Liberdade é parte da dignidade humana, um direito de personalidade e, portanto, dela não se pode abrir mão nem voluntariamente. Na linguagem do direito se diz que é irrevogável, irrenunciável, inalienável e intransmissível. Juntamente com a igualdade, é um dos pilares básicos das sociedades democráticas. Claro que é uma publicidade sensacional defender algo tão nobre, mas também é difícil e nem sempre popular. É por isso que surgiu a casta dos falsos guerreiros da liberdade, aqueles que lutam só da boca para fora.
A liberdade de expressão, que muitas vezes é reduzida ao ato de vociferar fantasias ou repetir opiniões alheias como se fossem próprias, é algo muito mais profundo abrangente. Trata-se do direito de, sem medo de represálias ou censura, manifestar não apenas o pensamento, mas também a opinião, atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. E, de acordo com a Constituição, só existe um limite: o anonimato.
A apoteose de superficialidade em que se converteu o debate político confunde perfis falsos em redes sociais com pseudônimos de escritores famosos e empresas privadas com o Estado brasileiro. De um lado, os paladinos da liberdade de dizer o que eles permitem que seja dito. De outro, os paladinos da liberdade de fingir que defendem liberdade.
Muito do debate sobre Fake News travado na esfera pública, inclusive entre comunicadores, tem foco no conteúdo, naquilo que se considera adequado ou não, verdadeiro ou não, permissível ou não. É a forma mais eficiente de despertar os tiranetes adormecidos na sociedade. Regras proibitivas tendem a punir a maioria que anda na linha mirando os desvios de uma minoria. Por isso se usa o conceito da punição, para que a sombra da suspeita não paire sobre todos. Não se proíbe homicídios porque não se cogita que todos vão matar e só serão contidos pela lei. Pune-se as exceções.
Se o problema das Fake News fossem mentiras, informações tendenciosas, ameaças, calúnias ou difamações, o leque de soluções para as línguas maldosas é vasto e começou a ser catalogado na antiguidade. O real problema é outro e, aliás, é exatamente por isso que o assunto só pegou fogo nos últimos anos: a evolução tecnológica que potencializa ataques com inteligência artificial e torna humanamente impossível a defesa e a reparação do dano.
No debate político, há quem tente fazer a briga parecer ideológica, seria um pólo político contra outro. A rivalidade é verídica no campo político, mas no que se convencionou chamar de "Fake News", estão ambos do mesmo lado, o que usa os mecanismos de publicidade direcionada, maximização de assunto e ataques em massa. Marina Silva é o grande protótipo nacional da máquina de moer reputações nas redes. Cada vez que você vê a fundadora da Rede diz que ela finalmente apareceu? O ataque feito em 2014 pelo PT funcionou e não tem como desmentir nem com fatos.
Se, no início, os políticos amaram as novas possibilidades das plataformas virtuais, já aprenderam que são reféns. Quem não usa os instrumentos de ataques em massa, com inteligência artificial e perfis automatizados, pode ser vítima deles. É humanamente impossível limpar a reputação por mais bizarra que seja a mentira inventada. Aqui estamos falando de negócios, de um novo mercado de propaganda, de convencimento, que funciona bem e é efetivo. Poderia ser usado para as mais diversas coisas, saúde, educação, esporte, redução da violência familiar, educação financeira, espiritualidade. Ocorre que destruir inimigo tem sido mais lucrativo, simples assim.
Redes sociais vivem de coletar os nossos dados até quando o celular está desligado. E como isso dá dinheiro? Elas vendem convencimento. Você diz do que precisa convencer as pessoas e o grupo será selecionado segundo as suas vulnerabilidades. Familiares e amigos que poderiam convencer do oposto jamais verão a mesma mensagem ou estarão próximos quando for vista. É um serviço pago. Quem paga pode querer convencer você a comprar um pijama, a fazer meditação, a aprender trabalhos manuais, a ter uma alimentação mais saudável ou a enxovalhar fulano toda vez que ele abrir a boca porque ele é pedófilo e satanista. Pagou, levou. Será entregue.
