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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Por que o público perdeu a confiança nos jornalistas?

(Foto: Rawpixel.com/Bigstock)

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Esqueça as teorias dos políticos, que também não são um lugar muito bom para amarrar o burro. Há muita gente estudando com profundidade as razões pelas quais existe um fenômeno mundial de perda de confiança no jornalismo profissional, como isso ocorre em diferentes contextos, quais as consequências e o que pode ser feito. O Reuters Institute acaba de divulgar o primeiro relatório de um projeto conjunto com a Universidade de Oxford, o "Trust in News Project", que vai durar 3 anos e analisa Reino Unido, Estados Unidos, Índia e Brasil. Para esse primeiro relatório, foram avaliados mais de 200 estudos acadêmicos e foram entrevistados 82 jornalistas atuantes nesses mercados, sendo que 1/3 deles pediu para que seus nomes não fossem publicados.

O primeiro relatório traz 3 conclusões principais:

1. Não há um único problema de “confiança nas notícias”, mas múltiplos desafios que envolvem tanto a oferta de notícias quanto a demanda por informações. Diferentes segmentos do público, assim como jornalistas e pesquisadores, sustentam opiniões diferentes acerca de como o jornalismo funciona e, às vezes, têm pontos de vista conflitantes sobre o que esperam dele. Assim, aqueles que desejam abordar a confiança precisam ser específicos em seus objetivos estratégicos e, de preferência, basear seu trabalho em evidências comprovadas, pois iniciativas que funcionam com parte do público podem não funcionar com outros segmentos.

2. Muitos estudiosos e profissionais têm diagnosticado problemas na produção de notícias que podem contribuir para a desconfiança. Os efeitos de mudanças nas práticas de distribuição, especialmente o importante papel desempenhado pelas plataformas, não são tão bem compreendidos, mas possivelmente são importantes. Muitos dos entrevistados temem que as plataformas reduzam a confiança do público nas notícias, mesmo que elas também ajudem as pessoas a encontrar notícias. Aperfeiçoar padrões e práticas jornalísticas pode não contribuir para aumentar a confiança se os esforços não forem visíveis aos usuários que se deparam com notícias nas mídias sociais apenas de forma passageira.

3. As iniciativas internas e externas em torno da transparência, do engajamento e da alfabetização midiática mostraram ser promissores, mas as evidências empíricas sobre o que funciona, com quem e em quais circunstâncias, permanecem turvas. Frequentemente, as pesquisas têm sido muito desconectadas da prática e muito concentradas em apenas um punhado de países. Existe um risco considerável em fazer coisas que parecem boas e que provocam uma sensação de bem estar, ou imitar o que outros estão fazendo, com base em pouca ou em nenhuma evidência. Isso pode levar, na melhor das hipóteses, a esforços desperdiçados – e a resultados contraproducentes, na pior.

Essas primeiras conclusões valem para os 4 países. Há, no entanto, uma diferença importante no Brasil e na Índia: o consumo de notícias via redes sociais e grupos de whatsapp aliado aos índices impressionantes de analfabetismo digital. No último PISA, que avaliou a capacidade de percepção crítica da informação no ambiente digital, verificou-se que apenas 2 em cada 100 brasileiros sabe diferenciar fatos de opiniões. Isso não ocorre apenas por deficiências educacionais, mas pela ilusão de saber como funcionam as redes sociais.

Consumir notícias via redes sociais é um caminho sem volta, da mesma forma que é assim com diversas outras indústrias. As plataformas firmaram o pé na conexão entre marcas e clientes e, neste momento, enfrentam uma batalha de regulamentação no mundo todo porque se recusam a cumprir leis em todos os países. Se elas, as intermediárias, saem ganhando financeiramente ao atuar ao arrepio da lei, alguém sairá perdendo e o mercado ficará desequilibrado. É um fator importante no abalo de confiança da indústria de notícias, que é fundada na credibilidade.

O que é confiança?

Seria ótimo se pudéssemos definir confiança de forma objetiva e racional, mas não é assim que a humanidade funciona. Vamos a dois exemplos simples e atuais: o respeito pelas mulheres dos que se dizem feministas e o esforço pessoal que árduos defensores da "meritocracia" fizeram para chegar onde estão. No caso da mídia, uma abordagem objetiva para a confiança seria a constância e coerência em produzir com profissionalismo, integridade e princípios. Todos nós sabemos que o meio da comunicação é uma das maiores concentrações de sepulcros caiados desde que Jesus cunhou a expressão. E esses se sustentam porque geram confiança no público.

