Na última avaliação do PISA, Programa Internacional de Avaliação de Estudantes da OCDE, feita com adolescentes de 15 anos de idade, o resultado mais preocupante para o Brasil é que 98% não têm capacidade de diferenciar fatos de opiniões. Isso mesmo. Apenas 2 em cada 100 brasileiros de 15 anos sabem a diferença entre uma opinião e um fato. Pelas redes sociais a gente percebe que entre os mais crescidos a proporção não muda muito, infelizmente.
Segundo o IBGE, 15% dos brasileiros têm ensino superior completo. Ou seja, quando falamos de pessoas que não conseguem perceber a diferença entre fatos e opiniões também incluímos nesse rol pessoas com diploma universitário, que se consideram e são consideradas bem formadas e bem informadas. Numa pandemia, este é o primeiro ingrediente do caos.
"O maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, é a ilusão do conhecimento", cravou de forma emblemática Daniel Boorstin, autor do sempre contemporâneo The Image. As principais fontes de desinformação na pandemia não aquelas criadas na carência de estudo, mas onde a soberba impede a percepção da própria ignorância, entre os medíocres com diploma.
Neste contexto também tem culpa a imprensa, que tem feito nos últimos anos uma salada macabra entre fatos, opiniões e fantasias - e não só no Brasil. Um episódio emblemático é o "debate" desastrado entre o cientista Bill Nye e o criacionista Ken Ham, feito pela CNN em fevereiro de 2014. Foi o ponto de partida para uma série de aberrações do gênero, que não são nem podem ser chamadas de debates porque um ponto de vista não é o contraponto do outro.
Ciência e fé não são contrapontos, não são opostos. É possível um debate entre dois cientistas que sejam igualmente formados e igualmente experientes em determinado tema. Também é possível um debate entre dois teólogos ou líderes religiosos igualmente formados e igualmente experimentados. Entre os dois universos não há debate porque se parte de paradigmas, valores e medidas diferentes. Há apenas um espetáculo que não serve o público e, pior ainda, desinforma porque se intitula debate quando não é.
Vemos diariamente o erro repetido na imprensa nacional nos mais diversos temas. Há uma confusão não apenas entre fatos e opiniões, mas entre opiniões e fantasias. Para opinar, um indivíduo precisa ter base teórica, conhecimento dos fatos e experiência no assunto. Caso não tenha, continua tendo todo direito de expressar como se sente a respeito, o que intui, o que lhe parece, mas não se trata de opinião, é a nossa imaginação, fantasia, intuição. O erro é tratar essas manifestações como opiniões, o que só é possível num contexto de miséria educacional.
Todos nós temos o direito de expressar o que quisermos e da forma como quisermos sobre a pandemia e o sofrimento que estamos vivendo. Mas quais dessas expressões podem ser consideradas opiniões relevantes para o público sobre saúde pública e economia? Claramente nossa miséria educacional nos impede de saber.
Um problema é a deficiência educacional que leva indivíduos a acreditar piamente em quem parece bem formado, sem ter condição de avaliar se aquela pessoa é formada e experiente o suficiente para opinar naquela área específica do conhecimento. Mas há um problema ainda mais grave: o sujeito com alguma formação e muita soberba que, pela mediocridade do nosso sistema educacional, sequer imagina que não tem a menor condição técnica e intelectual de opinar sobre um tema. Então ele opina, influencia, é seguido e, quando dá errado, foge da responsabilidade.
Vamos a um exemplo prático sobre epidemias e pandemias? Tive função de nível de direção na equipe responsável por erradicar a pólio em Angola. Fui Consultora Internacional em Comunicação para o Desenvolvimento nível P4 (direção) do Unicef Angola, responsável por comunicação, mobilização social e advocacy com governo e sociedade civil. Participei em campo de bloqueios vacinais de doenças desconhecidas, liderei equipes, estudei muito, aprendi demais. Exatamente por isso, sei que não tenho condições técnicas para opinar sobre curva epidemiológica: estudei o suficiente para saber a formação necessária para avaliar todas as variáveis envolvidas em uma curva de contágio de doença desconhecida, como é o caso.
Por qual razão há brasileiros com diploma universitário que acreditam em análise de curva epidemiológica feita por quem não tem formação nem experiência de sucesso na área? Indigência educacional. Não formamos pessoas com capacidade para avaliar em quem acreditar.
Em momentos desesperados, como este, nossa tendência emocional é nos agarrar àquilo que nos dá conforto. Pessoas de fé, como eu sou, firmam o espírito na fé. Acontece que fé não é acreditar, não é crer, é uma vivência, uma experiência que independe de racionalidade, algo que se sente. Não existe fé em ciência, em pessoas, em métodos, em discursos, aí ou se acredita ou não e isso depende de racionalidade, que é lapidada pela educação.
Quando se dá a qualquer diplomado aparentemente bem sucedido o direito de opinar como se autoridade fosse sobre todos os temas, ao mesmo tempo subestimamos os esforços de milhões de pessoas em adquirir conhecimento e solidificamos o elitismo. Todas as áreas têm seus especialistas cuja opinião tem de ser respeitada - e não falo dos doutores. O mestre de obras, açougueiro, padeiro, manicure, babá, marceneiro, como foi meu avô, todos eles sabem de suas áreas de conhecimento muito mais que qualquer doutor ou diplomado. Merecem respeito.
Nossa distorção de valores está escancarada diante da pandemia, quando nossa sociedade seria beneficiada caso realmente valorizasse educação e conhecimento. Infelizmente, valorizamos status social. Estamos aprendendo da forma mais dolorida que isso não salva a vida de ninguém.
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