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Confesso a vocês que adiei tanto quanto pude a leitura do PL 2630/2020, apelidado de Lei das "Fake News" e que não consegue nem definir o que são fake news. Estava morrendo de preguiça devido às declarações sobre o tema. Quanto todo comentário oscila entre o sensacionalismo, o fatalismo e o moralismo, é porque dali não vai sair nada mesmo.
Houve parlamentares incorporando a Vera Verão para dizer que as redes sociais seriam censuradas, posição também assumida pela gloriosa Associação Brasileira de Jornalismo Digital. Chega a ser comovente que tanta gente altamente dependente das Big Techs, seja para bancar a associação ou para virar deputado, saia com essa historinha por aí. Essa briga é econômica entre dois setores.
Vi também muita gente defendendo a urgência porque as eleições estão chegando e precisamos ter uma regulamentação sobre Fake News. É aquele moralismo de última categoria vendo política como uma guerra do bem contra o mal. Nessa lógica, o lado do mal é mentiroso, mentira é errado, vamos legislar sobre a mentira. Somos o lado do bem, temos urgência.
Dar atenção a palavras de ordem de gente que não entende do assunto e, se bobear, nunca lavou um banheiro está nos levando a produções esdrúxulas como esse PL 2630. Eu sou a favor de regulamentação de desinformação e Big Techs e gosto particularmente do modelo alemão. Ocorre que esse projeto não regula nem uma coisa nem outra porque é dissociado da realidade. Desinformação é tratada como uma disputa pela verdade quando é uma manipulação emocional e cognitiva.
Eu ainda não sei se rio ou fico desesperada nem qual é o ponto mais inacreditável. Em dois anos de debate, o legislador médio brasileiro ainda acha que desinformação é disputa pela verdade, diferença entre verdadeiro e falso, faz uma lei sobre isso e ainda quer urgência na votação. O outro problema estrutural é a arrogância terraplanista de imaginar ser possível exercer na vida real o controle que o projeto propõe. Em consequências ninguém pensa porque é mais legal o bom-mocismo.
De ponta a ponta, o texto tem falhas técnicas grosseiras e primárias, que o tornam algo entre inexequível e peça de ficção. Quer dizer, não de ponta a ponta. O início, a carta de intenções, está moralmente perfeita. No entanto, ela repete um problema legislativo crônico que já foi criado pela Constituição, como nos explicou outro dia o ministro aposentado do STF Francisco Rezek.
O Brasil é signatário de diversos tratados sobre direitos e liberdades individuais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Daí, a nossa Constituição Federal faz o artigo 5o, uma declaração enorme de direitos. Como esses direitos são diferentes daquilo que está nos tratados internacionais, às vezes eles colidem nos casos reais e o cidadão perde direitos. É o caso, por exemplo, da necessidade de se filiar a um partido para concorrer a cargo eletivo, violação de Direitos Humanos mas entendido como correto na nossa Constituição.
No PL das "Fake News" temos uma extensa declaração de princípios e ela realmente é muito bonita e nobre. Ocorre que ela vai, na prática, causar colisão não só com a nossa Constituição e os tratados internacionais, também com o Marco Civil da Internet, lei de 2014, que é considerada exemplo legislativo no mundo todo. Aliás, os problemas que esse projeto novo visa atacar já são endereçados pela nossa legislação.
Você vai ouvir muita gente falando que não temos lei para "Fake News". Temos sim, um monte, que talvez precisem de um pequeno reparo ou nem isso. Só que resolver o problema não dá o mesmo marketing de lançar um projeto polêmico. Ganham com isso tanto os parlamentares favoráveis quanto os contrários e quem vive de endossar ou criticar essa lambança. Eu, por exemplo, ganho com isso, alertar você que desperdiçaram seu dinheiro - de novo - numa coisa malfeita.
Parece fazer sentido quando surge algo novo e alguém quer fazer uma lei para isso, mas vou te contar um "causo". Foi o que finalmente me fez compreender que só tem sentido lei nova se houver mudança do conceito de certo e e errado ou crime novo.
Quando eu trabalhei no STF, todos os meses tinha de apresentar um despacho monumental checando os depósitos de INSS e o pagamento de funcionários de terceirização. Eram mais de 500 páginas. Eu fazia a conferência no computador, dentro do sistema do próprio tribunal, não tinha sentido ter de imprimir para apresentar ao jurídico do próprio tribunal, que tem acesso ao mesmo sistema. Era só trancar os dados para impedir alteração e apresentar o documento em que eu valido e me responsabilizo.
Fiz a proposta, o jurídico do STF disse que eu não poderia fazer dessa forma porque não havia a previsão legal de apresentação do relatório em meio eletrônico. Fiquei muito contrariada, mostrei a um ministro. Ele riu e sugeriu: "peça agora para te mostrarem onde está a previsão legal para apresentar em papel". Não existia, claro. E aqui temos o pulo do gato.
