5 de maio, foi emitido pela Organização Marítima Internacional. Naquela época, já havia trabalhadores do mar extrapolando o limite de 11 meses embarcados trabalhando e a maioria ainda continua na mesma situação. Alguns governos tomaram medidas, empresas do mundo inteiro têm feito o que podem, mas não há uma coordenação internacional das regras que possibilite a efetiva troca das populações. Burocracia e regras diferentes entre os países impedem as operações.
A última cartada da ONU é mexer naquilo que mais emociona a alma humana: o bolso. O último comunicado relembra que, para que se mantenham no Pacto Global da ONU, empresas devem cumprir e fazer cumprir o respeito aos Direitos Humanos. No caso, todos os que consomem produtos que, em alguma fase da cadeia produtiva são transportados por navio, foram avisados de que têm o dever de fazer cumprir os direitos dos trabalhadores do mar.
Estar no Pacto Global é um valor importante para diversas empresas e tem impacto financeiro. Aqui no Brasil, fazem parte gigantes como Votorantim, Alpargatas, Riachuelo, Vicunha, Bayer, Banco Inter, Insper e Unimed, grupos de influência como o Mulheres do Brasil e Unica, instituições como a Universidade Federal do Paraná e até o Município de São Paulo. Todos foram lembrados hoje que Pacto Global não é um selo, é obrigação de garantir o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no dia-a-dia.
Tomara agora haja vontade o suficiente para fazer com que esse assunto receba da sociedade a atenção que merece. Os 400 mil heróis que aceitaram desafiar os limites da resistência humana para manter o mundo funcionando são seres humanos. Não é possível que tenham de estender o sacrifício por falta de coordenação burocrática das autoridades mundiais. Que sejam repatriados o quanto antes, que sejam embarcados os que amargaram o desemprego e, acima de tudo, que nós saibamos agradecer o esforço deles e a lição: não confundir o fundamental com o que grita mais alto.
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