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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Quem sabe se defender melhor, o coronavírus ou o brasileiro?

Vista da área reservada para víticas da Covid-19 no cemitério de Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, no dia 5 de janeiro de 2021
Vista da área reservada para víticas da Covid-19 no cemitério de Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, no dia 5 de janeiro de 2021 (Foto: MICHAEL DANTAS /AFP)

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Não conheço ninguém que tenha conseguido digerir a situação dantesca que vive hoje o povo de Manaus. São vidas humanas tratadas como se fossem um pano de chão. Avião não cai sozinho. É necessário um acúmulo gigantesco de ações erradas e omissões malandras para que se chegue ao inferno que vive a população do Amazonas hoje. Imagine a experiência de testemunhar alguém que você ama sufocando até a morte e saber que isso poderia ser evitado. É esse peso que hoje está no coração de diversas famílias brasileiras, uma tristeza infinita.

O coronavírus deu um jeito de se defender da ação humana, mutou. A nova variante consegue driblar mecanismos que estávamos utilizando para conter o vírus. E nós, brasileiros? Como estamos nos defendendo? Aparentemente, com menos inteligência do que um vírus.

Nossa capacidade de nos organizar e decidir o que é melhor para nós mesmos nunca foi posta à prova de maneira tão cruel. A reação de muitos diante das cenas dantescas e injustificáveis esfrega na nossa cara o óbvio: não sabemos nos governar. Autoridades jogam a culpa no colo das outras como se fosse uma batata quente. Tem trouxa que acredita, sai defendendo os atores que engendraram essa situação macabra. Não há inocente nessa história.

O preço de ter menos capacidade de autopreservação do que um vírus é alto e estamos pagando. A mutação brasileira do vírus foi descoberta pelo governo do Japão. É o exemplo mais bem acabado do nível de esculhambação e descaso que permitimos ser conduzido. Não há justificativa possível para um governo do outro lado do mundo detectar antes algo que se passa aqui diante do nariz de presidente, governadores e prefeitos. E nós os elegemos, não se esqueçam jamais disso.

Pouco importa quem é seu político de estimação, se você é de direita ou de esquerda e o que fez até agora. O conjunto das nossas ações como sociedade brasileira produziu um sistema incapaz de usar o que já existe no mundo para proteger vidas. Continuar com as mesmas ações esperando resultados diferentes vai gerar mais mortes. Quantos estão dispostos a mutar e tentar se salvar, como fez o coronavírus?

Não há como derrotar o vírus sem união, mas nós insistimos em ficar brincando de polarização na internet e dando voz a imbecis que incomodam nossos inimigos. A prioridade do brasileiro não tem sido se preservar, mas encher a paciência de quem lhe enche a paciência. A lógica de que o inimigo do meu inimigo é amigo corre solta. E é assim que se perde a batalha contra a natureza. A missão fundamental de cada espécie é se preservar e multiplicar. A do brasileiro é destruir quem lhe incomoda. Desse jeito chegamos aqui e, não contentes, continuamos.

Recebi uma tonelada de mensagens mostrando corrupção na prefeitura de Manaus e no Estado do Amazonas. Recebi uma tonelada de chamadas para o panelaço contra o presidente da República. Bolsonaristas tratam o presidente da República como se fosse uma criança de 5 anos sem obrigação nem de fazer a própria lição de casa. Antibolsonaristas vivem como se tivessem superioridade moral sobre os demais e tentam demonstrar isso cancelando todo mundo. Continuar assim vai ter outro resultado? Não. Nós incentivamos autoridades a constituir um sistema que nos mata e precisamos parar com isso urgentemente.

Humanos têm a seu favor a ciência e a experiência para estudar e derrotar vírus. Isso dá certo porque já derrotamos vários. Não há caso registrado de derrota de epidemias sem liderança do governo nacional. Se o vírus for mais organizado que as pessoas, ele ganha das pessoas. É isso o que estamos testemunhando. Pesquise em outros países como é a condução do combate a uma epidemia, como foi no Brasil nos últimos 100 anos. O barulho generalizado nas redes sociais e nosso vício insuperável de confiar em vagabundo nos fez regredir.

O governo federal nunca teve um plano nacional de combate à pandemia, estava mais ocupado fazendo política e agradando sua base. Governadores e Congresso, em vez de levar a ferro e fogo a incúria diante de uma calamidade, optaram por fazer política. Soluções locais foram feitas às pressas, cada um olhando o próprio umbigo. Já vimos como termina, mas insistimos nisso.

Obviamente o cidadão brasileiro está mais preocupado em defender seu político de estimação do que a si próprio. Todas as vezes em que eu bati na tecla de que não há um plano nacional me apareceu meia dúzia de gaiato dizendo que há. Essa informação não é minha, é do próprio governo federal. O governo federal disse, por escrito, que nunca fez nenhum plano de enfrentamento da pandemia. Veja abaixo:

Resposta da Controladoria-Geral da União ao cidadão Hélio Rodak, publicada pela jornalista Tatiana Dias

Adivinhem quem foi lá chamar o governo a cumprir seus deveres ou assumir por escrito, como manda a lei, a própria omissão. Um deputado? Um senador? Um governador? Essa gente toda que nós elegemos? Não, um cidadão comum, senhor Hélio Rodak. Ficou meses insistindo judicialmente pela resposta e pedindo para ver o plano. No final, o governo admitiu que ele nunca foi feito. Ele mandou a publicação para a jornalista Tatiana Dias, que fez a reportagem.

Mesmo diante disso, há quem ainda esteja mais preocupado em defender político do que em preservar a própria vida. O coronavírus agradece. Apontam para os ministros do Supremo Tribunal Federal como responsáveis por tirar a autoridade do presidente para agir. É uma das mentiras mais bem contadas da pandemia.

O presidente nunca teve nem plano de ação. Governadores, o Congresso e prefeitos, em vez de olhar para a preservação da vida e usar os instrumentos que têm para denunciar a incúria e fazer com que um plano fosse apresentado, preferiram preservar o próprio capital político. Saíram tomando decisões locais, implementando políticas locais, de forma descoordenada. O governo federal foi ao STF tentar impedir que o fizessem, mas fora tuíte e live na internet não havia um plano concreto. Na falta do ótimo, ficou o bom. A alternativa era o nada.

Enquanto isso, milhões de pessoas confiaram em gente que nunca viu um tubo de ensaio mas vomita diariamente regras sobre imunidade de rebanho, máscara, vacina, lockdown. Não importa o que você pensa sobre isso, autopreservação é só levar a sério quem sabe do que está falando. Essas pessoas não são as que dizem o que queremos, que precisamos de liberdade, que há remédios para tratamento precoce de coronavírus. Eu adoraria que isso tivesse algum fundamento, meu sonho, aliás. Como prefiro continuar viva, fui atrás de quem sabe o que está falando e tento me fortalecer para enfrentar a realidade.

As últimas eleições mostraram que a prioridade do brasileiro não é sobreviver nem progredir, é destruir o brasileiro que lhe enche a paciência. O ponto central de uma candidatura não é o que aquela pessoa vai fazer por você no cargo, é como o discurso dela mostra que você está certo e irrita os seus inimigos. Até o coronavírus é mais inteligente que isso, precisamos evoluir.

A prioridade da oposição ao governo federal, a cada governador e a cada prefeito tem sido qual? Verifique na sua cidade, mas faço aposta: bradar aos quatro ventos que está certa e apontar o dedo para quem confiou no governante eleito. Esses que confiaram serão expostos nas redes sociais e apontados como responsáveis por tudo isso que está aí. Trata-se de um belo trabalho da arrogância a favor do vírus. Todo comportamento que divide em vez de unir é ponto para o coronavírus. Ridicularizar quem acordou agora e quer agir certo é ponto para o coronavírus.

Cada um de nós acha que fez tudo certo e que o outro está errado. É natural, somos humanos. Tem feito sucesso na pandemia a listagem de ações positivas de diversas autoridades. É óbvio que elas também existem, mas o conjunto da obra é mortal para humanos e acolhedor para o vírus. A forma como cada um de nós se comportou até agora só tem um resultado: vitória do coronavírus. Temos mais inteligência e instrumentos do que um vírus tem para nos organizar. Vamos dar o braço a torcer ou aceitar a derrota? A decisão depende de cada um de nós. Espero que sejamos mais espertos que o coronavírus.

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