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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Ministério Público

Pegar comida vencida no lixo virou crime?

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O Brasil jamais padecerá de tédio ou falta de pilantra. Se a gente resolvesse levar a ferro e fogo todo e qualquer deslize, não haveria polícia e Ministério Público que dessem conta. Na impossibilidade de eliminar a pilantragem, esperamos que o exemplo venha de cima. Justiça com todos, misericórdia com o fraco e rigor com o poderoso seria uma boa fórmula. Talvez se a gente desse estabilidade vitalícia no cargo e salários altíssimos a quem acusa, seria viável. Opa, já damos.

Você sabia que o contribuinte brasileiro está há 3 anos pagando pela tramitação de um processo em que os réus são acusados de "furtar" R$ 50 em frios vencidos no lixo de um mercado? Claro que a gente já vai colocar a culpa no juiz porque juiz pensa que é Deus. Mas aqui o juiz foi justo, anulou o processo. Ocorre que o Ministério Público recorreu e agora o caso está na segunda instância. Conto em detalhes.

Em agosto de 2019, a polícia foi acionada por um mercado da cidade de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul. Uma área restrita havia sido invadida, era o setor de descarte de alimentos. Alguns homens e um menor de idade reviraram a comida vencida e levaram presunto e queijo em valor equivalente a R$ 50. A polícia foi atrás deles e recuperou 50 fatias de queijo, 9 unidades de presunto, 5 unidades de bacon e 14 linguiças calabresas. A comida foi devolvida para o mercado e descartada.

Nesse ponto eu já fico sem palavras. Natural o mercado chamar a polícia diante de uma invasão, não vai pagar para ver quem é e o que pretende. Mas tudo dali em diante seria forçado demais até em enredo de ficção. Verificam que as pessoas invadiram o lixo para levar comida vencida. Com toda sinceridade, o que você faria diante de uma situação dessas. Eu francamente não sei, só tenho vontade de chorar. Ao saber dessa história, lembrei de um poema que me marcou muito, de Manoel Bandeira, escrito em 1947.

O Bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Sou invadida por uma sensação imensa de derrota todas as vezes em que vejo irmãos brasileiros sem ter o que comer nessa terra tão abundante. Não importa quantas vezes isso se repita - e infelizmente se repete desde que me conheço por gente - dá aquele mesmo gosto amargo de derrota.

Daí volto ao caso concreto em que se descobre o "furto" de comida estragada no lixo. Qual a decisão tomada? A polícia foi atrás de quem pegou, recuperou e entregou ao mercado para que destruísse a comida. Em seguida, levou os homens à delegacia e fez um boletim de ocorrência relatando o fato. Calma que tem mais. Foi parar nas mãos do Ministério Público, que iniciou uma ação penal. A gente bancando tudo isso por R$ 50 de comida estragada que foi devolvida e jogada no lixo. Tem mais.

Digamos que realmente os policiais e promotor envolvidos no caso não tivessem outra alternativa. Talvez a burocracia fosse obrigatória e punidos seriam eles caso simplesmente ignorassem o registro. Um inquérito desses não poderia ser arquivado como se não tivesse existido. Já houve arquivamentos em casos menores, como esses de corrupção de políticos que vemos todos os dias no noticiário.

O juiz de primeira instância é que precisaria decidir sobre o caso da comida estragada levada do lixo e depois devolvida para ser jogada no lixo. E ele decidiu que não havia justa causa para o processo. Caso encerrado, certo? Errado. O Ministério Público recorreu pedindo condenação por furto e corrupção de menores. O menor, no caso, é um adolescente que estava junto do grupo. Agora o caso subiu para a Segunda Instância.

Conversei com o defensor público Marco Antônio Kaufmann, que cuida do caso. Ele me explicou que agora os desembargadores precisarão tomar uma decisão e podem escolher dois caminhos. O primeiro é concordar com o juiz da primeira instância e declarar a absolvição sumária. O segundo é discordar e mandar o processo voltar à primeira instância para que seja feito o julgamento completo.

"Tristes tempos em que LIXO (alimento vencido) tem valor econômico e o Ministério Público se empenha para criminalizar a miséria e o desespero das pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Nesse contexto, se a mera leitura da ocorrência political não for suficiente para o improvimento do recurso, nada mais importa dizer", alegou o defensor público Marco Antônio Kaufmann.

