Por que nós estamos há uma semana falando do mesmo pedaço do Flow Podcast compartilhado por um troll que vende consultoria em diversidade para empresas? Porque juiz pensa que é Deus mas jornalista tem certeza. Então não precisa aprender nada sobre dinâmica de internet e pode cair em armadilha dos trolls dia sim outro também. (Neste artigo, eu explico exatamente como funciona o mercado de perseguir alguém e, ao mesmo tempo, vender consultorias.)
O que a imprensa está fazendo não é luta contra o nazismo coisíssima nenhuma. Internet não é só conteúdo, é contexto. O linchamento fundamentado na sinalização de virtude não tem nenhum poder de combate a ideias torpes e infecciosas porque é uma ação torpe e infecciosa.
Meu colega Polzonoff, em mais um texto brilhante, deixou clara a diferença entre a realidade da vida e essas discussões viciantes e mercadológicas em redes sociais. Ocorre que ele é um frasista incorrigível. Avalia alguém que coloca uma frase do T. S. Elliot para definir de que se trata a própria coluna no jornal. Pois bem, é o Polzonoff. "Para nós é apenas o tentar, o resto não é da nossa conta".
Entre uma treta de zap, uma busca por louça para lavar e uma cadeira de balanço de palhinha, Polzonoff cede à tentação. Precisava de uma frase de efeito para o artigo sobre Monark, Adrilles e nazismo. Claro que conseguiu e botou até no título: "Que a cultura do cancelamento não tenha resultado em nenhum cadáver é um milagre". Ato falho, revelou ali ser um otimista incorrigível. A turba canceladora já sapateou em cima de muito cadáver, infelizmente. Só se eximiu da responsabilidade.
Outro dia, li na Folha um artigo de autoglorificação escrito por uma pessoa que se autointitula cancelador. Garante que só o cancelamento pode nos livrar da barbárie. Aliás, o título é precisamente este: Só a "cultura do cancelamento" pode nos salvar da barbárie. O autor, Dodô Azevedo, é cineasta, roteirista e escritor. Fiquei curiosa especificamente com a parte em que ele garante que Hitler seria cancelado se surgisse hoje.
É um raciocínio confortável para quem cancela. Imagina que está salvando a humanidade. A era dos cancelamentos começa com o boom das mídias sociais, na virada de 2010, quando sinalizar virtude condenando um inimigo comum passa a ser importante para vários grupos. Segundo o raciocínio, isso impediria a ascensão de governos de extrema-direita ou autoritários no mundo. Eu pergunto: impediu?
O cinema já fez essa reflexão em 2015, com o excelente "Er ist wieder da", Ele Está de Volta. É uma ficção em que Hitler renasce nos dias de hoje. Ele virou um ídolo nas redes sociais e depois na mídia. Ficou desiludido com os próprios seguidores, esperava invadir a Normandia mas viu que, juntos, eles não montariam nem um gaveteiro. O cancelamento só veio quando ele chutou um cachorro. Matar gente em câmara de gás tudo bem, mas maltratar animais não. Cancelamento é isso: justiçamento na apoteose da superficialidade.
Agora que eu já joguei água no chopp dos meus colegas da trupe dos Che Guevara de apartamento, vou jogar água no chopp do Polzonoff. De que trupe ele seria? Desse pessoal que ama literatura e escreve bonito, daí fica todo otimista achando que até cancelador tem limite. Amigo, sinto informar que tem não. A frase "que a cultura do cancelamento não tenha resultado em nenhum cadáver é um milagre" é sensacional. Coisa de poeta. Ocorre que já teve muito cadáver.
O primeiro caso que me ocorreu é o de Daphne Dorman, amiga de David Chapelle. (Eu conto todos os detalhes da história nesse outro artigo aqui). Um especial dele foi atacado pela patrulha canceladora, dessa vez no personagem de flanelinha da militância trans. (Eles tomam conta da militância mesmo que ela não queira). Daphne, que era trans, defendeu o amigo e disse não ter se ofendido. Quem ela achava que é para falar em nome das trans, por acaso ela é trans? Epa, era.
Mas, enfim, como discorda dos Che Guevara de apartamento passou a ser linchada virtualmente de forma incessante por vários dias. Depois de pouco tempo cometeu suicídio. Não existe relação simples de causa e consequência nos suicídios, impossível dizer que foi por causa do cancelamento, é algo complexo demais. No entanto, é ponto pacífico que o cancelamento não ajudou em nada na saúde mental dela. O transfóbico Dave Chapelle abriu um fundo para cuidar financeiramente da filha dela. Os canceladores estão tuitando.
Fui tirar satisfação no zap com o Polzonoff. Teria ele acreditado no nosso colega da Folha que afirmou com todas as letras que cancelamento não mata? Ele disse que se empolgou com o caso Monark, Adrilles e o nazismo. Precisava mandar uma frase boa nos grupos dos amigos dele e essa simplesmente mitou. Não conseguiu resistir. Só depois é que foi pensar. Mas espera aí, será que não tem morte mesmo?