O conceito do certo e errado e da responsabilidade dos atos não muda porque surgiu uma nova tecnologia, ele permanece. Lei boa é a que estabelece os princípios e valores, até mesmo valores morais de uma sociedade, independentemente da evolução tecnológica. Hoje a evolução é diária. No caso específico, quem ocupa o cargo que eu ocupava tem obrigação de verificar se uma empresa prestou o serviço corretamente para que seja paga. A forma de atestar muda com o tempo.
O PL 2630 é erguido sobre dois pilares de falhas conceituais absurdas. O primeiro é tratar o fenômeno das Fake News como algo do universo digital que demanda medidas digitais, quando ele é um fenômeno profundamente humano e ancestral resolvido de outras formas. O segundo é enxergar a internet como brasileira e não universal, contrariando não só o Marco Civil mas também a realidade. É mais uma amostra da complexidade intelectual de nível Dollynho.
E não sou eu o gênio por trás dessas observações, eu aprendo bem mais do que ensino sobre Sociedade Digital e Cidadania Digital. Lá em 2020, quando tiveram a maravilhosa ideia de fazer o projeto, quem fez o alerta sobre o vício estrutural dele foi o "pai" da internet brasileira, Demi Getschko, diretor do NIC-br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto Br), integrante de notório saber do CGI-br (Comitê Gestor da Internet do Brasil) e primeiro brasileiro a entrar para o Hall da Fama mundial da internet. Faço questão de transcrever.
"A internet possibilitou uma visão da sociedade, é um espelho da sociedade. Vamos com mais clareza ações humanas que antes talvez fossem menos visíveis. Se olha para esse espelho e não gosta, quebrar o espelho não resolve. Qualquer nova abordagem legislativa na área deve verificar o que está quebrado e o que é passível de consertar. Digo isso porque em geral as ferramentas de conserto que temos são anteriores ao mundo digital e não levam em conta algumas características da internet", explicou Demi Getschko aos parlamentares, que provavelmente não entenderam nada e estão aí gritando e pisoteando o espelho.
Ele também explicou algo que parecia absurdamente claro no Marco Civil da Internet: o Brasil entende esse sistema como universal. Por quê? Porque é. O maior desafio mundial da regulamentação é garantir o exercício da soberania dos Estados num sistema que atravessa fronteiras sem controle. O projeto das "Fake News" repete uma infantilidade arrogante que vimos também na tal decisão de banir o Telegram: a ideia de que é realmente possível exercer aquele tipo de controle. Não é.
Demi Getschko também alertou sobre isso lá atrás, em julho de 2020: "Se começamos a tratar da internet como algo específico do Brasil, no final estamos trabalhando na balcanização da rede. Se piora o ambiente aqui, os usuários vão para outros países. Certamente o Brasil tem soberania sobre seus cidadãos, sobre as empresas instaladas aqui. Mas tentar expandir isso além do ponto seria criar um muro ao redor do Brasil que cria uma segmentação a qual não somos favoráveis. E isso é resultado de buscar uma solução específica para o Brasil. Se piora o ambiente aqui, os usuários vão passar a usar outros ambientes. E aí o que sabíamos deles vai se tornar menos ainda."
Vivemos uma nova dinâmica da economia mundial. O PL 2630 diz que toda empresa que opera no Brasil deve ter sede no Brasil. Parece lógico, né? Suponha que estão desenvolvendo um novo app e jogam nas lojas virtuais para baixar. É uma Startup com pouca gente envolvida na Letônia. Eles vão ter de abrir sede no Brasil para poder vender para você? Vão. Então você não vai ter o produto, simples assim.
Para dizer que defendem um valor moral, muitos falam "ah, mas se funciona aqui tem de ter sede aqui". Ocorre que tem consequências. Mira em responsabilizar caso haja mau uso do produto da empresa e acerta em privar todos os consumidores de inovação. Com o tempo, qual seria a consequência disso no mercado brasileiro? Ah, dane-se, melhor bater no peito e sinalizar virtude.
Há ainda a questão da privacidade e da propriedade dos dados, que contraria o Marco Civil da Internet, os tratados internacionais assinados pelo Brasil e as recomendações da Assembleia Geral de Direitos Humanos da ONU. Os dados pertencem ao indivíduo, essa é a solução dos países democráticos. O PL 2630 diz que a gente vai ter de dar nossos dados às redes sociais porque são criadas obrigações em cima delas.
O anonimato na rede é uma discussão antiga e mundial. Seria permitido ou não. No Brasil, a Constituição não permite. Veja agora casos específicos da invasão da Ucrânia, talvez não pareça mais tão clara a moralidade da vedação. Mas esqueça essa discussão. Quem controla o anonimato? Têm de ser as instituições de Estado, a quem todo cidadão deve satisfações sobre sua conduta legal. Eu não vou dar meus dados para empresa porque meia dúzia de deputados decidiu.
