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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Porta dos Fundos, machismo e o manual prático do passapanista do bem

Porta dos Fundos (Foto: )

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O Porta dos Fundos fez um vídeo reproduzindo um dos clichês preferidos dos machistas, o de que mulher só ascende profissionalmente usando sexo. Eles tiraram o vídeo do ar, o Sleeping Giants condenou o vídeo, várias personalidades progressistas e de esquerda se manifestaram contra o vídeo. Ainda assim, aposto que você tem uma sensação de desproporção entre as reações diante desse caso e de outros semelhantes, com pessoas de outro campo político.

Isso não é magia, é tecnologia. Trago para vocês o "Manual Prático do Passapanista do Bem", um conjunto de técnicas objetivas de discurso para você livrar os seus amigos das responsabilidades que atribui aos inimigos. Mas não se preocupe, com essas técnicas revolucionárias você conseguirá culpabilizar a vítima mas continuar dizendo que está do lado certo da história. A seguir, o passo a passo do truque infalível da PSEUDOCONDENAÇÃO.

No caso específico, nós temos um vídeo machista. É como esses casos impressionantes que vez ou outra aparecem na imprensa: carros que atropelam, armas que matam, drogas que se traficam sozinhas. Nos casos em que se trata de um amigo, jamais a responsabilidade é dele, ele sempre tem de ser completamente afastado do tema. Nenhum machista fez o vídeo, ele se fez sozinho, era machista, se enfiou na plataforma e, assim que detectado, foi expurgado. No caso, o vídeo é machista e errou:

Caso o autor seja um adversário, uma única ação o marcará para a vida toda e não haverá possibilidade de redenção jamais. Nesse caso, jamais será um vídeo machista, mas um machista que fez um vídeo. Supõe-se que todos os vídeos que ele fizer sempre serão machistas. Machismo é discurso de ódio. Todos os lugares onde ele discursa são propagadores de discurso de ódio. Portanto, todas as mulheres que têm espaço no mesmo lugar que ele devem ser esculachadas publicamente porque compactuam com discurso de ódio.

A primeira técnica é a do deslocamento de responsabilidade, que exige sublimar o conceito de dignidade humana e considerar que apenas pessoas de determinado grupo têm direito a redenção. Quando se tratar de um amigo, ele não é responsável, desloca-se o mal para o objeto problemático. Quando se tratar de inimigo, ele é mais que responsável, ele é a semente do mal que contaminará todo objeto que toque.

Aplicar constantemente essa técnica é fundamental para manter ativa a cultura do cancelamento. A parte mais evidente dessa cultura é ter um inimigo por dia a destruir completamente, mas há uma outra tão importante quanto, a construção de um panteão de monopolistas da virtude. Os perseguidores não têm defeitos, cometem deslizes em casos isolados que não se repetem. Ainda que se repitam, é necessário frisar que é um caso isolado e todos condenam o caso, o vídeo, o carro, a arma, jamais o grupo ou o ser humano. É dessa forma que será construída a reputação para perseguir outros grupos.

Utilizo aqui o caso específico do machismo no Porta dos Fundos para explicar essas técnicas de comunicação, mas elas não têm cor ideológica, são democráticas. Inclusive, se você reparar, são largamente utilizadas por diversos outros grupos que se unem pela negação. São grupos que não têm um objetivo claro em comum, são contra "tudo isso que está aí", querem "derrubar o establishment", mas não concordarão quanto ao que deve ficar no lugar. Aliás, muito provavelmente nem dialogam sobre isso, unem-se contra um inimigo comum.

A técnica de união contra o inimigo comum é ancestral, mas muito potencializada na era da hipercomunicação. O primeiro motivo é que todos estão em contato o tempo inteiro e é muito mais fácil e rápido construir consensos de negação do que de construção. Sabemos o que rejeitamos ainda que não tenhamos a menor ideia do que queremos. O outro motivo é que os algoritmos das redes sociais impulsionam conteúdos que tenham emoções energizantes, como ódio, indignação e medo, exatamente aqueles que formam grupos contra inimigos comuns.

