Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Madeleine Lacsko

Madeleine Lacsko

Reflexões sobre princípios e cidadania

Pobres e Fáceis

Refugiadas ucranianas, Mamãe Falei e MBL: como o Brasil escolhe a quem dar poder

O deputado estadual Arthur do Val (Podemos-SP) (Foto: Reprodução/Instagram/arthurmoledoval)

Ouça este conteúdo

Infelizmente, precisamos admitir que o problema do deputado Arthur do Val não é ter dito o que disse nem se comportar dessa maneira, o problema é que vazou. Isso não minimiza o ocorrido, mas mostra que notas de repúdio e posts em rede social crucificando o deputado são insuficientes para atacar o problema. É enxugar gelo.

Ouvi muita gente falar de misoginia, machismo, desrespeito às mulheres. Não é o que me choca mais. Eu conheço o deputado há anos, embora tenhamos perdido o contato há pelo menos dois. O chocante é a incapacidade de chorar com quem chora, de reconhecer a dor do outro, de entender o próprio papel na qualidade de autoridade pública. Não é uma característica que surge com o poder, mas é espantoso que ela seja tão aceita nos círculos de poder do Brasil.

Eu, de certa forma, inventei o Mamãe Falei mainstream e ele é quem me ensinou a usar o YouTube, que seria meu ganha-pão nos anos seguintes. Achei divertido o moço de vinte e poucos anos perguntando em passeata quanto rende o FGTS, levei para um programa de alcance nacional numa grande emissora. Ele teria conseguido pela minha mão ou por outra, sempre entendeu perfeitamente como funciona a internet.

Diversas vezes, me aconselhou a arrumar uma briga com alguém para crescer meu canal. É tentador, confesso. Mas eu já tinha um patrimônio anterior de 25 anos de confiança do meu público, considerei um risco encenar uma treta que sairia facilmente de controle. Obviamente funcionou e continua funcionando para muita gente, mas é algo que se sustenta no curto e médio prazos. Eu ainda tenho muito boleto de criança para pagar e isso depende da minha credibilidade.

Tive duas grandes discussões com o deputado Arthur do Val, que não nos afastaram à época. Uma foi sobre a entrevista insensível que ele deu após o suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. À época, ele era investigado por corrupção, o MBL fez uma manifestação grande em Santa Catarina contra ele. Hoje sabemos que ele era inocente. À época, a preocupação do então ativista foi apenas se desvincular de culpa sobre o suicídio. Eu avaliava diferente: diante de uma morte trágica, precisamos pensar em quem fica. Pêsames ou silêncio seriam mais que suficientes.

A outra foi quando, antes de ser deputado, foi acusado de estupro num vídeo que produzia em Curitiba. Pretendia fazer um acordo assumindo culpa que dizia não ter para poder voltar mais rápido a São Paulo. Estava desesperado, precisaria pagar advogado, quase botou a honra a prêmio. No final, dessa vez aceitou o conselho que provavelmente não foi só meu.

Minha forma de agir e pensar é contraproducente, eu sei. Erro muito, mas tento pautar todos os meus atos pelos princípios cristãos que aprendi desde pequena. Todos os alertas que fiz a colegas liberais e conservadores sobre a valorização da vilania dentro do grupo foram considerados esquerdismo e mimimi. Estavam certos. Defender princípios te bota no cheque especial. Crueldade e sonseira te colocam no poder. É simples assim e todos nós fazemos parte dessa sociedade.

Eu fiquei chocada ao ver diversos colegas jornalistas repudiando o que disseram tanto Arthur do Val quanto Renan dos Santos. Não porque não merecesse repúdio. Mas porque falam e fazem bem pior. Tratar mulheres como um pedaço de carne é o prato do dia nas grandes redações de São Paulo. Esmigalhar quem não aceita ser tratada como menos que um ser humano é a sobremesa. Fazer com as cabeças dos outros a escada até o topo é um método largamente aceito. Trouxa é quem não faz.

Não é essa lógica nem esse meio que fazem homens feitos "caírem em tentação" ou que se deixem influenciar, é o oposto. A estrutura de poder que criamos automaticamente vai colocar no topo quem for cruel ou sonso. Óbvio que há exceções. Como dizia Nelson Rodrigues, confirmam a regra. Não vai ter nota de repúdio nem cassação que consertem isso. Nós é que precisamos também de conserto.

Vivemos a Economia da Atenção. Ser beligerante efetivamente leva ao poder quem usa bem as redes sociais. O grande ativo social é a atenção, para o bem e para o mal. De certa forma, a imprensa sensacionalista sempre operou nessa lógica, embora com uma dinâmica diferente das mídias digitais.

Outro dia conversei com o deputado Ricardo Mellão, do Novo de São Paulo. Fui colega de redação do pai dele, João Mellão. Tivemos como guia dos nossos primeiros passos a mesma pessoa, o jornalista Fernando Vieira de Mello. O deputado me lembrou um episódio ocorrido com o pai dele e que eu testemunhei ser repetido inúmeras vezes.