Primeiro a própria Gazeta do Povo publicou uma matéria mostrando que um humorista do grupo Melhores do Mundo tinha literalmente dito que era para o público espancar o Monark na rua se cruzasse com ele. Gente, eu conheço o Monark, ele é do meu tamanho. Vai que algum psicopata com mais de 30 quilos resolve atender o chamado, já era a frase de efeito do Polzonoff.
Daí ele próprio me conta que já estava pesquisando um monte. Tem de tudo. Me falou de dois casos em grupos sociais muito diferentes. Um é de uma menina australiana que cometeu suicídio após cyberbullying e isso gerou uma lei específica. O outro é de uma atriz pornô que cometeu suicídio após ser cancelada por dizer que não fazia filmes com homens que participam de pornô homossexual. Gente, eu sinceramente ando preocupada com as coisas que o Polzonoff lê.
Se bem que eu li o texto do meu colega da Folha dizendo que a cultura do cancelamento nos salvará da barbárie, quem sou eu para falar das excentricidades do Polzonoff? Sobre este texto, eu ainda não entendi um ponto. As ideias nazistas precisam ser interditadas porque palavras matam, defende o texto. Mas as palavras dos canceladores não matam, libertam. Palavras matam ou não? Tem como decidir?
A realidade não importa quando um grupo está empenhado numa jihad moralista e realmente acredita ser moralmente superior. Então ele pode defender que palavras matam quando vêm do outro mas quando vêm do seu grupo só libertam, já que são apenas palavras. Não faz sentido caso a gente queira recorrer à lógica ou à realidade fática.
É possível argumentar que as palavras dos canceladores seriam menos letais que as dos nazistas. Calma que é um raciocínio complicado. Nos exemplos de mortes após cancelamentos do bem, em nome das minorias, são todos suicídios. Claro que não ajudou em nada o cancelamento, mas o nexo causal é para ponderar. Não teria havido assassinos reais inspirados em cultura do cancelamento. Será que não?
Voltemos ao filme sobre Hitler, "Ele Está de Volta". Quem são os únicos canceladores capazes de botar um fim à saga do mal? Os defensores de direitos dos animais. Nas redes, eles geralmente são fofos, turma totalmente do bem. Na realidade, há açougueiros sob proteção policial devido a ataques de ativistas veganos. Tem até os que celebram ataques terroristas islâmicos se a vítima for açougueiro. Tudo pelo bem dos animais, claro.
Na França e no Reino Unido, há diversos ativistas veganos presos por perseguição, ameaça, depredação e tentativa de homicídio. Preciso admitir que não fazem isso com palavras, fazem com coquetel molotov, facas e armas. Ocorre que não se chega a isso sem que as palavras descrevendo esse tipo de barbaridade já sejam naturalizadas. O extremista vegano comete atrocidades somente depois que está convencido de que aquilo é o necessário por uma causa.
Aqui vai uma dica sobre papo de extremista que vale para todos os casos. O líder extremista sempre vai querer convencer você de que NINGUÉM ESTÁ FAZENDO NADA sobre algo muito grave. Na maioria das vezes, está sim. Pode não estar tuitando enlouquecido nem perseguindo pessoas. A ideia de que ninguém faz nada para conter o mal é a base da justificativa de que, somente naquele caso específico, precisamos admitir uma ou outra atrocidade em nome do bem.
Por isso eu defendo já reconhecer o identitarismo como religião. Não fui eu que inventei essa história não, é uma teoria que começa a ganhar corpo entre intelectuais dos Estados Unidos e Europa. O primeiro argumento é de que o identitarismo exige uma espécie de transcendência, que é dissociar a crença da realidade objetiva e da ciência. Não vivemos só de verdades e fatos, precisamos de misticismo e ilusões. Por que não?
Neste ensaio para a revista Humanitas, de uma universidade católica norte-americana, já tem até uma teologia pronta para a igreja do identitarismo. Michael Vlahos, professor da Johns Hopkings University, criou toda uma fundamentação da crença identitarista à luz da lógica mística do cristianismo do quarto século. Seria, para mim, a solução perfeita.
Se eu escrever um texto sobre o poder da oração, por exemplo, ninguém vai supor que é algo científico e que deve virar política pública ou ser imposto a toda a humanidade. É uma coisa que eu faço porque acredito e falo da minha experiência, que não é objetiva nem mensurável. Imagina se o identitarismo fosse exatamente assim. Você acredita em teorias sociais que te levam a crer que você é bom, tem sempre razão e está acima dos outros. Mas é sua religião, não pode perseguir ninguém por causa disso. E diziam que a religião jamais salvaria a humanidade.
p.s.: Muita gente me questiona sobre a palavra identitarismo. Sou liberal e os liberais reconhecem a importância de pautas identitárias. Resolvi fazer um vídeo para tirar dúvidas. Espero que fique mais claro do que as tentativas de explicar por escrito.
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