A segunda técnica importante é jamais reconhecer a dignidade humana da pessoa atacada por um aliado. Se possível, minimizar o ataque feito e até criticar a pessoa atacada antes de condenar o ataque do aliado. É importante deixar implícito que a pessoa atacada, de certa forma, merece aquilo mas o grupo é tão virtuoso que condena ataques mesmo contra uma pessoa que merece ser atacada. Observe que não são técnicas separadas, é necessário agregar.

Obviamente que fazer essas afirmações de forma direta resultaria em condenação pública, então é necessário embalar o produto no pacote do monopolista da virtude. No caso específico, o ideal é começar apontando tudo o que despreza na pessoa atacada e muito importante não falar em ações ruins dela, mas colar as qualidades ruins na essência do ser da pessoa atacada. Depois, sinalizar virtude, dizendo que mesmo diante de tanta malignidade é contra ataques. E então condenar o ato - ou o vídeo - como se fosse um ente autônomo, jamais deixando que a característica ruim seja associada ao aliado. Por exemplo: a vereadora é do Partido NOVO, um partido horrível que quer o mal da galáxia, por isso merece todo repúdio mas eu não aceito machismo nunca então condeno publicamente esse vídeo machista.

O tweet feito por Felipe Neto segue à risca a estrutura: "Eu acho o partido NOVO patético. Típica turminha neoliberaloide que sonha em ver ricos ficando mais ricos, enquanto grita "É MERITOCRACIA" pros mais pobres. Contudo, o vídeo feito pelo Porta dos Fundos sobre a vereadora do partido foi inaceitável. Totalmente horrível" . É uma forma elegante de reforçar as ofensas sobre a vítima e afastar a responsabilidade do ofensor, afinal o vídeo é autônomo e quem o publico não é machista, é virtuoso.

São mudanças sutis na linguagem, mas que geram reações completamente diferentes de quem ouve. Percebam que a deputada Tábata Amaral, frequentemente esculhambada por machistas de esquerda e de direita, não passa pano para eles. Como o crescimento dela tem outra lógica, não a de eleger um inimigo ao dia e atacar em massa, pode responsabilizar pessoas pelo que fazem e admitir que seres humanos não são perfeitos. É, na verdade, o caso da grande maioria dos políticos de todos os matizes ideológicos, embora as exceções façam mais barulho.

Percebam que primeiro ela fala do problema em si, o machismo, que é característica de pessoas em geral, não de objetos inanimados ou produções cinematográficas autônomas. Salienta que, na visão dela, pode existir em várias ideologias políticas, atribui a responsabilidade ao Porta dos Fundos - não ao vídeo autônomo - e expressa solidariedade à pessoa ofendida. Além disso, importante notar, não condena o ofensor ao cancelamento eterno, mas espera uma redenção:

Quais seriam as consequências práticas de adotar um discurso como o que fez a deputada Tábata Amaral e que apenas um punhado de progressistas fez? Admitir que errar é humano e erros não são corrigidos com cancelamento. Isso desmonta completamente o ideal de pureza do parquinho de areia antialérgico, que o credencia a perseguir de maneira implacável todos os que considera impuros.

Já o outro comportamento, que culpa esse vídeo malvadão por tentar manchar a reputação imaculada do Porta dos Fundos, preserva a ideia de que é possível ter monopólio da virtude e pureza de alma. É uma blindagem que serve para justificar o comportamento reiteradamente machista e arrogante do grupo nas respostas. Na verdade, se o vídeo foi um acidente de colocar para fora porções escuras da alma, algo a que todos estamos sujeitos, as respostas foram machismo deliberado.

PSEUDODESCULPAS: como dar armas aos seus passapanistas do bem

Se você é um monopolista da virtude que sempre está do lado certo da história, obviamente que não pode admitir ter falhas de caráter ou errar na vida. Só que, se você não fizer isso publicamente, vai dificultar a vida dos passapanistas do bem. Aí, só restarão em seu socorro os mais radicais, o que será muito ruim para a reputação. Enquanto você ficar em silêncio, as pessoas que o defendem por inércia só poderão lançar mão de um recurso: culpabilizar a vítima. No caso, concreto, é sair pela tangente sobre o tema central, machismo, e focar no caso de que a personagem já existia, portanto não pode ser sobre a vereadora. Se preciso até dar uma espinafrada no vídeo, esse vilão maldoso.

