Com toda certeza você já ouviu por aí reclamações de que a cultura pop e os avanços sociais das últimas décadas deixaram os homens "efeminados" e que precisamos urgentemente de um resgate da masculinidade. Agora descobrimos de onde vem essa ideia, diretamente do coração do Partido Comunista Chinês. O Ministério da Educação da China criou até um programa de fortalecimento da masculinidade nas escolas. A ideia é aumentar o número de professores homens e de atividades físicas dos meninos.
O Ministério da Educação da China acredita que o país passa por uma "crise de masculinidade", tema que foi abordado em maio na Conferência Consultiva do Partido Comunista Chinês. É de lá que saiu a ideia de um programa oficial para "prevenção da feminização de homens jovens". Os culpados agora são a cultura pop e mulheres professoras. Em outras ocasiões, já foram videogames, masturbação e falta de exercícios físicos.
Não é só na China que existe o fenômeno da instrumentalização política de características como masculinidade ou feminilidade, trata-se de algo comum em grupos autoritários de todos os tipos. Controlar a sexualidade alheia impondo padrões de certo e errado é uma fórmula certeira para manipular pessoas. É óbvio que o problema não é uma crise de masculinidade, é uma crise de gente querendo entrar para o exército chinês.
Os influencers aliados do governo fizeram publicações na rede social Weibo defendendo a ideia, mas até a mídia do próprio governo, a Xinhua News trouxe reportagens críticas. “É difícil imaginar que meninos tão afeminados possam defender seu país quando uma invasão externa se aproxima”, postaram vários influencers. Foi criada até uma hashtag para debater o tema. Já faz alguns anos que o governo tem visto o fitness como boa alternativa de esporte nas escolas porque fortalece os jovens.
A China está colhendo frutos inesperados da política do filho único. O controle populacional foi o racionalmente esperado, mas o lado emocional das pessoas não foi levado em conta. A situação esdrúxula de poder ter apenas um filho mudou os relacionamentos familiares, criou pais apegados demais e filhos que os próprios chineses chamam de "geração mimada". Há, por exemplo, universidades que providenciam quartos para os pais ficarem hospedados ao lado dos filhos no campus.
As aulas particulares de masculinidade, coaches de masculinidade e até acampamentos para aprender masculinidade já existem há tempos na China. Em Beijing, há até um acampamento que promete trazer a masculinidade perdida em até 7 dias. O modelo se espalhou pelo país e é especialmente popular entre os homens considerados mais mimados. Nem os especialistas chineses, que vivem num regime comunista rígido, têm coragem de chancelar a pataquada
O que as famílias e os próprios jovens apontam objetivamente como sinônimo de "falta de masculinidade" é, por exemplo, ser lento para fazer lição de casa. Aliás, principalmente isso e preguiça de trabalhar. Uma pesquisa feita pelo governo em 2014 com 20 mil crianças mostrou que 2/3 dos meninos estavam abaixo da média acadêmica. Entre as meninas, a taxa é de 1/3. A diferença de performance pode ter relação também com as distorções da política de filho único.
Na cultura chinesa, é muito mais status ter um menino do que uma menina. Enquanto houve a lei restringindo o número de filhos a um por casal, eram muito comuns os abortos quando se sabia que era menina e até mesmo o abandono ou morte da criança recém-nascida. Existe um desequilíbrio no número de homens e mulheres na China, tendo muito mais homens, ao contrário de toda a história da humanidade, em que há uma pequena diferença de mulheres a mais. Mesmo assim, as mulheres são maioria nas universidades, 52%. Há 40 anos, eram 23% dos alunos.
Em 2018, acadêmicos chineses fizeram uma longa pesquisa para tentar medir os impactos que o país ainda vive, comparando as gerações de antes da política de filho único com as nascidas neste período. Foi feita uma lista de 32 atributos que são importantes para um estudante em idade escolar, o aluno fazia uma autoavaliação e as perguntas sobre eles também eram respondidas por pais, professores e colegas. Os resultados não explicam os motivos, mas deixam claro que há uma diferença brutal entre as gerações, principalmente entre os meninos.
A geração filho único se avalia com menos atributos do que a geração que tem irmãos. Pais, professores e colegas deram aos meninos da geração filho único notas menores que às meninas e que a geração com possibilidade de ter irmãos. A cereja do bolo é a comparação das autoavaliações com a visão alheia. Meninos da geração filho único têm, em geral, uma avaliação mais alta de si do que os colegas, professores e pais. Agora, o Partido Comunista vem com a ideia de recuperar o "yang" na sociedade mas jamais vai admitir a responsabilidade.
Homens mimados acham ser melhores do que realmente são, o Partido Comunista já sabe disso. O Exército chinês tem agora a geração mais mimada que já passou por lá, fruto de uma longa linhagem sob a política do filho único. Um regime populista sabe bem como lidar com homem mimado: finge que ele está certo e diz que o problema é um ataque generalizado à masculinidade. Por se achar melhor que os outros, o homem mimado vai espalhar a ideia e fazer de tudo para mostrar que ele é exceção, tem masculinidade sim.
As aulas no Beijing Real Boy's Club custam US$ 2 mil por semestre. Os meninos fazem atividades coletivas ao ar livre, lutam, cantam o hino nacional, louvam o partido comunista e entoam mantras como: "Eu sou um homem de verdade! O principal portador da família e da responsabilidade social no futuro! A espinha dorsal do povo chinês!". Também há jogos de palavras entre aluno e professor, como:
- Quem é o melhor? - grita o professor.
- Eu sou o melhor! - responde o aluno.
- Quem é o mais forte?
- Eu sou o mais forte!
- Quem você é?
- Um homem de verdade.
A ideia de levar essa estrutura para as escolas como política oficial de governo veio de um alto delegado do Partido Comunista Chinês, Si Zifu. Sem tocar no assunto "política do filho único", disse na Conferência Consultiva de Maio que os homens estão ficando fracos inferiores e tímidos por culpa das professoras mulheres e da popularidade de homens andróginos na cultura pop. Lamentou ainda que os meninos não tenham mais vontade de ser heróis de guerra e avisou que essa tendência pode colocar o povo chinês em risco.
É interessantíssima a fórmula do Partido Comunista Chinês para resgatar a "masculinidade" dos jovens. Vão contratar mais professores homens de educação física e dar mais aulas de esporte para os meninos. Não foi dito em que proporção nem quando começa, mas já foi anunciado. Também não se sabe qual vai ser a diferença dessas aulas para as das alunas. Em províncias rurais já há um enorme debate porque o número de homens professores não chega a 5% dos profissionais residentes na área.
Ninguém sabe direito se vai funcionar essa história, mas colocar a culpa da situação em agentes externos já funcionou entre os fanáticos. O problema dos meninos mimados vem da cultura ocidental e das mulheres, não da política do filho único. E não foi criado pelo Partido Comunista, será "solucionado" por ele. Defender a "masculinidade" é um mecanismo do populismo e do comunismo para ganhar defesa cega e cessar questionamentos.
Hoje, os chineses podem saber exatamente as liberdades que existem fora do país, como vivem as pessoas. Todas as restrições de internet já são inúteis para que os jovens tenham informação. Homens e mulheres educados, com equilíbrio emocional e capacidade de realizar sonhos não aceitam cabresto. Pessoas mimadas, com pouca capacidade de realização ou frustradas têm muito mais probabilidade de trocar a liberdade por abrigo emocional.
O Partido Comunista Chinês chama de "masculinidade" algo que não tem a nada ver com isso. Também fala em fortalecer o "yang", como se tivesse algo a ver com masculinidade, apenas para mais uma vez pisotear as tradições religiosas do confucionismo e taoísmo. O governo está falando especificamente de força física e possibilidade de guerrear, ideias muito poderosas no imaginário de homens mimados, frustrados ou ressentidos. É uma ferramenta de manipulação digna de cultura milenar.
Cada vez mais numerosos no país, os homens mimados são justamente os que passarão a defender cegamente o Partido Comunista Chinês. Foi ele quem ofereceu a tábua de salvação emocional, poupou o trabalho incômodo de superar os próprios defeitos e elegeu um inimigo externo que impede o desenvolvimento desses homens. Disse que serão "masculinos" se quiserem ter força física e guerrear. É o serviço completo de realidade paralela, em que a autoestima da pessoa pode ser vinculada às ideias estapafúrdias de um governo autoritário.
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