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Este final de semana, a deputada Tábata Amaral publicou alguns dos elogios carinhosos que costuma receber nas redes sociais em sua coluna na Folha de São Paulo. Nilo do Lixão José de Abreu apareceu em uma live tomando um puxão de orelha da professora e famosa feminista Lola Aronovich. Ainda bem que não é o Sikêra Jr. defendendo violência física, senão teria de ser cancelado e desmonetizado.
O ator ex-tucano e ex-peemedebista não precisa mais ser cancelado porque é lulista desde criancinha e, por isso, expressou-se mal, não é misógino. Aliás, quando ele xinga mulher apelando a ofensas sexuais, diz que mulher tem dono ou cospe no rosto dela, também expressou-se mal, obviamente. No caso de Tabata Amaral, repetia que RT não é endosso. Graças a Deus não foi o Danilo Gentili dando RT, né? Aí seria endosso, misoginia e capa da Folha, não coluna.
É inacreditável que pessoas da comunicação e donas de perfis com milhares de seguidores digam, em pleno 2021, que repostagem não é endosso. Difícil saber se é um grau elevado de alienação ou de má-fé. O cidadão comum eu acredito que ainda reposte algo de que discorda para mostrar aos outros. Quem tem milhares de usuários, ao repostar um ataque em que um perfil é marcado, sabe que atrairá mais ataques. A deputada Tabata Amaral relatou alguns. Transcrevo. Prepare o estômago.
"Seu pai deve ter fugido ao ver a b*sta de filha que se tornaria. Com uma filha desse tipo, entendo ele ter se matado. A pessoa sai do lixo, mas o lixo não sai dela. Volta pro esgoto! Ninguém pode servir a dois senhores. Mocinha bancada por bilionários. Marionete de globalistas. Quem é o sugar daddy dela? Eu comia. Ela é a sugar girl daquele banqueiro lá. Ela gosta de ver outra coisa entrando. P*ta, vadia, vagabunda, imbecil. (...) Depois desses votos contra o trabalhador essa p*ta ainda vem reclamar. Se eu encontro na rua, soco até ser preso. Se eu vejo essa mocreia na rua, não teria feminista para me segurar de quebrar a cara dela. Daria uma surra nessa p*ta ordinária. Quando você vai sair na rua de novo? Horário lugar etc… queria fazer uma visita com meu canivete. Se eu encontro na rua eu dou dez facadas nessa cara de sonsa sua arrombada. Temos que dar a ela o tratamento de beleza mais efetivo do mundo, o taco de baseball na cara, tão eficiente que nem a mãe dela vai reconhecer depois!" são xingamentos reais transcritos pela deputada.
Pessoas do mesmo espectro político de quem causa isso irão tentar amenizar a situação. Ele, afinal, só retuitou, só fez uma crítica, só fez um comentário, só fez uma pergunta. Conhecemos as árvores pelos frutos. Se uma atuação aparentemente moderada ou ingênua gera uma competição de ameaças de violência física, ela radicalizou as pessoas. Esses horrores não são postados pela cúpula do PCC nem de dentro de presídio, são as palavras de gente comum, como você e eu. Na casa dessas pessoas admite-se esse comportamento? Duvido.
"Ah, mas não quer dizer que ele realmente iria lá bater nela, foi só uma expressão", ouvi como malabarismo argumentativo. Há anos tenho batido nessa tecla: violência não começa com um tiro, começa com uma palavra. Não sabemos qual é a agressão verbal que será a última gota para a agressão física, mas sabemos que são necessariamente muitas. A ideia de eliminar ou agredir o outro espalha-se pela humanidade do mesmo jeito que qualquer infecção, como um rastilho de pólvora. A política só vira um ambiente de extremos quando deixamos.
As pessoas que têm laços afetivos com José de Abreu não vão desfazer esses laços nem que ele cuspa em todas as mulheres do Brasil. Ocorre que são elas as que têm influência para que ele mude o comportamento. Na cultura do cancelamento só há duas alternativas: aniquilar a pessoa ou passar pano. Abandona-se conceitos humanos importantes de redenção, perdão e misericórdia. Cada grupo precisa absolver cegamente o pior dos seus porque a única alternativa é o expurgo. Isso nos leva a um ambiente cada vez mais violento.
Estamos diante de pessoas que passam meses pedindo a demissão ou desmonetizando alguém por dizer algo. É um comportamento que eu abomino. Ou defendemos o justiçamento ou a legalidade, não há como fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Quando alguém de quem essas pessoas gostam repete o comportamento, a postura será necessariamente incoerente. Vão aniquilar alguém que respeitam? Não. Isso vai gerar uma reação no grupo adversário e entramos num círculo vicioso que transformou nossa política em competição de ameaça.
Já vi uma tonelada de pessoas revoltadíssimas com o tratamento VIP dado pela esquerda a José de Abreu todas as vezes em que ele esculacha uma mulher. Nesses casos, culpabilizar a vítima já não é pecado. Seria pecado, claro, se fosse o Danilo Gentili. Então as pessoas que percebem a incoerência começam a cobrar que José de Abreu agora seja cancelado e desmonetizado. Entendo a revolta, só não sei que bem nos traz. Cada justiçamento renderá uma reação de justiçamento. Quantos anos mais seguiremos fazendo isso? Que bem para o Brasil isso trará?
