| Foto: Vatican News
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Hoje, 24 de maio, é dia da Nossa Senhora de Sheshan, Padroeira da China. Nas conversas cotidianas, sobretudo no campeonato de especialistas de redes sociais, parece que o território chinês sempre foi proibido para religiões porque eles são comunistas. Não é assim. Na verdade, o cristianismo chinês e o brasileiro são parecidos.

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O Papa Francisco pediu neste final de semana que todos os cristãos orassem pelos cristãos chineses. Mais adiante eu conto melhor os motivos, mas vi pessoas imaginando tratar-se de um punhado de novos missionários tentando ganhar almas para Jesus no meio do comunismo. É meio que o contrário.

Tanto a padroeira da China quando a santa padroeira do Brasil são devoções marianas vindas dos grandes empreendimentos jesuítas pelo mundo. A nossa foi encontrada num rio no interior de São Paulo e por isso chama-se "Aparecida". A dos chineses chegou com pompa e circunstância um século antes. Uma cópia da imagem de Maria que ficava na capela de Santa Maria Maggiore, em Roma, onde Santo Inácio de Loyola rezou sua primeira missa foi entregue pelo jesuíta Matteo Ricci ao imperador da China em 1601. Começa aí a devoção mariana dos chineses.

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Os jesuítas chegaram à China na mesma época em que se estabeleceram em São Paulo. Lá se depararam com uma situação diferente, resistência e diversas religiões, apesar das portas abertas do imperador. Adquiriram uma colina em Sheshan, perto de Xangai e construíram uma basílica no século XIX. O Sínodo de Xangai proclamou Nossa Senhora de Sheshan padroeira da China 6 anos antes que Nossa Senhora Aparecida fosse proclamada padroeira do Brasil.

A grande diferença para a liberdade religiosa no Brasil e na China não é exatamente o comunismo, é a revolução cultural maoísta, que tem menos de 1 século. Depois de falir a economia e provocar fome, Mao Tse Tung colocou a culpa nos intelectuais, na burguesia infiltrada no sistema e nos religiosos que não se dobraram a ele. Muita gente acreditou. A raiva e o medo são os piores conselheiros. Houve 10 anos de um banho de sangue e a consolidação da ideologia como religião.

Hoje, dia 24 de maio, é dia de Nossa Senhora Mãe da Igreja. Por coincidência, é também a segunda-feira após o domingo de Pentecostes, data que muda todos os anos acompanhando o calendário da Páscoa. Este é o Dia de Nossa Senhora Auxiliadora, uma devoção mariana dos cristãos do mundo todo. Ontem, no domingo de Pentecostes, a mensagem do Papa Francisco foi especificamente para os cristãos da China, devotos de Nossa Senhora Auxiliadora de Sheshan.

“Convido-vos, portanto, a acompanhar com fervorosa oração os fiéis cristãos da China, nossos queridos irmãos e irmãs, que levo no profundo do meu coração. Que o Espírito Santo, protagonista da missão da Igreja no mundo, os guie e os ajude a ser portadores do alegre anúncio, testemunhas de bondade e de caridade, e construtores em sua pátria de justiça e de paz”, disse o Papa Francisco. Não foi casualidade, foi uma declaração diplomática precisa.

Na última sexta-feira, o Partido Comunista Chinês invadiu a diocese de Xinxiang e prendeu o Zhang Weizhu, 7 padres, 13 seminaristas. O local foi fechado sob a alegação de que a China não reconhece a diocese como legítima. Ela existe desde 1936, 7 anos antes que o PCC tomasse o Poder. A Santa Sé e o governo da China têm, desde 2018, um acordo de liberdade religiosa e não persecução. Ele está prestes a ser renovado e há quem creia que foi violado.

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As negociações não são simples. A China é um país milenar que tem séculos de diversas tradições religiosas e pelo menos 4 séculos de cristianismo. A Revolução Cultural pretendia extirpar do povo sua própria cultura e impor uma nova, ocorre que são pessoas, não tamagochis. Deng Xiao Ping, a partir de 1978, desistiu de extirpar religiões e quis que elas se dobrassem ao partido.