Em todo ramo empresarial, quando a atividade que dá lucro causa prejuízo a um indivíduo ou à coletividade, existe o dever de ressarcir. Por que as redes sociais, que ganham para maximizar e selecionar o alcance de mensagens, não têm de se responsabilizar quando essa operação destrói a vida ou a empresa de alguém? Por que o tratamento diferenciado?
Há oportunistas que tentam enfiar no meio deste sarapatel a ideia de que estas empresas seriam rivais das mídias tradicionais numa missão lindíssima de garantia da "liberdade de expressão". Nenhuma empresa do mundo garante a liberdade de ninguém, direitos de personalidade são garantidos num pacto da sociedade com o Estado, executado pelo governo.
A ideia de que uma empresa particular tenha a função de garantir liberdades individuais é estapafúrdia, quando defendida por integrantes do Congresso Nacional passa a ser inacreditável. O agente público quer terceirizar as próprias funções e ainda faz propaganda disso como se fosse bom. Tem quem compre, é a apoteose da superficialidade.
O debate sobre o direito a ter perfil anônimo na rede social não pode ser contraposto à obrigatoriedade de ceder seus dados a empresas de capital aberto nem colocado como discussão sobre liberdade de expressão. Ter um perfil anônimo na plataforma de uma dessas empresas não garante sua liberdade, mas a sua liberdade de fazer o que elas quiserem sem que tenham de se explicar. Coibir excessos exigindo que todo cidadão passe seus dados a empresas que, vira e mexe, não cumprem nem decisões do STF, não é remédio. E essa proposta está na tal lei de combate às Fake News que está na Câmara.
Na semana passada, a Corte Constitucional da Alemanha exigiu que o Congresso refaça as normas sobre coletas de dados por agentes públicos em investigações. Há casos concretos em que, além de obter os dados para a investigação em si, houve o deslize humano de se embrenhar na vida íntima ou familiar do investigado, que acabou exposta indevidamente. E aqui falamos de agentes do Estado, que têm a função de garantir nossa liberdade e nossa privacidade. Por que o Brasil vai querer dar esses mesmos dados a empresas que, quando recebem uma sentença judicial desfavorável, alegam que não têm jurisdição no país?
Na questão de dados, privacidade e rastreabilidade nas redes, o debate público brasileiro tem sido a vanguarda do atraso. Uma pena. Na prática, temos os instrumentos mais avançados do mundo de Tecnologia da Informação e Inteligência Artificial nas áreas bancária e fiscal.
O Brasil é pioneiro na informatização de bancos e declaração de impostos. Aqui, já fazíamos Imposto de Renda da Pessoa Física pela internet com segurança quando países de primeiro mundo ainda não conseguiam processar as operações de forma segura e preferiam o papel. Se anonimato e da liberdade de expressão têm de ser controlados e mediados pelo Estado, não há motivo para envolver plataformas como Google, YouTube, Twitter, Facebook e Instagram nesse debate.
Se o uso da internet no Brasil tiver a rastreabilidade que hoje já temos no e-CNPJ, e-CPF e e-OAB, as certificações digitais, pouco importa como e o que as pessoas façam em cada rede social. Quer ter 200 perfis, cada um com um nome? Se a empresa permite, tudo bem. Se não fizer nada errado, tudo bem também. Se causar dano a alguém ou à sociedade, não é anônimo, se identifica quem usou sem necessariamente expor a pessoa e se dá a consequência justa ao caso.
Cito uma solução, quem é da área pode enxergar diversas outras. Meu ponto é o oportunismo e a enorme perda de tempo em debates inúteis e manipulados. Perfil anônimo não garante sua liberdade, garante sua ilusão de ser livre numa gaiola dourada. Brigar por isso, no entanto, tem rendido um marketing muito positivo a quem sabe que a luta é só garganta, zero ação. A procura por soluções que realmente garantam a sua liberdade não é tão emocionante, pode ter detalhes técnicos chatos e exige uma coisa que muitos políticos e influencers abominam: trabalho duro.
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