Todos nós conhecemos alguém muito querido que enlouqueceu nessa competição de xingamentos e ameaças em redes sociais. Às vezes lembro do desenho em que o Pateta vira um monstro quando está ao volante do carro. Há comportamentos inaceitáveis na civilização que estão sendo normalizados na política. Já tive conversas sérias e privadas com pessoas queridas que atuavam como predadores nas redes sociais. Entendo como nesse ambiente é fácil extrapolar porque eu já fiz isso muitas vezes e precisei estudar muito e trabalhar bastante em autoconhecimento para retomar meu autocontrole.
Precisamos retomar o básico, o que é ou não é permitido no debate político. Pode defender espancamento de mulher? Não. Pode ameaçar criança? Não. Pode pregar eliminação ou violência física contra adversários? Não. Simples assim. Pessoas erram e precisam ser chamadas à razão. Já trabalhei com recuperação de ex-detentos, eles trabalhavam comigo no gabinete. Nenhum deles jamais comportou-se de acordo com as regras ou o linguajar da prisão e dos grupos criminosos. Ali havia limites claros.
Eu também tenho minha lista de elogios carinhosos, acumulada durante anos, para partilhar com vocês. Quem me acompanha sabe meu posicionamento sobre justiçamentos e milícias digitais. Quando eu reclamo da falta de civilidade e da difamação, sei que as outras pessoas só vêem um evento específico. Alguns podem achar que estou exagerando ou não aceito críticas. Seguem algumas das "críticas" que recebo sistematicamente há 6 anos:
"Deve estar na seca."
"Essa aí é grossa como um cano de esgoto."
"Aí vem uma vagabundinha achando que tem bagagem cultural para falar comigo."
"Fala, fala com ela. Pode chamar de burra? Não, fala burrinha."
"Depois a gente deseja violência, dor e sofrimento. Vagabundo vem falar de empatia."
"Ladeira abaixo essa coisa em forma de gente."
"Vá lá me processar, filhota mimada."
"A bovina está me caluniando."
"De que bueiro vocês tiraram essa mina?"
"A jornalista metida a doidinha que quer ser o centro das atenções entre os homens? Então, já peguei algumas, sei como é."
"Nós conhecemos você. Nós conhecemos você e você não conhece a gente."
"Eu não xinguei aquela mocoronga de todos os adjetivos que ela merece ainda."
"Não quero gente que compactua com essa rata aqui não."
"Aquela débil mental não tem família? Aí um belo dia um desafeto dela joga dados da família na internet e daí?"
"Engraçado, ela tem um filho, não? Ela ia gostar que fosse revelado dados da escola que ele estuda na internet? Acho que não."
"Quem é essa, de onde ela surgiu? Provavelmente do esgoto."
"Que mulher sonsa e ridícula. Que raiva. Tomara que ela tome muito no c*."
"Sabe quando falamos que brancas são extremamente perigosas?"
"Haha. Eu perguntei se ela deixaria o filho dela aos cuidados de um pedófilo. Nem sei se ela tem filho."
"Tem filho sim. Faz oito anos este mês."
"Depois paga no filho e fica de chororô."
Eu poderia passar o dia coletando elogios sinceros e civilizados como este. Os que estão em negrito vieram de militantes de "direita". Os que estão em itálico vieram de militantes de "esquerda". Nada disso é política, estamos falando apenas de perversão. "Depois paga no filho e fica de chororô" foi uma frase anterior a "Alguém tem os dados da Madeleine Lacsko e principalmente família? Eu vou fazer.", postada com uma foto de metralhadora. Fui aconselhada diversas vezes a deixar para lá. Só que, como bem lembram meus adoradores, tenho filho. Não é esse o mundo em que ele vai viver.
Todos enxergamos os excessos do grupo oposto ao nosso e tendemos a relevar os excessos no grupo com o qual nos identificamos. Não é pecado nem maldade, é a essência da alma humana, somos gregários. Hoje, minha apoiadora, Anise, que é professora universitária experiente, trouxe de presente no nosso grupo uma indicação de fonte literária. É um presente que faço questão de dividir com vocês.
"Um livro antigo do etnólogo Eibl-Eibesfeldt, Love & Hate, comentava sobre a necessidade dos gestos de apaziguamento imediatos entre os seres (de várias espécies) diante de qualquer ameaça para inibição da agressão. Nas redes sociais em canais abertos, a inibição da agressão é suprimida e a agressão é recompensada. Para reverter esse algoritmo, só suprimindo mesmo a super-exposição em público. Mas os egos e as vaidades são muitas vezes incontroláveis.", disse a professora Anise, deixando muito para a gente pensar.
Confundimos muitas vezes a paz com ausência de conflito enquanto armamos uma gigantesca bomba-relógio. Paz não é ausência de conflito, é presença de justiça. O engajamento, ou seja, a capacidade de gerar reação virou uma força política em tempos de redes sociais. Essa força tem vindo de ataques. Cada vez que um é normalizado, chamar a atenção e atrair engajamento depende de subir o tom. É possível impor limites, basta querer. Mas nem querendo será possível prosseguir assim.