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Nem nos maiores delírios de controle de bedel de colégio de freira passa a ideia estapafúrdia de criar regra para fantasia de carnaval. Mas o progressismo brasileiro, de tanto olhar para o abismo, se tornou o que mais temia: fundamentalmente autoritário e reacionário.
Imagino se Getúlio Vargas ou os chefões do SNI tivessem à mão os instrumentos que esse pessoal usa agora quanto dinheiro o Brasil poderia ter economizado nessa área estratégica que é a vigilância do carnaval e dos foliões. Uma dissertação de mestrado da UFF em 2010 descreve em detalhes as ligações das escolas de samba com o PCB na Era Vargas e as manobras intrincadas que foram feitas para tirar o carnaval do colo da esquerda. Gastaram à toa, a esquerda gourmet faz isso de graça, com mais rapidez e mais eficiência.
Dificilmente criarão um bloco de carnaval mais lacrador que o glorioso "Acadêmicos do Baixo Augusta", reduto preferencial da esquerda gourmet da minha paulicéia e grande responsável pela volta do carnaval de rua à capital de São Paulo. Para mim, um dos grandes atributos do bloco é a madrinha, Alessandra Negrini, personificação da resistência da beleza ao tempo. Imagina com quem implicaram este ano? Com a Alessandra Negrini seminua.
A fantasia tradicionalmente é um manifesto lacrador. Este ano, diante das ações do governo federal contra os indígenas, a madrinha do Acadêmicos do Baixo Augusta tinha um senhor de um tema em mãos. Levou convidados indígenas, entre eles Sonia Guajajara, mas cometeu um crime: se fantasiou de índia no carnaval. Pecado mortal, senhores.
Eu sinceramente entendo mulheres que ficam muito bravas com essa foto porque é um desaforo Alessandra Negrini ter 49 anos. Mas custo a entender que tipo de homem olha essa foto e pensa em problematizar a roupa. Nem estilista faria isso. Obviamente teve muito mais gente defendendo a musa do que atacando.
Já estou velha. Se me dissessem, 25 anos atrás, que eu viveria para ver progressista querendo censurar fantasia de carnaval de mulher seminua, eu daria uma gargalhada. Hoje, já não sei mais se é para rir ou chorar.
Não se enganem, a discussão não é sobre apropriação cultural, política nem direitos indígenas. Estamos falando aqui de um movimento de massas como torcida de futebol, com zero de racionalidade e disposição para xingar quem passar na frente. "No Maracanã, vaia-se até minuto de silêncio e, se quiserem acreditar, vaia-se até mulher nua", dizia Nelson Rodrigues. Chegou o dia em que a piada virou notícia.