Imagine que alguém decidisse fazer leis com base em teorias conspiratórias. Há diversos exemplos na história da humanidade, todos eles com desfechos catastróficos e não previstos por povos que realmente acreditavam em absurdos. Com distância histórica, estranhamos que as pessoas aceitem pacificamente a tirania da ilusão coletiva, mas é um fenômeno que se repete.
Um deputado estadual de New Hampshire, nos Estados Unidos, acaba de propor uma lei proibindo a elaboração de leis com base nas "teorias críticas", direcionadas geralmente a questões envolvendo raça, gênero e orientação sexual. Segundo o deputado Keith Amon, é preciso combater racismo, machismo e homofobia, mas isso não acontece com as políticas divisionistas derivadas das teorias críticas, famosas entre intelectuais mas sem critério científico.
A militância identitária que ficou famosa na internet da última década e este ano no Big Brother Brasil fundamenta sua atuação na "teoria crítica". Trata-se de uma linha de estudo das ciências humanas que começa a tomar as universidades na década de 90 e ainda hoje é tida por parte da intelligentsia ocidental como produção científica. Sob o ponto de vista do método e rigor científico não há muita diferença entre as "teorias críticas" e as teorias conspiratórias.
Ambos os tipos de teorias partem de pontos de verdades unidos pela imaginação. A teoria conspiratória que mais radicaliza pessoas no mundo atual, QAnon, parte de comportamentos e falas de autoridades ou celebridades globais para dizer que existe um governo de elite sionista oculto e mundial, além de uma organização internacional de intelectuais a favor da pedofilia. Da mesma forma, a teoria crítica parte da existência do racismo, machismo e homofobia para explicar todo e qualquer fenômeno por esse prisma.
A humanidade aceita a ideia de igualdade entre raças e gêneros desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. São milênios de história humana, é inegável que ainda temos racismo, machismo e homofobia entre nós. Ocorre que essa não é a explicação para todos os fenômenos. Ser mulher, negro ou homossexual não é passaporte de virtude moral. Da mesma forma, ser homem branco hetero e cis não quer dizer que se trata de uma pessoa que massacra as demais. Segundo a ciência o indivíduo se define pela combinação do ambiente com características próprias. Reduzir tudo a machismo, racismo ou homofobia estrutural elimina a individualidade da equação e, portanto, nega a ciência.
O sociólogo José de Souza Martins defende que a sociologia brasileira esteve "desatenta" nos últimos anos e deixou que o critério científico e a objetividade fossem substituídos por ideologia. “O que acho que houve a partir de 1964 foi que as pessoas perderam a perspectiva do método, as ciências sociais e a sociologia se expandiram pelo Brasil e se passou a fazer sociologia imaginando que, usando conceitos, se faz ciência. A ciência não é feita de conceitos. Conceitos são muletas que usamos para ir demarcando o terreno da análise. Mas a questão central é a do método, do método lógico, do método de explicação conectado com o método de investigação” - disse em aula magna na Unisinos.
O maior problema de deixar que a ideologia substitua o critério científico é a perda da capacidade de interferir na realidade. Alguns exemplos de pautas defendidas pela militância identitária com base em teoria crítica são: linguagem neutra, lugar de fala, camadas de opressão com base apenas na estrutura machista, racista ou homofóbica. São teorias que se tornaram quase unânimes na militância identitária nos últimos 10 anos. Quais as conquistas efetivas das mulheres, negros e homossexuais nesse período? Zero.
Há também "teoria crítica" em diversos outros campos do conhecimento, como a questão agrária. É evidente que há distorções na distribuição das terras agricultáveis do Brasil, como se espera do último país do mundo a abolir a escravatura. Foram feitos avanços importantes em diversos governos, mas eles param assim que os únicos avanços intelectuais são em torno das "teorias críticas". Como se trata de teses que não guardam relação com a realidade, fica muito difícil trazer qualquer ganho na realidade.
As "teorias críticas" se tornaram tão importantes para a esquerda também pela evolução tecnológica. Os partidos de esquerda foram formados com base no operariado e seus interesses, mas a dinâmica da produção mudou, as fábricas não são as mesmas e as prioridades desses trabalhadores também não. Os intelectuais e artistas de esquerda, que formavam a menor parte do movimento, passaram a ter cada vez mais importância mas não estão dispostos a aceitar o povo como ele é. O povo brasileiro é religioso, conservador, tradicional. O operariado sempre foi assim e sempre aceitou quem fosse assim. Mas isso não passa no crivo da intelectualidade, que propõe uma "conversão" forçada aos seus próprios valores.
Questões controversas são tratadas pelas "teorias críticas" como pontos pacíficos e começam a causar fraturas até dentro da própria esquerda. Um dos exemplos lapidares é o das feministas taxadas sistematicamente de transfóbicas. Isso acontece quando questionam, por exemplo, se é justa a presença de atletas trans com vantagens físicas competindo nos mesmos esportes. Ou até quando dizem que o órgão sexual é fator importante de atração sexual e não pode ser simplesmente ignorado numa relação a dois.
Todas as pessoas têm ideologia e precisam saber decidir se o compromisso primeiro é com ela ou com o rigor profissional. No caso das ciências humanas, delimitar o exercício profissional pela medida do politicamente correto impede a produção de resultados. O sociólogo José de Souza Martins, por exemplo, é impedido diversas vezes de palestrar em faculdades. Estudantes militantes fazem protestos contra o que tem a dizer. Até algumas décadas atrás, ele era visto como alguém de esquerda. Ocorre que se recusa a entrar em um partido político, fazer militância ou poupar ídolos políticos de crítica.
É importante deixar claro o problema central das tais "teorias críticas": tudo é de mentirinha. Nas humanidades, a crítica é rever as teorias com que temos trabalhado à luz da sociedade onde estamos ou da evolução da sociedade. Isso implica reconhecer e aceitar a sociedade, não julgar moralmente. Nas ditas "teorias críticas", o "crítico" quer dizer antagonizar. "Se homens têm uma característica segundo a biologia, vou me opor. Se mulheres têm determinadas características, vou me opor também. Assim, teremos um mundo mais igualitário". É um raciocínio com a complexidade intelectual de uma canção do Dollynho.
Um documentário norueguês chamado Hjernevask, Lavagem Cerebral, confronta os grandes nomes das "teorias críticas" com a ciência. São 7 temas: igualdade de gênero, efeito parental, homossexualidade e heterossexualidade, violência, sexo, raça e a diferença entre inato e aprendido. As "teorias críticas" que geram políticas públicas não têm nenhuma relação com experiências empíricas ou fatos científicos em todos os temas.
Após o documentário, alguns centros nórdicos dedicados, por exemplo, a "Ideologia de Gênero", deixaram de ser financiados por governos da região. Professores universitários foram desmascarados ao afirmar que não tinham nenhum fato que corroborasse suas teorias, que eram só a própria imaginação em ação. É o mesmo que acontece com as teorias de domínio global, conspiração sionista, great reset, aliança internacional de pedófilos. Parte-se de um punhado de fatos reais para concluir uma relação imaginária entre eles e forma-se uma espécie de credo.
"No Brasil, a sociologia, de certo modo, parou na obra de Florestan Fernandes e de seus discípulos mais próximos. Mesmo aí, com a preocupante evidência de que a sociologia de Roger Bastide, de Florestan, de Fernando Henrique Cardoso, de Octavio Ianni, de Marialice Mencarini Foracchi raramente é citada e raramente entra nos cursos de formação dos novos cientistas. Em minha própria escola, num curso sobre relações raciais, a obra de Florestan não foi incluída na bibliografia, embora ele tenha se tornado um reconhecido sociólogo da questão racial. Gilberto Freyre não só saiu do horizonte , como é satanizado pelas novas gerações porque sua obra colide com o politicamente correto de certos grupos. Minha tese é que para sair do imobilismo, é importante voltar aos clássicos e reconstituir uma sociologia brasileira a partir dos clássicos, porque o Brasil mudou muito. Temos que nos redescobrir no retorno aos clássicos, sobretudo para rever aquilo que abandonamos", defende o sociólogo José de Souza Martins em entrevista à equipe da Unisinos.
Parece surreal, mas é verdade. A própria esquerda, devido ao politicamente correto e à militância identitária, tem demonizado alguns dos mais importantes intelectuais de esquerda da história do Brasil. Não é um problema ideológico, mas dos tempos em que vivemos. A ilusão humana de ser quem não é tornou-se cada vez mais palpável. Gostaria que Nelson Rodrigues voltasse à vida por um único dia para analisar a ala mais ruidosa da malta que se diz conservadora ou de "nova direita". É uma tentação viver fora da realidade, fingir estar acima da condição humana. Podemos desfrutar da ilusão, mas a vida sempre paga as consequências com altas doses de realidade.
Triângulo Mineiro investe na prospecção de talentos para impulsionar polo de inovação
Investimentos no Vale do Lítio estimulam economia da região mais pobre de Minas Gerais
Conheça o município paranaense que impulsiona a produção de mel no Brasil
Decisões de Toffoli sobre Odebrecht duram meses sem previsão de julgamento no STF