É de cortar o coração a história do suicídio de Lucas, filho de 16 anos da estrela do forró Walkyria Santos. Não é o primeiro, não é o único e infelizmente não será o último. Plataformas de redes sociais não só toleram, incentivam ataques em enxame. A multidão traz à tona o pior do ser humano e derruba todas as barreiras morais. Não sei quanto sangue precisa derramar para que as pessoas acordem.
Ah, mas na minha época a gente era xingado e não acontecia nada disso. Também já pensei assim por ignorância, não entendia o funcionamento das redes sociais. Não é o conteúdo, é o contexto. Todos estamos expostos a críticas, brigas, xingamentos. Mas estamos diante de uma dinâmica diferente onde é possível em segundos reunir uma multidão ensandecida contra uma única pessoa isso tem consequências na vida real.
Crianças e adolescentes são nativos digitais. A situação de um deles ao sofrer ataque em enxame nas redes pode se comparar àquelas que levavam famílias a mudar de cidade depois que algum filho caía na boca do povo. Só que não tem como fugir da cidade agora, a cidade é o mundo. O falatório tem vídeos, tem prints, tem falsificações, piadinhas, é eternamente presente.
Muitos adultos já tiveram essa experiência. Alguém discorda ou distorce algo que você disse e rapidamente surge um novo esporte olímpico que é como esculhambar mais você. No meu caso, já escalou até para montagem de filme pornô, campanha pela minha demissão e ameaça de morte contra o meu filho. Não é só uma crítica ou só um xingamento quando alguém engrossa a massa da multidão sedenta de sangue.
Há adultos que se matam por causa disso, realmente os ataques em enxame inviabilizam a vida do alvo até quando ninguém acredita na história. A maioria sabe que os ataques são movidos a mentiras mas não pode estender a mão a quem foi atacado. Onde aquela pessoa aparecer aquela história de baixaria aparecerá junto. Além disso, quem defende ou não ataca pode tornar-se a próxima vítima.
As plataformas alegam não ter responsabilidade sobre o conteúdo. Seria assim se elas não os editassem (por algoritmos e com intervenção humana), distribuíssem e lucrassem ativamente com eles. Um post atacando uma pessoa ou grupo rival tem 67% mais chance de viralizar do que qualquer outro conteúdo. É uma decisão empresarial programar o sistema para promover isso. As plataformas ganham muito mais com o conteúdo do que quem o produz. Antivacinas em 2020 lucraram US$ 36 milhões e o conteúdo rendeu US$ 1,1 bilhão às plataformas.
A imprensa e as autoridades brasileiras ainda estão na idade da pedra do entendimento deste fenômeno. Tem gente que ainda acredita em liberdade de expressão nas redes ou rivalização entre redes e jornalismo. Outros saem por aí pregando derrubada de post pelas plataformas mesmo depois que o Conselho de Direitos Humanos da ONU emitiu um comunicado dizendo que este drible nas instituções é violação de Direitos Humanos.
Nessa área, estamos na vanguarda do atraso e com aquela arrogância que impede de ver um palmo adiante do nariz. As plataformas deitam e rolam. Enquanto houver otário, malandro não morre de fome. Especialistas e formadores de opinião brasileiro acreditam em fazer denúncia para as plataformas como meio eficiente de reduzir danos. Elas têm inteligência artificial para detectar em tempo real ataques em enxame, só não usam. Além disso, quando confrontadas, chegam a pagar advogado para defender anônimos que promovem esse tipo de baixaria.
Muita gente me diz que não aguenta mais confusão e por isso não tem rede social. Já funcionou. Hoje em dia, as pessoas sofrem as consequências do que ocorre nas redes mesmo que não tenham perfil em nenhuma delas. Quer um exemplo. Vou contar o caso das eleições em Trinidad e Tobago, descoberto pelo documentário Privacidade Hackeada, de 2019. Ano que vem tem eleição aqui.
A tal Cambridge Analytica, de Steve Bannon, operava com desinformação como warfare. Ele tem carreira militar longa, treinamento para isso e entregou resultados no mundo todo, não só para Trump e no Brexit. Entendendo essa campanha no Caribe vai ficar mais claro como a manipulação é sutil e as consequências na vida real, sobretudo dos jovens, já estão aí.
Trinidad e Tobago é um país cuja população é composta por caribenhos e indianos, resultado da colonização. Vez ou outra esses grupos têm rivalidades políticas e políticos que os representam. Em 2018, a candidata de etnia hindu estava atrás nas pesquisas e contratou a Cambridge Analytica. Coletando dados via Facebook, eles traçaram uma estratégia para manipular o público que parecia menos convicto, os jovens.
