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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Borba Gato

Queimaram a estátua errada: Borba Gato viveu entre indígenas e matou colonizador

Estátua de Borba Gato incendiada em protestos no dia 24 de julho de 2021
Em ano pré-eleitoral, lacração e descolamento da realidade constroem perfis influentes na política. (Foto: Reprodução)

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A política brasileira pode ter muitos defeitos, mas será sempre líder mundial em esculhambação. Inventaram um protesto contra o assassinato dos indígenas promovido pelos colonialistas. Daí foram lá e queimaram a estátua do único bandeirante que matou um representante da coroa portuguesa e viveu entre os índios. Parabéns aos envolvidos.

Estamos em ano pré-eleitoral. Ações que viralizem nas redes sociais, como ataques em enxame via internet ou episódios de explosão violenta na vida real, serão cada vez mais comuns. Mas não custa ter um mínimo de coerência. Dá impressão que, se fizer alguma coisa direito, o militante radical morre.

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Há uma parte da nossa esquerda, a que milita basicamente no universo simbólico e nas redes sociais, que já foi chamada de esquerda gourmet. Eu prefiro chamar de esquerda "xi, marquinho", em homenagem ao antigo programa da Rádio 89 FM de São Paulo em que o personagem Marquinho copiava tudo o que acontecia nos Estados Unidos.

O Black Lives Matter começou a derrubar estátuas de escravagistas nos protestos. Foi copiado por movimentos semelhantes em todo o mundo. No Reino Unido, 84% dos negros diziam ser contra este tipo de protesto. Dane-se, a esquerda "xi, marquinho" precisa copiar tudo o que vem dos Estados Unidos. Daí vão lá e queimam a estátua errada. Jornalistas e intelectuais apóiam sem saber quem é a pessoa retratada na estátua. Nosso fundo do poço sempre tem um subsolo.

Os fatos não importam mais no debate político, o que conta é defender integralmente tudo o que o grupo faça. No caso da estátua do Borba Gato, isso inclui passar muita vergonha em público, assumir a própria ignorância sobre o mais básico da história do Brasil. Dane-se. Vivemos a economia do ultraje, onde a relevância social depende do ultraje de um lado e do justiçamento de outro.

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Eu vi o vídeo em que gritavam que Borba Gato era fascista. Nem sabia que tinha vidente certificado na história brasileira. Um sujeito que viveu no século XVIII conseguiu prever e seguir uma doutrina que seria criada duzentos anos depois. Um colega jornalista investigativo que publica na imprensa mainstream discorda publicamente. Agora vai!

A biografia de Borba Gato, que a intelectualidade de esquerda afirma ser colonialista, escravagista e assassino de indígenas, está detalhada nesta reportagem do Jones Rossi. Ele é o único bandeirante que assassinou um emissário da coroa, Castelo Branco. Também é o único que viveu foragido 18 anos como indígena, na tribo dos Botocudos, tratado como cacique. Vivemos um debate político em que fatos e coerência pouco importam.

Qual é o sentido de queimar a estátua do bandeirante anticolonialista, que matou um emissário da coroa, montava esquemas para que brasileiros não pagassem impostos e vivia como indígena? Não vou aqui nem entrar no mérito do racismo ao inferir que indígenas eram café-com-leite social massacrado pelos inteligentíssimos portugueses.

Só o racismo justifica a simplificação dos bandeirantes em assassinos de indígenas. Diz isso quem pouco se importa com fatos mas considera que sua identidade social depende de ver o mundo pelo prisma identitário. Segundo este prisma, todos os indígenas brasileiros vivem pacificamente, num mundo idílico e infantilizado, destruído pelos portugueses.

A única origem simplificação grosseira de que bandeirantes massacravam indígenas é o racismo. Duvido que alguém confessasse publicamente ser tão burro e desinformado. A personalidade mais destacada na colonização paulista é o cacique Tibiriçá, de origem Tupi, que converteu-se ao cristianismo, passou a chamar-se Martim Afonso e submeteu os portugueses à sua liderança. Os bandeirantes são os descendentes dele e da mulher, Potira, também indígena Tupi.

A lacração precisa dividir o mundo em raças, então pretende recontar a história do Brasil colocando de um lado indígenas oprimidos e do outro brancos opressores. Parece enredo de filme para criança de 5 anos de idade, aquela fase em que ainda se desconhece a complexidade da vida e da alma humana.

Ontem, o colega Raphael Tsavkko Garcia chamou minha atenção para uma postagem muito interessante falando da história de São Paulo e da importância dos Tupis. A liderança que parte do cacique Tibiriçá, apagado da história pelos lacradores, é fundamental para uma aliança blindando São Paulo da sanha tributária da coroa portuguesa.

Os filhos do líder indígena que submeteu os brancos casaram-se com representantes da coroa portuguesa, uma aliança para garantir os interesses de ambos os grupos. Os Tupis ajudavam a resguardar São Paulo da cobrança de impostos pela coroa. Os portugueses ajudavam os Tupis a derrotar tribos adversárias. E houve bandeirantes que fizeram coisas inomináveis com indígenas, por estratégia e por puro sadismo.

Meu seguidor José Barbosa indicou, pelo Twitter, um vídeo sensacional do professor Eduardo Bueno, do canal Buenas Ideias, falando há um ano sobre a ideia de derrubar a estátua do Borba Gato. Ideia de jerico literalmente. Ele é um dos únicos que se insurgiu contra a colonização cometendo um assassinato e acabou premiado no final, foi perdoado e virou desembargador.

Borba Gato ia atrás de pedras preciosas, principalmente esmeraldas. A coroa portuguesa mandou um representante, Castelo Branco, atrás dele. Atenção intelectualidade do Brasil, não é o general da ditadura, que não era nascido no século XVII. Borba Gato assassina Castelo Branco e foge para viver numa tribo que não é Tupi, sendo aceito praticamente como cacique. A lacração quer recontar nossa históri, à moda dos regimes mais nefastos que o mundo já viu?

Dois perfis criados à sombra da queima da estátua de Borba Gato já têm quase 100 mil seguidores. Parabéns a eles. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome. Os otários, no caso, são os que já têm voz no mainstream e estão descolados da realidade, completamente rendidos à lógica das redes e à economia do ultraje. Sem eles, seria impossível um ato tão esculhambado ganhar importância na mídia.

Eu vi professores universitários, intelectuais, parlamentares e jornalistas chamando Borba Gato de fascista e assassino de indígenas. Pessoas informadas precisam entender que podem ser emocionalmente manipuladas pela dinâmica das redes sociais, estão cedendo à manipulação e criando uma realidade paralela em que vence o mais violento. É preciso defender a queima da estátua para se opor ao grupo que defendeu a estátua, tudo gira nessa dinâmica.

A identidade social de muitas pessoas já se define pela oposição sistemática ao grupo contrário. Esse tipo de postagem tem 67% mais chances de viralizar do que qualquer outro, então gera mais likes e engajamento, o que dispara dopamina, vicia. Quando as mentes pensantes de um país recusam-se a entender um fenômeno e rendem-se à manipulação, deixam de ser mentes pensantes.

A esquerda organizou passeatas contra Bolsonaro em todo o país. Não poderia haver timing mais perfeito para um pequeno grupo violento roubar a cena. Conseguiram ofuscar todas as lideranças de esquerda e ganhar o apoio delas no mesmo momento. Aprenderam a lógica de grupo que intelectuais, políticos e jornalistas recusam-se a aprender. Da minha parte, agradeço sempre que não tenhamos instalado mata-burros por aí. Seria um banho de sangue.

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