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Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Vacina x HIV

Redes sociais x Bolsonaro: enquanto houver otário, malandro não morre de fome

Imagem de Bolsonaro, da última quinta-feira (21), retirada do ar por Facebook e Instagram. (Foto: Reprodução)

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Arrogância é bicho que come o dono. O bolsonarismo, desde que se fundiu a outras correntes políticas, é um 7 x 1 diário nas redes e na imprensa. Vence sem fazer esforço a oposição e a mídia tradicional, que dedicam-se a repetir diariamente um ritual em que trabalham na campanha de Jair Bolsonaro a qualquer coisa. O homem é servo do amor e escravo do ódio. A seita antibolsonaro já é mais cega e menos estratégica do que paquitas de político. Repito isso há 6 anos, desde 2015.

Estamos na vanguarda do atraso quando o assunto é desinformação por meios digitais e participação das Big Techs. As instituições e o tecido social não são esgarçados porque nossos políticos sejam gênios, mas por falta de calçar as sandálias da humildade. Eu sei bem porque já padeci desse mal e quebrei a cara. Pelo jeito, será preciso quebrar o país todo até parar de insistir nessa ideia delirante de Ministério da Verdade e controle de conteúdo por redes sociais.

Eu vi o vídeo em que nosso ilustre presidento fala mais uma vez um disparate, como faz desde a década de 1980, ora incensado e ora enxovalhado pela imprensa. Quando queria fazer passeata salarial de militar, explodir quartel e fuzilar Fernando Henrique, era um gênio revolucionário. (Caso não lembre dessas passagens, ouça aqui.) O poder muda de mãos, ele continua falando as mesmas coisas e vira uma espécie de mistura entre reencarnação do mal e estrela do SuperPop.

A ascensão de Jair Bolsonaro é um fenômeno complexo, nem sei se é possível analisar sem distanciamento histórico. Mas é fato que muita gente se sente representada por ele mesmo na discordância e não se sente representada por outros políticos. Uma característica marcante vem à tona no episódio vacina x HIV: ele aprendeu a usar de forma estratégica o fato de ser sistematicamente subestimado pela elite política e intelectual.

Eu poderia dizer a você que a live fazendo um imbroglio entre informações verdadeiras e teorias conspiratórias sobre vacinas e HIV é uma jogada de mestre. Seria tudo um esquema sofisticadíssimo de Propaganda Amplificada em que o debate público é sempre dominado por discussões em torno do absurdo. Mas o fato é que eu não sei as razões, só vejo o que acontece. Planejado ou não, o esquema de desinformação via Propaganda Amplificada domina sistematicamente a mídia e a oposição.

Acreditar na necessidade de desmentir sistematicamente todas as falas de Jair Bolsonaro é subestimar as pessoas, achar que todo mundo é trouxa. Nem os apoiadores mais aguerridos levam a ferro e fogo o que o presidente fala. Durante a campanha vimos inúmeros episódios em que os próprios apoiadores diziam que tal fala era só para internet ou só para chamar a atenção. Não vou me meter a julgar se é certo e errado. Quem acha que pode beatificar político que se meta.

Há uma confusão de papéis entre fazer oposição e cobrar o governo. Políticos fazem oposição a políticos. Comunicadores cobram governos, apuram fatos e emitem a própria opinião. Vivemos uma revolução com realidade digital e há uma confusão de papéis. Os que dominam melhor este universo ganham mais poder. Por enquanto, não há dúvida de que são os políticos e as Big Techs, não o povo nem os jornalistas.

O debate esquizofrênico

Eu vi muita gente importante postando frases de efeito, memes e charges dizendo que agora chegou o limite. Dizer que vacinas causam infecção por HIV seria romper todas as barreiras. Daí a discussão começa a derivar para qual seria a fonte da informação. Obviamente as redes sociais turbinam tudo isso porque gera engajamento.

A curadoria manual do Twitter está fazendo um curioso "desmentido" sobre o caso, mais um desdobramento do detalhe do detalhe do detalhe. Em algum momento, teria sido citada como fonte do presidente na live uma reportagem da revista Exame. Daí foram lá ver se a reportagem era mesmo a fonte. E fizeram uma postagem enorme mostrando que aquela reportagem não era a fonte.

No final do artigo, trago para vocês o que existe de real nessa discussão. E você vai entender como as redes sociais se aproveitam do nosso desconhecimento sobre o funcionamento dos algoritmos para pautar a imprensa. Reparem que o resumo do Twitter é puro suco de jornalismo declaratório, algo que tornou-se um vício na imprensa, muito explorado pelo presidente para não sair das manchetes. Fulano disse isso, foi desmentido por sicrano, beltrano citou tal coisa. Por aí vai. Mas jamais encerra o assunto ou responde: existe algo relacionando vacina e HIV? O que seria exatamente? Não responder engaja.

Entre as reações, vemos o mais legítimo suco de terceiromundismo e capachismo, a comemoração da derrubada de postagens do presidente da República por Big Techs. No primeiro semestre deste ano, o Conselho de Direitos Humanos da ONU declarou que tudo envolvido nesse processo é violação de Direitos Humanos. Começa em não ter clareza sobre o que pode ou não ser postado até delegar essa decisão a conglomerados empresariais. Mas não importa, é contra Bolsonaro. Hoje é. Amanhã é contra quem?

Traduzo: "Leis sobre conteúdo online comprometem os Direitos Humanos com problemas semelhantes:
- Definição vaga sobre conteúdo ilegal ou perigoso
- Regulação terceirizada para empresas
- Ênfase excessiva em derrubada de posts e prazos irreais
- Falta de supervisão judicial sobre remoção de conteúdo
- Excesso de confiança em inteligência artificial"

Vemos uma infinidade de pessoas supostamente informadas comemorando a derrubada dos vídeos do presidente da República e a proibição de postagens pelo canal dele no YouTube por sete dias. Estão, segundo a ONU, comemorando uma violação de Direitos Humanos. E eu pergunto: se isso ocorre com o presidente, o que pode acontecer com você? Conto um caso meu com o YouTube.

Em 2018, quando meu canal pessoal estava no auge do crescimento, recebi um banimento de postagem de lives por 3 meses a pedido do UOL. Não sei se foi automático ou se alguém pediu aquilo. O motivo era o uso de um vídeo cujos direitos autorais seriam da empresa, 30 segundos inseridos em um debate de uma hora que eu armazenava como vídeo privado. Recorri. Não houve jeito. Minhas visualizações caíram depois disso para menos de 10% do que alcançavam. Cerca de 70% das visualizações são impulsionadas pelo algoritmo do YouTube, no meu caso passaram a ser entre 10% e 15%.

Desde então, sistematicamente me falam que não recebem notificações dos meus conteúdos. Tem gente que me pede os links de Cidadania Digital por whatsapp. Saber mesmo o que acontece eu não sei, nunca tive uma explicação e já perguntei diversas vezes ao YouTube por que o algoritmo parou de distribuir meus vídeos desde esse episódio do banimento. Concordo que talvez não fosse certo usar sem pedir um vídeo que realmente era de propriedade do UOL para um piloto mantido privado. Mas seria esse o rigor com outros conteúdos que violam regras?

No mesmo ano de 2018, um canal apresentado por anônimos mascarados fez um vídeo de 39 minutos com xingamentos explícitos, difamação e ameaças veladas contra mim. Como a audiência deles era de pessoas bastante problemáticas que começaram a me procurar e sabiam meu endereço, entrei na Justiça. O YouTube derrubou o canal como derrubou o meu por direitos autorais? Claro que não. Contratou um advogado para defender o canal e manteve a monetização sobre o vídeo que tem conteúdo cujos direitos autorais são meus. Dá para confiar nos critérios do YouTube?

Eu fiz um artigo inteiro contando a saga do processo. No final, descobri quem eram os mascarados. Um deles, recentemente, ganhou entrevista na Folha de São Paulo. O vídeo continua sendo monetizado no YouTube, que alegou judicialmente não saber quem são os responsáveis pelo canal. Suponho que o dinheiro da monetização seja jogado mensalmente pela janela do prédio do Google e o primeiro mascarado que aparecer pega e leva embora. De repente, só o meu canal que pede confirmação de CPF e conta bancária para depositar monetização. Por isso o Tribunal de Justiça de São Paulo deu razão ao YouTube no caso.

Justamente ontem houve mais um escândalo que derrubou ações do Facebook, um novo vazamento de documentos vindos do departamento de integridade da empresa. Estão perdendo os usuários jovens e numa luta sem limites para mantê-los na plataforma. Alguns dos recursos foram sinalizados como perigosos para a saúde mental e radicalização, mas a empresa escolheu ignorar. Sem os usuários mais novos, a empresa deixa de existir e, com ela, milhares de outras são prejudicadas.

O Congresso dos Estados Unidos começou a ouvir todas as outras redes sociais: Tik Tok, Snapchat e YouTube vão depor também. A intenção não é criminalizar nada, é resolver. As redes sociais são um avanço, são necessárias mas acabarão corroendo as democracias caso fiquem sozinhas para resolver problemas não previstos trazidos pelos algoritmos. O Parlamento Europeu começou ontem a investigação com base na delação do Facebook. A intenção é entender como equilibrar o setor, um gigante com crescimento inesperado e rapidíssimo.

As redes sociais mexem com a psique humana e a lógica da formação da identidade social e de grupos muito mais do que se imaginou num primeiro momento. Já estão em simbiose com a indústria da comunicação, que bebe das redes, distribui conteúdo por ela e viciou-se em jornalismo declaratório. Enquanto o mundo civilizado tenta equacionar a questão, a elite da nossa republiqueta comemora derrubada de vídeo por Big Techs. A gente merece.

Vacina x HIV x Bolsonaro

A vanguarda do atraso ainda propaga aos 4 cantos que Fake News e Desinformação são mentiras. Prá quê ciência, né? Vamos inventar isso, brincar de Ministério da Verdade e tudo bem. Bolsonaro falou a verdade na live? Se você ainda está atrás de político que fala a verdade em transmissão bombástica de rede social, volte duas casas. Para repercutir desse jeito é necessariamente jogo de cena, venha de quem vier. Repare que o mundo político inteiro pega carona porque sabe o poder dessa máquina.

A máquina da desinformação vive da dissonância cognitiva e funciona para os dois lados. Onde há fumaça há fogo. Existe sim um fundamento para falar de vacinas - não as liberadas no Brasil pela ANVISA - e HIV. Não é o que Bolsonaro disse. Mas quem o desmentiu também mente ao dizer que essa relação inexiste. Quando a preocupação é desmentir o adversário, não se conta a história completa. Meia verdade é sempre uma mentira inteira. Cada um dirá que seu lado não estava 100% errado e que o outro mentiu.

Como recordar é viver, volto à Bancada da Sputnik. Alguém lembra daquele outro espetáculo midiático dizendo que a ANVISA estava barrando a compra da vacina russa Sputnik porque o governo é de direita e toma decisões ideológicas? Eu lembro bem. E fiz um texto na época mostrando o quanto era ridículo fazer uma hashtag #EuConfioNaRússia para falar de algo tão importante e delicado quanto liberar uma vacina experimental para milhões de brasileiros.

As paquitas da vacina Sputnik esqueceram o espetáculo porque agora o show continuou e já está com outro número no ar. Os cientistas não esqueceram porque eles realmente estão trabalhando para combater a pandemia, não para dar espetáculo em rede social. Apesar de toda a pressão e da propaganda russa que influenciou a elite política progressista, a ANVISA barrou a Sputnik. Depois, os próprios governadores que queriam a vacina compreenderam o risco e decidiram esperar, não compraram a vacina russa. É sobre ela a questão do HIV.