Foi lançada nas redes, como se fosse espontânea, uma campanha com uma coreografia típica pregando não votar como protesto contra a corrupção. Influencers aderiram, famosos aderiram, virou pop, chegou na imprensa como se fosse um movimento legítimo e natural. De repente, todo jovem de Trinidad e Tobago postava sua coreografia para aderir ao movimento. E como a candidata hindu seria beneficiada?
Aí é que entra a desinformação como warfare. A Cambridge Analytica verificou que os jovens caribenhos são autônomos enquanto os hindus obedecem os pais cegamente, mesmo que banquem os rebeldes para os amigos. Todo mundo aderiu ao protesto de não votar. No dia das eleições, os caribenhos não votaram. Os hindus obedeceram os pais e votaram na candidata hindu. Ela ganhou. Na internet não adianta analisar conteúdo, é preciso analisar contexto.
Ontem, o WhatsApp anunciou uma nova funcionalidade. Agora, todos poderão mandar mensagens em vídeo e foto que podem ser vistos uma única vez e desaparecem. Românticos imaginarão que é para mandar imagens ardentes em segurança. Não serve para isso, porque o receptor pode dar um print e terá a foto. Mas imagine uma campanha de desinformação que você não consegue rastrear nem provar que existiu? É a receita perfeita para um banho de sangue.
Avalie se esses vídeos de coreografia de Trinidad e Tobago tivessem sido todos apagados das redes imediatamente após a primeira exibição. Sabendo usar as redes, é o pulo do gato para que esquemas de desinformação consigam fugir das novas regulamentações e tecnologias para registro de provas.
Pense no caso de um bando resolver atacar um adolescente. O alvo geralmente pouco importa, na lógica dos ataques de massas ensandecidas, o que importa é satisfazer a sede de sangue e a competição de radicalismo. Mesmo sendo possível coletar e registrar as provas, a responsabilidade já é diluída. Ninguém fez aquilo sozinho e todo mundo estava fazendo. Imagine se as provas sumirem automaticamente.
Existe ainda a interação Tik Tok - a plataforma onde o filho de Walkyria Santos postava e o WhatsApp. Com um único toque, você manda vídeos que estão no Tik Tok para qualquer conta ou grupo de WhatsApp. Não é o link, é o vídeo em si. Agora vai poder mandar com autodestruição. Pode mandar um vídeo e uma foto pedindo para que se juntem ao ataque e ela se destrói sozinha, some.
Esses são os perigos que eu consigo avaliar porque é minha área de atuação. Mas pense se eu atuasse em outro ramo, como sequestro, sequestro relâmpago, golpes pela internet, tráfico de drogas ou matador de aluguel. Se hoje em dia, o Facebook preserva os dados desses anjinhos mesmo diante de pedidos do STF, avalie se não tiver mais como provar que as mensagens existiram mesmo.
Coincidentemente, na mesma data em que lança a nova ferramenta de destruição de provas, o Facebook suspendeu sem aviso prévio o acesso a dados da plataforma que era dado à equipe do grupo de Cybersegurança pela Democracia da NYU. Eles usavam a plataforma para detectar falhas no sistema, contribuição do algoritmo para desinformação e impulsionamento de propaganda política irregular. Todo o trabalho sumiu.
Eu não tenho dúvidas de que a internet está aí para nos trazer possibilidades de desenvolvimento e abundância com as quais a minha geração nem sonhava. Mas grandes poderes trazem grandes responsabilidades, como diz o filósofo que é tio do Homem Aranha. Estamos diante de sistemas poderosos que podem melhorar ou piorar a vida de cada um e de todos, nossas instituições, a transparência e a forma de governo preferida de cada povo. Temos de aprender a usá-los em vez de ser usados.
Redes sociais têm posturas diferentes em diferentes lugares do mundo a depender dos limites que são dados. Na Alemanha, por exemplo, não se pode derrubar post de usuário sem explicar por que, qual reclamação foi feita, quem analisou. Hoje, o YouTube derrubou o canal do Space Today, um site super sério de divulgação científica. O influencer perdeu o trabalho de anos e será afetado em sua vida prática sem nem imaginar as razões.
O judiciário tem imposto penas financeiras às plataformas diante de casos de flagrante injustiça, mas aí tem dois problemas. O primeiro é que o valor mais alto de indenização não faz nem cócegas numa empresa dessas. O outro é que não repara o dano que causa numa pessoa que perde sua produção intelectual, que é seu trabalho, sem aviso prévio nem justificativa.
Ninguém nasce com limites, eles são dados pela família e pela sociedade. Com o nosso bebê redes sociais ficamos apaixonadíssimos à primeira vista e deixamos fazer tudo o que queria. Nunca ouviam um não, qualquer bobagem que faziam era genialidade, se desgraçavam a vida do coleguinha não era por mal, prometiam mudar e não mudavam nunca, mas o problema não era delas, era das más companhias ou de quem não as compreendia. Agora elas estão na adolescência, ou nós impomos a elas o limite ou elas é que vão impor a todos nós.
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