Desde 1949, a situação dos cristãos na China é uma preocupação central de todos os Papas, em negociações com idas e vindas a depender de quanto o regime aperta e quanta liberdade o povo reivindica em cada momento. A discussão, oficialmente, é sempre sobre filigranas jurídicas. Um pronunciamento papal duro, que é defendido por muitos, arriscaria a vida de milhares de pessoas.

Só a diocese de Xinxiang, a 1000km de Pequim, tem 100 mil fiéis. Deste a última sexta, a polícia chinesa passou a invadir a casa das pessoas, confiscar e destruir todos os objetos relacionados ao cristianismo e multar quem os possua. O Partido Comunista Chinês alega que a diocese é clandestina porque o atual bispo foi instituído num período em que o próprio partido não permitia que isso fosse feito. Mas a diocese em si é mais antiga que o poder do partido. Cria-se uma discussão infinita.

Após o pronunciamento do Papa Francisco falando dos cristãos chineses, o Partido Comunista Chinês proibiu as peregrinações ao santuário de Sheshan no dia da Santa Padroeira da China. Apenas um pequeno grupo de devotos locais foi liberado sob a alegação de medidas contra o coronavírus. Parque, lojas e um campo de golfe estão abertos para os turistas que se hospedam no pólo turístico. Será um longo caminho até 2022.

Depois de perceber que era impossível reprogramar seres humanos para sempre, como pretendia a Revolução Cultural, foram tentadas alternativas. As pessoas ficam inebriadas por um momento, adoram o maoísmo fazendo pouco da intelectualidade, do conhecimento e fingindo que briga contra o establishment. Mas uma hora o frisson passa e ficam as perdas humanas. As pessoas voltam às suas raízes e a religião está entre elas.

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Criou-se uma espécie de permissão especial para que a Igreja Católica funcionasse e isso dividiu os clérigos. O Partido Comunista Chinês passava a ordená-los, não mais o Vaticano. Os clérigos que não aceitaram passaram a viver praticamente na porta giratória da cadeira, num entra-e-sai eterno, como é o caso do bispo Zhang Weizhu. Outros clérigos, diante da interrupção das atividades religiosas e do risco imposto à vida dos fiéis, decidiu aceitar a imposição do governo chinês. Criou-se assim, uma igreja comunista, com católicos do Vaticano ordenados novamente pelo Partido Comunista e católicos com fé real e impossibilidade de ser ordenados pelo vaticano que só foram ordenados pelo Partido Comunista.

Em 2018, a Santa Sé fez um acordo com o governo da China. Passou a aceitar como legítimas as ordenações feitas pelo Partido Comunista até então em troca de que parassem de perseguir cristãos. O assunto fica em suspenso até outubro de 2022, quando haverá uma repactuação. O texto exato do acordo jamais foi tornado público.

Tenho ciência de que a real solução para o Ocidente lidar com um período de expansão do poder e fechamento da China só poderá ser dada pelos tuiteiros. Ou pelo pessoal do whatsapp. Enfim, por qualquer palpiteiro como eu, que tenha lido aqui e acolá, visto meia dúzia de vídeos sobre o tema e nunca tenha pisado na China. Sugiro que prestemos atenção no Vaticano. Vai que o pessoal de lá tem mais experiência nessas coisas, né?

Vivemos o capitalismo de vigilância, a era do controle de dados, a imposição emocional de ideias em populações inteiras, uma pandemia, uma nova dimensão de convivência e exercício da cidadania, com crises explodindo no mundo todo. A China é uma cultura milenar, que já atravessou tempestades como essa várias vezes. É interessante ver como se processam as negociações com uma das raras instituições milenares do Ocidente, a Igreja Católica.

As ações da China na escalada de poder têm despertado paixões no Ocidente, urgências na alma, medo, desejo de vingança, tudo o que sempre levou o ser humano à destruição. Não é o que acontece com uma instituição milenar como a Santa Sé, que está na China há 400 anos e sobreviveu às piores tempestades. Bravatas, gritos e ações impensadas não parecem ser o padrão daquilo que continua a ter sentido para a humanidade ao longo dos séculos.

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