Fora isso, o projeto discorre sobre detalhes mínimos de como controlar um chat, moderar um post, encaminhamentos, etc. Se aprovada, essa lei dura quanto tempo? Um ano? Cinco? Talvez. Lembra que até outro dia nem dava para encaminhar mensagem no Whatsapp? Depois começou a encaminhar, agora encaminha e mostra que foi encaminhado e limita o número se for para mais gente. E se, em vez de encaminhar criarem outra coisa para compartilhar? Joga fora a lei, bota num museu.
Temos feitos leis e políticas públicas na base de duas frases: "Então não vamos fazer nada? Precisamos fazer alguma coisa!", o que não tem a menor chance de dar certo. A prioridade não é resolver problemas é evidenciar um grupo de pessoas como bom e moral por defender que se faça algo contra o mal. O que será feito não terá nenhuma conexão com o que o grupo alega fazer, mas é pelo bem, né?
A ignorância arrogante leva adultos a realmente acreditarem ser possível resolver todos os problemas com a oposição entre verdade e mentira. Aliás, é por isso que se criaram agências de fact-checking, por simplicidade intelectual e de entendimento da natureza humana. Desde 2013 há estudos mostrando que contrapor informações, disputar a verdade, mesmo quando feito direito, não acaba com o efeito da desinformação. Mas os deputados, o TSE e o STF acham até hoje que isso funciona.
E por que isso acontece? O primeiro ponto é o da lógica objetiva, muito mais complexa que essa teoria de filme de Branca de Neve. Nem tudo o que se noticia pode simplesmente ser escrutinado com uma oposição entre verdadeiro e falso. Suponha que dois políticos estejam debatendo sobre aborto e alguém noticie que "fulano não disse o que verdadeiramente pensa sobre o tema". Como você avalia se isso é verdade ou não? É muito subjetivo para esse tipo de avaliação.
Haveria como determinar a verdade, até no mesmo caso, em outras formulações. "Fulano disse hoje o oposto do que disse sobre o tema na entrevista da semana passada". Aí sim podemos aplicar esse conceito simples de mentira e verdade, temos apenas fatos objetivos e verificáveis. O fulano disse isso hoje e vemos se disse o oposto semana passada. Mas não tem como saber o que ele pensa, não é verificável.
O outro ponto é o do funcionamento do nosso cérebro, vivemos um tempo em que precisamos entender cada vez mais de comportamento humano. Parece lógico que, se você agia de certa forma por acreditar numa mentira, basta descobrir a verdade para agir de outra forma. É assim no filme da Branca de Neve, não na vida real.
"O mercado de ideias faz uma suposição crítica. Essa suposição sustenta que, após os indivíduos descartarem informação que o mercado demonstre ser falsa, ela deixará de afetar as atitudes. Em outras palavras, ler uma correção deve fazer com que voltem ao estado de pré-exposição as atitudes decorrentes de uma informação falsa. Essa suposição parece verdadeira se nós abraçarmos as características do ambiente de mídia de hoje, e especialmente confiança no fact-checking.
Nesta dissertação, apresento evidências que mostram que essa suposição é infundada. Eu verifico que a exposição a informações sobre um candidato cria "ecos de crença": efeitos nas atitudes que persistem mesmo após a alegação ser rejeitada. A
correção - mesmo quando totalmente aceita - reduz apenas cerca de metade do
efeitos atitudinais da exposição a informações negativas", demonstrou Emily Thorson em 2013. Diversos outros estudos mostram o mesmo.
O desmentido é mais um produto do mercado da sinalização de virtude. Ele é feito principalmente para demonstrar o quando um grupo é bom, moral, correto e, acima de tudo, espertíssimo. Para isso tem muita serventia, tanto que negacionistas desse grupo são ouvidos pelos deputados para elaborar o projeto. Ocorre que os métodos que eles propõem não são suficientes para atacar o problema apresentado.
Boas intenções e boa vontade não são suficientes para produzir resultados reais, é preciso ciência e eficiência. Outro brasileiro no Hall Mundial da Fama da Internet, Tadao Takahashi, que morreu ontem, era o papa de modelos de governança na era da internet, em escala mundial. Defendia mais ou menos o oposto do que está no projeto: governança bottom-up, inclusiva e multissetorial.
A diferença é que ele colocou em prática, deu certo, aplicou em várias escalas e foi chamado no mundo todo para fazer projetos semelhantes. É desesperador a gente não poder ter orgulho nem das coisas mais brilhantes criadas por brasileiros. Temos um expoente mundial da área, não seguimos e nem conhecemos o método dele.
Em vez de calçar as sandálias da humildade e ouvir quem realmente sabe do tema, a opção de políticos e formadores de opinião é vestir a fantasia de jihadista da virtude. Não resolve nenhum problema prático, mas dá uma deliciosa sensação de superioridade moral a partir da própria ignorância.
Deixo vocês com um vídeo do saudoso professor Tadao Takahashi, cujo brilhantismo intelectual é reconhecido mundialmente. Ele explica de um jeito fácil, como todo professor brilhante, de que forma a internet poderia ser usada para desenvolvimento humano no Brasil: