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Suponha que você tenha decidido ficar com a sua família ou ler um livro ontem à noite. Pouco importa o que você tenha feito com a sua vida até então, se não postou a imagem preta do movimento #BlackOutTuesday, você pode ter acordado com um carimbo de racista no meio da testa. Bem vindo ao mundo do ativismo gourmet.

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Temos inúmeras reclamações justas no mundo, individuais e de grupos. A história da humanidade é recheada de injustiças e atrocidades. A era digital facilitou mais uma: o sequestro do grito justo de quem realmente sofre por quem nem se importa com aquilo mas quer parecer boa pessoa ou quer adicionar valor a uma marca nas redes sociais. Pode parecer absurdo, mas funciona.

Quando alguém cobra de outra pessoa que faça um post ou "se posicione" sobre racismo no dia do movimento digital #BlackOutTuesday, qual é a cobrança exatamente? Não é sobre racismo nem é cobrança, é recado: "olha como eu sou uma pessoa maravilhosa, sem preconceitos e melhor que você, postei isso aqui no insta e você não."

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Todos temos preconceitos, pecamos, cometemos injustiças, fazemos o mal sem querer e querendo. É, ao mesmo tempo, doce e perverso viver a ilusão de limpar o que há de mais profundamente humano em nossas almas postando uma foto numa rede social. Não somos o que postamos e dizemos, somos a forma como agimos e o que toleramos.

Os que postam #BlackOutTuesday crêem realmente que suas mentes e almas estão livres de preconceitos? Se crêem, agem com preconceito. Somente tendo a consciência da condição humana e dos nossos erros podemos nos disciplinar para não tratar os demais com injustiça e tentar reparar quando o fazemos. Quem se crê perfeito empurra para os outros a responsabilidade de lidar com sua condição humana, como se estivesse acima dela.

No parque de areia antialérgica da sociedade brasileira, tanto faz como uma pessoa vive ou o que ela tolera, só importam as aparências. Por isso os patrulheiros de indignação alheia consideram-se boas pessoas, porque exigem dos outros que, como eles, simulem indignação para parecer virtuosos.

Há muita gente que fez suas postagens simplesmente porque quis, porque achou que pode ajudar alguém, porque se comoveu. Justíssimo. E também há os que vivem do marketing da superficialidade, sequestrando causas justas para converter em valor de marca. É o caso de influencers que já tiveram inúmeros comportamentos e falas racistas, mas colocaram o post e deixaram seus seguidores muito emocionados.

Qual o sentido de cobrar de alguém que faça parte deste movimento nas redes sociais para que seja percebido como antirracista? Se não há sentido lógico, sob o ponto de vista prático é o clássico tiro pela culatra. O máximo que se pode conseguir é que a pessoa cobrada pegue tanta birra da cobrança que acabe estendendo este sentimento de repulsa para toda a luta contra o racismo.

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A percepção de injustiça pessoal é um sentimento poderoso, capaz de cegar nossos olhos ao sofrimento alheio. Se uma pessoa que faz o máximo para ser justa e respeitar os outros é cobrada por não ter "se posicionado" como o fez, por exemplo, o Biel, quais reações você prevê? O clássico da reação revanchista já está nas redes, a hashtag #WhiteLivesMatter. Ela vai gerar discursos lacradores de quem pouco se importa com racismo, mas vai gerar dor na alma de quem sofre de verdade.

Há uma porção da sociedade, essa que costumo definir como "parque de areia antialérgica", acostumada a jamais sofrer as consequências dos próprios atos e omissões. Dinheiro, prestígio e poder podem nos blindar de assumir responsabilidades, mas não de sentir culpa. O remédio para a culpa tem sido sequestrar causas justas e formar uma patrulha de indignação alheia, cobrando que os demais se manifestem apenas como forma de alardear que é uma pessoa boa.

Como sociedade, temos uma escolha: fazer o que é certo ou o que é conveniente. Patrulheiros da justiça social são pessoas que dão chilique ao ouvir um não - não foram acostumados a isso - e podem dar escândalos quando não protagonizam algo. Pessoas que sofrem preconceitos estão acostumadas a ser injustiçadas e ficar em segundo plano. De que lado você vai ficar?

Podemos, como sociedade, continuar permitindo que a patrulha gourmet das redes sociais sequestre pautas legítimas para alimentar a própria vaidade. Também podemos, como sociedade, escolher ouvir o sofrimento de quem é pisoteado e descobrir formas de melhorar quem somos e viver de forma mais justa e fraterna. Só não dá é para fazer as duas coisas ao mesmo tempo.