João Mellão havia feito no rádio um editorial inflamado, agressivo, diferente de seu estilo tradicional. Foi um sucesso. Não paravam as ligações de elogios dos ouvintes e amigos. Ele estava felicíssimo. O chefe, estranhamente, não. Explicou ao jornalista que, para viver de chamar a atenção, é necessário sempre subir o tom. "Isso vai terminar como? Com você ficando pelado no estúdio?", teria perguntado. Subir o tom tem limite, o da aceitação da sociedade.

Ocorre que a sociedade é muito mais conservadora do que as elites urbanas, o jornalismo e os círculos de poder. Não é em qualquer grupo de whatsapp que se pode falar livremente de oportunismo sexual em zona de guerra. É desumano, choca as pessoas. Mas há grupos em que só se cria quem tem comportamento egoísta e desumano. São aqueles aos quais temos dado poder político e status social. Precisamos parar de dar poder sobre os outros a quem é cruel ou sonso.

Na polarização tóxica que vivemos, existe uma lógica do "votar contra". As pessoas não escolhem candidatos a nada, vivem de seguir o que consideram mais eficiente para derrotar quem elas odeiam. Fiz um artigo na última sexta mostrando como, hoje em dia, essa polarização tóxica é o meio mais seguro e rápido de assassinato de democracias.

Estava relendo este final de semana um livro que sempre indico, "The Power of Us", do psicólogo social Jay Van Bavel. Ele usa a ciência para mostrar que a questão de identidade pode ser usada para nos unir, não para nos dividir, como faz o identitarismo. Explico a diferença entre identitarismo e militância identitária no vídeo abaixo. Eu já cometi o erro de achar que eram a mesma coisa, não são.

Todos nós temos identidades de grupo. Não podemos escolher muitas delas como, por exemplo, ser mulher, negro, homossexual. Mas podemos escolher o quanto nos sentimos representados por aquele sentimento de grupo em cada momento. Uma pessoa pode ser mulher, bissexual, negra, torcedora do Palmeiras e fã de Star Wars. Ao discutir com fãs de Star Trek, qual será a identidade preponderante?

Nós vestimos nossas identidades de pais, adeptos de tal religião, torcedores de tal time, identificados com tal doutrina política ao mesmo tempo. Em cada situação, no entanto, uma das identidades será mais importante que as demais. Corinthianos e Palmeirenses não são necessariamente inimigos. Podem estar juntos quando são, por exemplo, do grupo de fãs do Star Trek que odeia Star Wars. Já explico onde quero chegar.

A sociedade do espetáculo simplifica essa identidade de forma a reduzir seres humanos a um único grupo. A complexidade de uma pessoa pode ser carimbada como minoria oprimida tal, por exemplo. Ou a pessoa se define o tempo todo pelo posicionamento ideológico apenas. Aí mora o perigo. Quando essa distorção está presente, pensamos que o nosso grupo é inerentemente bom e o outro é inerentemente ruim. Perdemos aí a dimensão humana e do respeito mútuo.

Quem está do "OUTRO LADO" não precisa ter sua dignidade reconhecida. Esse conceito já está instalado na nossa sociedade. Você pode ver os comentários a esse tuíte. A maioria absoluta é de gente perguntando por que a deputada não pediu prestação de contas na viagem de Bolsonaro. O que incomoda mais? Efetivamente, a incoerência. Tratar mulher feito lixo e desumanizar não incomodam tanto, são justificáveis moralmente a depender do caso. E isso depois que tudo virou um escândalo, avaliem antes.

Criar um ambiente livre para tratar mulheres feito lixo pode solidificar um grupo pela manipulação do ressentimento. Aqui não falo de machismo, mas de desumanizar a mulher, ignorar sua condição humana. Na era das redes sociais, essa tática tornou-se um grande trunfo político. Atraídos pela possibilidade de vingar-se emocionalmente das próprias frustações, muitos passam a adotar qualquer discurso político que lhes seja apresentado. Fiz um artigo há tempos explicando isso em detalhe.

Foi esse também o tema do meu artigo no livro "Princesas de Maquiavel: por mais mulheres na política", organizado pela cientista política Juliana Fratini. "Jogar pedra na Geni é o esporte mais democrático da política" foi o título que usei. Ali, falo tecnicamente sobre como o desejo reprimido de dominar e humilhar mulheres vira um ativo político para quem sabe manipular as redes e a imprensa. Demos uma entrevista longa sobre o tema para a jornalista Luciana Liviero.

O que é mais importante: o que as pessoas falam ou como elas agem? Na sociedade do espetáculo, é o que falam. Você vai do céu ao inferno e vice-versa em um dia pelo que fala se conseguir chocar. O deputado caiu pela boca e arrastou o colega de MBL. Ao mesmo tempo, muita gente que trata mulher igual a lixo será vista como defensora das mulheres ou da dignidade pelo que fala diante do escândalo. Isso é dar poder aos sonsos e cruéis. Precisamos parar imediatamente.

A elite intelectual brasileira não tem respeito por mulher, mas agora encontrou um jeito de fingir que tem. Na sociedade polarizada, isso cola tanto! Já vi gente dizer que a imprensa brasileira é feminista. Digo, sem medo, que nas grandes redações de São Paulo, a regra é da humilhação sistemática e submissão da mulher. Os agressores cruéis são um punhado, os sonsos são uma multidão, inclusive mulheres. Daí fazem um evento e fingem que respeitam mulher. Não adianta enquanto o poder nas redações for dos que esculacham mulher e que deixam esculachar.

A imprensa ajuda a moldar o imaginário de um povo e o debate político. Não enfrentar situações gravíssimas dentro das redações e dar poder a quem promove ou cala diante delas respinga no noticiário. Lembram do tratamento dado à atriz Juliana Paes e à doutora Nise Yamaguchi? A imprensa tratou, na maior cara-de-pau, como críticas. As críticas não foram problemas, a tentativa de estigmatizar e simplificar as mulheres é que foram. Mas as duas coisas são equiparadas na imprensa.

Nós vivemos num país em que um deputado apalpou uma deputada no plenário, isso foi filmado e ele não perdeu o mandato. Aliás, não perdeu nem a mulher. Agora temos outro deputado, da mesma casa legislativa, falando de mulheres como se nem humanas fossem. Na verdade, naquele meio não são mesmo. Eu sei bem como se lida com esculacho e ameaça grave ali. Se você for mulher, é só crítica e você está reclamando porque é louca, desequilibrada, tem inveja e quer aparecer.

Essa mentalidade não se criou do dia para a noite nem esse pessoal todo caiu de paraquedas no poder político e de imprensa. Nós toleramos isso e confundimos chamar atenção com ter as qualidades de exercer poder sobre outros seres humanos. Pessoas cruéis e sonsas não podem ganhar poder. E nós temos ignorado os critérios mais básicos de escolha de quem manda na gente e molda a sociedade.

Muito provavelmente você já viu esse vídeo do agora presidente Bolsonaro agindo de maneira muito desrespeitosa com uma jornalista. A moça não cala, defende a própria dignidade. Esqueça o presidento, cujo comportamento no episódio foi comentado à exaustão. Foque nos jornalistas ao lado: é o silêncio mais eloquente que eu já vi. E agora repare quem foi promovido, o que se defende ou quem se faz de sonso. É assim que temos distribuído o poder.

Diante disso, você com certeza vai lembrar da ocasião em que Lula falou das "feministas de grelo duro", não é? Veja como pouco importa a dignidade da mulher, foi isso o que colou. A longa fala de Lula sobre a militante petista Clara Ant passou batida para a maioria das pessoas. É ali que ele zombava da dignidade dela dizendo que a polícia havia chegado em sua casa e ela achou que finalmente iria ter relações com algum homem. Não marcou porque não importa.

Defender valores e dignidade é visto como antiquado, conservador demais. Defender a própria honra é visto como ser barraqueiro. No episódio recente do MBL, o primeiro desdobramento foi uma enxurrada de esculachos contra as deputadas Isa Penna e Janaína Paschoal. O homem que odeia mulher finalmente pode posar de feministo sem ter de defender mulher, basta atacar alguma do lado oposto. Aliás, o próprio Zé de Abreu ganhou mais uma vez o free pass feministo Zé de Abreu. Esculachou mulher a rodo e permanece intacto de novo.

Mudar essa realidade depende de cada um de nós parar de capitular quando se cruza a linha da civilidade dentro do nosso grupo. A lógica de que contra o adversário tudo pode também é a lógica que trata determinados seres humanos como coisas à disposição. Nos últimos anos, idolatramos amadorismo, crueldade, falta de educação e de noção das próprias responsabilidades. Não é um bom caminho.

Agora as providências serão tomadas. O deputado já perdeu a pré-candidatura ao governo do Estado e vai enfrentar um processo de cassação na Alesp. O MBL está sendo cobrado por seus admiradores, algo mais importante do que ser apedrejado por detratores. A grande questão é se vamos fazer algo para mudar essa lógica ou se vamos optar conscientemente por repetir esse padrão.

Amanhã é Dia Internacional da Mulher. Podem me mandar flores, bombons, parabéns. Adoro, não acho machista, acho que é carinho. Infelizmente, no entanto, é mais um ano em que verei comemorações de quem agiu ou calou quando eu é que não fui tratada como ser humano no ambiente do jornalismo. Nunca ninguém me pediu nem desculpas. Não precisa. Basta bancar o militante de rede social.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.