A separação entre igreja e Estado ajuda o país a manter o progresso e a paz. A separação entre o Estado e o setor privado deveria também ser sagrada.| Foto: Pixabay

Quem leu o anúncio da 53a Sessão Extraordinária do Conselho Nacional de Justiça, realizada na manhã de ontem, desistiu de acompanhar de tão desinteressante que parecia. Talvez por isso tenha passado despercebida uma novidade um tanto inusitada para esses eventos, o encerramento com Pai Nosso e água benta.

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Só havia um assunto em pauta, relatado pelo ministro Luiz Fux, uma briga relacionada ao concurso público para cartórios em São Paulo. O julgamento demorou quase três horas e foi acompanhado pelos concurseiros no YouTube com a mesma empolgação de uma partida de futebol. Uma parte torcia para o concurso ser mantido e a outra queria que não, para ter uma chance de prestar o concurso. Empolgante.

Quando acabou o julgamento, o subprocurador-geral da República Alcides Martins puxou um Pai Nosso, que foi rezado de mãos dadas por todos, inclusive o presidente do STF, Dias Toffoli. Em seguida, aspergiu o símbolo do CNJ com água benta. É algo inédito.

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Fiz alguns testes e descobri que esse vídeo tem o poder de fazer aflorar os preconceitos mais bem escondidos na alma humana. A primeira reação de alguns foi falar da bancada evangélica, da dominação dos evangélicos, do Porta dos Fundos, dos televangelistas, dos crentes, dos "crentelhos", da exploração da ignorância, da mistura da religião com política. É curioso que esse assunto venha à tona com este vídeo especificamente.

O ritual ocorrido no CNJ não é evangélico, é católico. O Pai Nosso rezado pelos católicos é ligeiramente diferente do que oram os evangélicos. Além disso, evangélicos não usam água benta, é um ritual católico romano. Ainda assim, vi católicos identificarem o evento como evangélico. Nossa sociedade está num piloto automático em que é necessário opinar sobre tudo sem atentar para os fatos. Não existe opinião sem conhecimento dos fatos, isso tem outro nome, ficção.

O outro gatilho ativado pelo vídeo é o da ignorância travestida de erudição. Vi pessoas cultas argumentando que não se pode fazer uma oração religiosa no ambiente público porque o Estado é Laico. Chega a ser constrangedor o número de pessoas que ignora o conceito de laicidade.

Estado Laico é aquele que não se confunde com nenhuma igreja, oposto de Estado Religioso, como são, por exemplo, o Irã e o Reino Unido. Há diversos modelos de laicidade, a espiritualidade e a religião são partes importantes da vida humana e cada cultura implementa a fórmula que melhor equilibra as crenças individuais, a participação cidadã e a convivência social. A laicidade francesa, por exemplo, proíbe qualquer tipo de manifestação religiosa no espaço público. Essa questão chegou ao domínio da intelligentsia brasileira principalmente a partir da proibição do uso de hijabs por muçulmanas em escolas públicas.

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***SE VOCÊ DESEJA SE APROFUNDAR NO TEMA, SUGIRO ESSE VÍDEO (e prossigo com o artigo):

Parte da nossa elite cultural e política assumiu que o Brasil tem o mesmo tipo de laicidade da França, o proibitivo. Qual a razão disso? Desconheço. É muito simples encontrar as leis na internet e verificar que temos um sistema diferente.

O modelo de laicidade adotado pelo Brasil é semelhante ao dos Estados Unidos e ao adotado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, o da liberdade de religião e manifestação da religiosidade ou da ausência dela. Isso significa que todas as pessoas, em todos os ambientes, podem manifestar livremente sua fé ou ausência de fé, inclusive servidores públicos durante o exercício da função pública em ambiente público.

Um exemplo? Não vou entrar em casos brasileiros porque o debate político foi reduzido a nossa sensação sobre pessoas, o que desperta paixões que cegam o debate de ideias e aniquilam os fatos. Vamos aos Estados Unidos. Todo discurso de posse de Presidente da República é feito com a mão sobre o livro que representa a fé do mandatário e os discursos inaugurais são recheados não só de referências à fé, mas a passagens bíblicas e orações.