Esqueça se isso é justo, injusto, certo ou errado, vamos focar no fenômeno. Confiança não é algo medido com objetividade, perpassa a dimensão psicológica, cultural e de relacionamento humano. Sou jornalista há 24 anos e é muito recente o fenômeno de alguém "gostar" ou não de uma notícia, assustador até o questionamento sobre "quem decide o que é verdade?", como se todos os limites entre universo imaginário e realidade tivessem sido borrados. Sempre foi comum não gostar da opinião de alguém, até do jeito, da voz, do tom. Mas há agora uma confusão entre sensações e falta de qualidade do que foi reportado, é um fenômeno novo. Há pessoas que gostam ou desgostam de um programa, repórter ou veículo a depender de terem gostado ou não do que foi reportado.

"Embora alguns estudos tenham distinguido a confiança do conceito mais restrito de 'credibilidade', ou a veracidade das informações relatadas (Meyer 1988; Strömbäck et al. 2020; Van Dalen 2019), outros enfatizaram a importância das dimensões afetivas da confiança (Coleman et al. 2012) - isto é, como as pessoas se sentem sobre as notícias, não apenas como avaliam sua precisão e confiabilidade, ", diz o relatório. "As pessoas sentem que você está do lado delas? Eles acham que vocês são boas pessoas, acham que vocês têm boas intenções, que são honestos? "
Joy Mayer, diretora, Trusting News (EUA)

Há divergências entre comunicadores, jornalistas e publishers sobre o que é o bom jornalismo. Imagine então entre o público. Aqui não falo de fake news ou de trabalho malfeito, mas da identidade entre os princípios e valores do público com os princípios e valores do veículo e dos comunicadores. Jornalismo investigativo, por exemplo, não é um tema bem resolvido entre profissionais e o público. Para os jornalistas, geralmente é visto como uma função fundamental, mas é mal recebido pelo público caso coloque em risco sua comunidade. Há pessoas que gostam de diversos pontos de vista entre colunistas de um veículo, outros preferem uma posição bem evidente, sem contraponto. "A confiança é uma relação, é mais do que apenas acreditar no que você está falando, mas que compartilhamos valores", avalia disse Sally Lehrman do The Trust Project (EUA).

O que, afinal, diferencia um jornalista de alguém com espaço e opinião?

Duas discussões são normalmente confundidas, a corporativa e a de reconhecer realidade. Durante muitos anos, sindicatos de jornalistas lutaram para que somente esses profissionais pudessem atuar em veículos de comunicação. Perderam. Isso é muito diferente de confundir a atuação de um jornalista com a atuação de alguém que não estudou para isso, não tem a prática mas fala bem, tem capacidade analítica e argumentos. É o que diferencia um cirurgião plástico formado do doutor Bumbum do Instagram mas, nos dois casos, a diferença não é clara fora do meio profissional.

Segundo o relatório, o formato noticioso é facilmente confundido com jornalismo, que vai muito além dele, é a metodologia de apuração dos fatos. Muitas pessoas sabem chavões da área, como "sigilo da fonte", "fontes oficiais", buscam o link de tal coisa, mas não foram treinadas para o funcionamento conjunto e sistêmico das diversas técnicas de apuração, incluindo o relacionamento com fontes. É evidente que o produto final do jornalismo profissional e da mimetização do jornalismo terá a diferença de, por exemplo, comprar um bolo de uma confeiteira profissional e mandar seu filho de 5 anos copiar a receita. No entanto, se o público não sabe da existência da diferença, é comum que ele confunda uma coisa com outra.

Os veículos e jornalistas também têm uma grande responsabilidade no fato de o público hoje não compreender a diferença entre uma apuração jornalística e fazer uma live no YouTube. As novas tecnologias trouxeram novos formatos que deixam confusas as apresentações de informação e publicidade, de conteúdo editorial e conteúdo factual, de produção jornalística e produção opinativa de outras áreas. Quando menos a diferença é salientada, menos o público a percebe e, portanto, natural que se apaixone mais pelo que é mais apaixonante: a defesa de qualquer coisa sem compromisso com os fatos.