Calma! Você não vai precisar admitir que tem machismo no coração e nem reconhecer a dignidade de mulheres que despreza. É só seguir passo a passo a técnica da PSEUDODESCULPA, em que você faz um pronunciamento que supostamente seria para reparar o ocorrido mas dobra a aposta. Usar linguagem passivo/agressiva, sinalizar virtude e reforçar estereótipos de quem você atacou é um plus.

A primeira coisa a ter em mente é que você não está se dirigindo à pessoa que foi ofendida porque, afinal, não é obrigado a reconhecer que ela tem dignidade. Você finge se dirigir a ela para falar com o seu público, que conhece sua índole perfeita. É preciso conhecer os valores desse grupo a quem você se dirige para reforçá-los. Uma boa estrutura é começar dizendo que não teve a intenção, lamenta que algumas pessoas tenham se sentido ofendidas e reafirma seu compromisso com qualquer coisa virtuosa que você achar legal.

Se você utilizar palavras suaves ou mais formais, vai poder dobrar a aposta e atacar a vítima de novo. No caso de mulheres, o mais comum é redobrar preconceitos ou xingamentos que dormitam no imaginário popular: louca, escandalosa, velha, mal comida, recalcada, invejosa. Não use essas palavras especificamente, pareça gentil mas deixe a bola quicando. Por exemplo, explique uma obviedade completa à mulher como se ela tivesse 5 anos de idade. Vamos a um exemplo prático:

Jamais a vereadora disse que a personagem era ela especificamente. Sentiu-se obviamente atingida por esse espasmo machista do Porta dos Fundos que bate na tecla de conquistas profissionais movida a sexo. Qual a resposta deles? Desconsiderar completamente a reclamação dela e tratá-la como se tivesse a simplicidade intelectual do Dollynho e fosse frígida. Claro, mais uma vez sinalizando a própria virtude.

Alguns chamam esse recurso de "espantalho", criar um argumento que não existe e vira o centro do debate. Jamais houve discussão sobre a personagem ser ou não inspirada na vereadora, mas é uma boa saída argumentativa. Por quê? Primeiro para fazer parecer que ela exagerou na reclamação, acha que tudo é com ela, autorreferente, louca para perseguir os outros. Depois porque é sensacional para tirar o foco do centro da discussão: o machismo. Não basta dizer que defende mulheres, é preciso defender. Isso não foi feito.

Tem ainda a outra parte, uma emenda pior que o soneto. A vereadora reclama do recurso machista de associar o sucesso profissional de uma mulher à conotação sexual. Qual a resposta? "Ela explora sua sexualidade livremente". Aproveita-se o estereótipo sobre mulheres de direita para inferir que a vereadora reagiu assim por ser mal comida? Não, jamais. Um progressisto jamais deixaria isso escapar das entranhas numa hora de raiva. Foi completamente desconsiderada a reclamação, mas os fãs têm já um material para argumentar que se desculparam.

Se você for de direita e tiver atacado uma mulher, o trabalho está terminado. Daí em diante, se ela reclamar, pode até perguntar: "mas está querendo que eu faça mais o quê? Te chame para jantar?". Não tenha dúvidas de que ela será massacrada e ridicularizada pelos seguidores, que se voltarão contra ela. Mas, se você for de esquerda ou de centro, vai ter feministas e feministos entre os seus apoiadores e eles vão precisar de alguma atitude concreta para pararem de cobrar.