O Ministério Público enviou uma nota ao portal G1 que faço questão de reproduzir na íntegra, com grifo meu: "Os réus foram presos em flagrante pela polícia em 5 de agosto de 2019, e o Ministério Público os denunciou por furto e corrupção de menores em 22 de julho de 2020, ocasião em que já estavam em liberdade. A denúncia foi recebida em 28 de julho de 2020 por um juiz substituto. Posteriormente, o juiz titular da vara assumiu o processo e decidiu pela absolvição sumária dos réus em 26 de fevereiro deste ano, alegando o princípio da insignificância. O MP recorreu da absolvição em 30 de setembro por discordar do argumento do juízo dado o contexto dos fatos. Os réus, inclusive, apresentam condutas anteriores voltadas à pratica de ilícitos, tendo um deles sido condenado por roubo. O recurso contra a absolvição foi recebido em 30 de setembro de 2021, e o MP aguarda apreciação".

O salário inicial de um promotor do MP-RS é de R$ 25.851,96, o equivalente a 517 vezes o valor da comida levada do lixo. Talvez você tenha batido o olho na história das "condutas anteriores", mas o meu ficou onde vai o nosso rico dinheirinho. Reparem que demorou mais de um ano para apresentar a denúncia de um caso simples como esse e não há o menor constrangimento em informar e sequer uma justificativa para a demora.

Claro que também fui atrás de saber quais as condutas anteriores. São casos cujas penas foram cumpridas há mais de 10 anos. Na nossa lei, após 5 anos do cumprimento integral da pena, se não houver reincidência nem outros crimes, a pessoa volta a ser réu primário porque considera-se que pagou sua dívida com a sociedade. Tecnicamente, nem daria para usar isso, mas foi usado. E para justificar um processo por pegar comida no lixo.

Adultos sabem a diferença entre certo e errado. Já vi muita gente passar miséria e não delinquir. E vemos todos os dias delinquente de barriga cheia e jatinho por aí. Proponho aqui um outro raciocínio, tirar o foco do que deve ser feito contra para o que deve ser feito a favor. O que realmente funciona para a nossa sociedade? Qual o custo-efetividade desse processo judicial? Não haveria outros caminhos? É nosso direito questionar. E temos muitos bons exemplos.

Há 6 anos, acompanhei um caso no Distrito Federal que me colocou para pensar. Um homem foi preso furtando uma peça de carne no mercado. É crime afiançável, mas ele não tinha dinheiro nem para pagar a carne. Apareceu um policial e pagou a fiança. O homem estava desesperado porque o filho de 12 anos passava fome. Dias depois, diante da publicidade do caso, alguém ofereceu um emprego com carteira assinada.

Basta você procurar na internet que vai ver atitudes parecidas no mundo todo. Nós gostamos de pensar que podemos planejar nossa vida e controlar nosso destino. Acalma, dá tranquilidade, mas é mentira. A bem da verdade, o que nos diferencia das pessoas nessa situação de desespero são circunstâncias que nem sempre controlamos. Não há pessoas perfeitas nem sociedades perfeitas, mas há misericórdia e redenção. Nesses tempos em que cancelamentos parecem naturais, precisamos lembrar disso diariamente.

Reparem que não citei o nome do promotor. Foi proposital. Vivemos tempos nefastos em que seria o curso natural das coisas julgar a existência de uma pessoa por uma atitude que condenamos. Novamente pergunto se este caminho nos levaria a um lugar melhor. Fiz questão de citar o nome do defensor público porque considero importante lembrar diariamente que tem muita gente fazendo o que é certo por aí. Quantas dessas pessoas você conhece e não têm atenção?

Focamos no que queremos combater sem nem pensar se precisamos combater e se aquela forma de combate é eficaz. A convivência em redes faz com que a imprensa também entre nesse frenesi de apontar o dedo e buscar punição máxima para o alvo que se apresente diante dela, com ou sem razão. Esse clima espalha-se para as redes, para as autoridades, vira a nossa lógica de vida. Olho por olho e acabaremos todos cegos. É preciso abrir os olhos.

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