No Brasil temos este fenômeno, mas o exemplo do relatório é o da Índia, onde é comum vender espaço de publicações para que políticos publiquem suas opiniões, sem que o público seja informado disso. Há ainda outros obstáculos entre os segmentos da população que conhecem o funcionamento do jornalismo, muitos não entendem o funcionamento das mídias sociais, que hoje são fontes primárias de notícias para a maioria das pessoas. O público lê um jornal, ouve uma rádio ou vê um canal de televisão pelo link das redes sociais.

" Há muitas pessoas que não conseguem distinguir entre um artigo que escrevi e um artigo que compartilhei no Twitter. Embaixadores aposentados, médicos e até cientistas enviam desinformação que é selvagem e maluca. As pessoas que estão tentando lutar contra isso estão tentando salvar o oceano com um dedal", diz Sadanand Dhume, colunista do Sul da Ásia, Wall Street Journal (EUA / Índia)

Muitos veículos de comunicação sentem-se reféns das plataformas de mídias sociais e não é porque elas dão voz a mais pessoas, é porque pisoteiam todo e qualquer princípio fora do determinado por seus acionistas, que é o lucro. Se, dentro da própria plataforma, um veículo pode ser contra manchetes sensacionalistas ou os chamados "click baits" (manchetes chamativas que não apenas próximas da verdade), ele tem como se sustentar assim na era das redes sociais? Boa parte sucumbiu e isso ainda deixa mais confuso para o público entender qual é a diferença entre este produto e qualquer um gritando no Facebook ou no Whatsapp.

Existe imparcialidade?

Tendência política e endossar sistematicamente o discurso de determinadas elites são fatores apontados como fundamentais para erodir a confiança do público nos jornalistas. Nos países em que a grande maioria dos jornalistas é de uma determinada tendência política, como acontece no Brasil com a esquerda, existe uma desconfiança do público nas motivações da imprensa como um todo. Outro ponto é a defesa sistemática de pautas que interessam apenas a uma porção muito específica da população, normalmente aquela elite intelectual com a qual os jornalistas dos grandes centros convivem.

O discurso que afeta superioridade e simplesmente ignora questões reais porque não dóem naquela elite acabou por fazer com que uma parte do público se sinta órfã. A confiança tem profundas raízes nos sentimentos. A desconfiança acaba se transferindo para todos os que, de alguma forma, façam parte do universo que a gerou, seja o da polarização política ou o dos interesses de determinadas elites. Rebecca Walters, Produtora Executiva da KJRH em Tulsa (USA), relatou ter dificuldades em convencer o próprio pai de que a redação que ela chefia não tem interesses políticos ocultos. É complicado quando uma narrativa passa a ser mais forte que os laços familiares mais profundos.

"Ser transparente sobre o que se acredita é uma premissa para gerar uma forte relação de confiança", frase de Guilherme Cunha Pereira, Diretor Executivo do GRPCOM, é citada no primeiro relatório do Trust in News Project. Ele acrescenta: "O fato de que a grande maioria dos meios de comunicação tem uma visão mais progressista, enquanto parte da sociedade não se alinha com isso - é supersaturada, e leva à desconfiança". O relacionamento do público, hoje, é primeiro com os comunicadores. Organizações podem ter sistemas editoriais que cheguem perto da imparcialidade, pessoas não.

"Reconhecemos que, como pesquisadores, estamos viajando não apenas por um caminho desgastado, mas também por um caminho que atravessa terrenos em constante mudança. As questões que delineamos sobre (a) o papel das plataformas, (b) estratégias de engajamento do público, (c) iniciativas de transparência e (d) preconceitos sobre as notícias servirão amplamente como um roteiro, e colocaremos os usuários de notícias - pessoas cuja confiança os jornalistas procuram ganhar - no centro do nosso trabalho. Este roteiro guiará nosso caminho adiante, permitindo-nos ser guiados pelas descobertas que esperamos encontrar.", é o encerramento do relatório.

Estamos ainda tateando no escuro no caminho das mudanças. Confiança não se estabelece do dia para a noite, mas se perde em um piscar de olhos. Ainda continuam sendo as principais referências do público as marcas mais tradicionais, em todos os 4 países estudados, mesmo quando há descontentamento com alguma delas. Ainda estamos na fase em que o público órfão por ver tendência política ou elitismo no comportamento da imprensa empenha confiança em quem repete as práticas, mas se voltando contra quem as inaugurou. É uma fase. A única conclusão do primeiro relatório é que não basta cada veículo de imprensa tentar fazer o seu, estamos em um novo mundo e precisamos repensar juntos, com a participação do público.

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