Não se preocupe porque a atitude não terá de ter consequências como rever seu posicionamento ou compensar quem você tenha ofendido. Aí já seria demais. É apenas dizer: olha, repensei e fiz algo. No caso, o Porta dos Fundos retirou o vídeo do ar. E comunicou como? Triplicando a aposta: ignorou a reclamação da vereadora, não admitiu o machismo, sinalizou virtude de novo e voltou à história do personagem não ser a vereadora:

O ápice do deslocamento de responsabilidade é: "o vídeo não condiz com o que acreditamos", como se ele fosse produzido por aliens maus, muito diferentes dessas pessoas imaculadas do canal. Daí, em vez de se desculpar, dá uma desculpa, dizendo que não teve a intenção de fazer algo que fez. Então, sinaliza virtude com uma frase feita e dá um estímulo aos apoiadores. É um modelo que se utiliza muito, mais ousado até do que o Carrefour usou num primeiro momento, mas está saindo de moda.

Uma dose de vida real

Desde a década de 90 e, sobretudo, após 2010 com a popularização da internet de banda larga e as redes sociais, lacrar passou a ser visto como sinônimo de virtude. Dizer a coisa certa, apoiar as campanhas certas e, sobretudo, perseguir de forma implacável quem desobedece essa cartilha, são indicadores de que a pessoa presta. O mundo passa a ser dividido em dois times, ambos pensando que só seus integrantes prestam, não reconhecendo a dignidade do outro grupo e recorrendo a um chiqueiro moral de táticas de ataque e manifestação para sentirem emoção.

Existe um teto para essas táticas, a realidade. Na vida real, não fazemos o bem que queremos e fazemos o mal que não queremos. Pessoas boas fazem coisas ruins, pessoas ruins fazem coisas boas, há quem se perca no caminho e quem encontre redenção. Todos temos preconceito dentro de nós e ele acaba se mostrando nos momentos de descuido. São oportunidades de reconhecer o privilégio de conviver com uma criação de seres únicos, todos diferentes entre si, e evoluir.

Há ainda uma outra situação, muito comum para os humoristas, que lidam com os limites do que uma sociedade aceita: quando um tema perde a graça. O Brasil viu a luta de grandes humoristas como Jorge Dória, Paulo Silvino e Agildo Ribeiro quando simplesmente deixou de ter graça ridicularizar gays, contar piadas de preto e de loira burra. O Porta dos Fundos passa por isso. Já teve graça intolerância religiosa e machismo passivo/agressivo, está caindo em desuso.

A grande diferença é que nessa era não existia cancelamento porque vivíamos um outro período de mudanças na sociedade, muito mais palpável, ativo. Todos compreendíamos a dificuldade que as pessoas tinham de entender que aquilo tão certo tinha mudado. O humorista Marcio Américo me disse que, pouco mais de 40 anos atrás, era uma piada de sucesso seguro dizer: "Entrei no avião. (Pausa dramática) O comandante era mulher". Hoje, o mundo mudou tanto que não precisa mais nem de protesto para que alguém deixe de contar uma piada dessas. Ninguém mais entende se ela for contada. Vai ter que explicar, contextualizar historicamente.

Houve muitas reclamações sobre personagens e piadas dos humoristas antigos, ainda apegados a seus repertórios de segurança. Não houve, no entanto, tentativa de apagar o trabalho deles, o talento, o brilho, a história. O Porta dos Fundos vive essa transição em um momento muito diferente. Por exemplo, o preconceito religioso que ainda insistem em conservar rende ataques que vão muito além do caso em si ou da insistência nessa visão obtusa de mundo. Há quem questione a dignidade de todos os participantes do grupo. Trata-se de uma empresa enorme, não espanta a reação defensiva diante de grupos adversários canceladores.

O humor é a arte mais desafiadora no sentido de questionar publicamente as contradições e incoerências mais incômodas. A questão é que dele não se salvam nem os próprios humoristas. Quando se tenta encaixar o humor, incontrolável por excelência, na lógica da militância ou nas premissas da guerrilha de redes sociais, ele pode se rebelar. É o caso.

Na lógica da militância de redes, há pessoas perfeitas e uma luta entre o bem e o mal, onde só a aniquilação repara deslizes. Na vida real, há humor, amor, tropeços e redenção. Inclusive há militância real, aquela que é feita para mudar as coisas até não ser mais necessária. Infelizmente, nesse episódio as coisas permaneceram estacionadas. Negar um problema é a melhor forma de eternizá-lo.

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