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Aqui no Brasil, parte da elite intelectual parece estar numa jihad contra o cristianismo que, para eles, virou sinônimo de ignorância, intolerância e instrumentalização da fé. As conclusões são tiradas com base no comportamento de meia dúzia de televangelistas e parlamentares cristãos midiáticos, afinal a elite não precisa de fatos nem conhecimento do assunto para estabelecer a verdade sobre os demais. Nos Estados Unidos não há essa divisão entre ser "cool" e ser evangélico, são coisas pertencentes a áreas diferentes da existência.

O presidente Barack Obama, queridinho dos progresistas brasileiros, é cristão batista. Em cerimônia oficial como presidente da República, ele cantou Amazing Grace, hino cristão. Levou Aretha Franklin à Casa Branca para cantar Amazing Grace. Isso é uma forma de Estado Laico.

Por comparação, chegamos aqui ao Pai Nosso e às palavras do subprocurador-geral da República. "Aqui estamos e podemos, se calhar, agradecer a Deus antes da bênção, uma bênção rápida, agradecer ao Senhor dizendo, rezando, enfim, orando, a oração que o Senhor nos ensinou, presidente. Se me permite, então, ficaríamos de pé...", disse Alcides Martins. Os demais levantaram, se deram as mãos e rezaram um Pai Nosso católico. Até aí, pode ser inédito, pode causar estranheza, mas não está fora dos princípios do Estado Laico.

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A questão é que chega aí uma outra parte: aspergir com água benta o letreiro que representa o CNJ, consagrando-o à religião católica. O CNJ não pode ser consagrado a nenhuma religião, embora seus integrantes possam.

Vou me atrever a usar o exemplo para contraste preferido dos progressistas: as religiões de matriz africana. Suponha que o mesmo subprocurador da República fosse um ogã de um terreiro de Umbanda e resolvesse agradecer ao seu orixá - suponhamos Xangô, o representante da Justiça - ali na mesma situação, em uma sessão. Ele poderia agradecer dizendo "kawó kabiecilè " e até cantando uma gira? Claro que sim. O que ele não poderia é sacrificar um cágado ou carneiro durante a sessão para consagrar o CNJ a Xangô.

Estamos em um período de teste de limites entre progressistas e religiosos, com pessoas dispostas a passar por cima de regras e desrespeitar os outros de ambos os lados. Parece algo pouco cristão e também pouco razoável para quem se diz libertário, mas os que se dispõem a esse embate saem ganhando socialmente. Como as discussões na mídia e nas mídias sociais são feitas como briga de torcidas, assumir a dianteira fortalece a pessoa dentro da própria bolha, ainda que as ações dela contrariem os princípios mais básicos daquela bolha.

Viver num mundo paralelo se tornou opção para o universo adulto. Há quem chame de "opinião" as fantasias pessoais, inventa-se algo que se apresenta como "essa é a minha opinião". Opiniões são nossas avaliações pessoais sobre fatos, tanto sobre o que os originou quanto sobre suas consequências. Sem fatos não há opinião, há um universo paralelo onde é tentador ficar abrigado para jamais ter um desejo contrariado. Quanto mais fraca a personalidade, mais ela tende a recorrer ao universo palalelo.

Friedrich Nietzche contrapõe a moral dos fortes à moral dos fracos, são dois sistemas morais completamente diferentes. No debate público, fazemos uma confusão infame entre agressividade e coragem, características que não têm relação entre si. O refúgio para a nossa sanidade está no conhecimento e nos fatos, que jamais estão presentes nesse universo paralelo onde se substitui a realidade objetiva pelos desejos das pessoas que fazem parte do nosso grupo.

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"O fanatismo é a única forma de força de vontade acessível aos fracos", dizia Nietzche. Parece uma profecia sobre o nosso debate político na era de superexposição e redes sociais.