Você sabe que há várias tecnologias diferentes nas vacinas. A Coronavac é uma, a Pfizer é outra, a AstraZeneca é outra. Pois bem, a Sputnik e mais algumas no mundo são uma outra tecnologia diferente, a imunização por adenovírus, o Ad5. E como isso funciona exatamente? Bom, a gente não sabe direito nem o que é mitocôndria, então não adianta se meter a sommelier de vacina. Aqui tem de confiar em quem estuda e eu confiei no Rafael Larocca, imunologista, e na Luciana Feliciano, doutora em genética. Também troquei uma ideia com meus colegas da campanha que erradicou a pólio em Angola.

Não estamos falando do Brasil nem da nossa realidade, mas de outra bem diferente, África do Sul. Ali persiste a décadas uma taxa de infecção por HIV em nível de epidemia. Quem é jovem há mais tempo lembra de quando tivemos um pânico na cidade de Santos, litoral de São Paulo, devido ao número de infectados por HIV. É mais ou menos assim que eles vivem até hoje, não conseguiram baixar como nós baixamos.

Como o HIV suprime a imunidade para todas as outras doenças, virais ou bacterianas, os países onde há epidemia precisam sempre colocar essa questão em primeiro lugar. As vacinas feitas com adenovírus, que não foram liberadas no Brasil, foram liberadas em alguns países com altas taxas de HIV na África Subsaariana. Agora que a África do Sul, o mais desenvolvido, decidiu aguardar, outros devem ir na mesma direção. A Namíbia, por exemplo, tinha liberado e voltou atrás. É uma escolha dramática entre proteger contra a Covid ou contra o HIV.

Nenhuma vacina causa HIV. As vacinas que a ANVISA não liberou também não foram liberadas na África do Sul. Elas são feitas com adenovírus, que facilita a vida do HIV no nosso sistema imunológico. Sabe esses casos de gente que teve contato com o HIV mas nunca teve exame positivo? Ninguém sabe ao certo quantos são, mas seriam diminuídos porque o adenovírus facilita a entrada do HIV nas células em que ele se instala. Em pessoas já infectadas com HIV, poderia facilitar o desenvolvimento da doença. Isso é sabido desde 2007, há 14 anos.

O problema não é específico com a Covid ou com vacinas experimentais ou com essas vacinas específicas, é com essa tecnologia de vacinas, a que envolve adenovírus. Em regiões onde as taxas de HIV são altas - como, por exemplo, África do Sul, Tanzânia, Moçambique, Namíbia, Lesoto e Angola - há o risco de piorar essa epidemia introduzindo o adenovírus em circulação, mesmo que ele não cause a doença.

Sabe-se aproximadamente quantas são as pessoas infectadas por HIV que não desenvolveram a doença, a AIDS. Há também os que circulam infectados e assintomáticos, ainda sem saber da presença do vírus. Nesses, poderia haver uma piora do estado de saúde. Existe um outro grupo que ninguém ainda conseguiu quantificar, o de quem teve algum contato com o vírus e não se infectou. O adenovírus diminuiria muito essa possibilidade, já que facilita a entrada do vírus no corpo. Falamos de quantas infecções? Ninguém sabe.

E qual será a solução nesses países com altíssimas taxas de HIV? A que eles já deram e já foi noticiada, aplicar outras vacinas em vez da Sputnik. A África do Sul e a Namíbia têm acordos com outras marcas para vacinar e a maior parte das vacinas não utiliza essa tecnologia de adenovírus. Creio que essa é a informação que você queria, saber se essa história tem um fundo de verdade ou não, independentemente do que falaram sobre ela. Cumpro aqui meu papel de comunicadora, buscar a informação que você precisa e analisar o contexto. Se quiser ter adversário político um dia, buscarei uma candidatura.

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