| Foto: Nelson Jr/SCO/STF
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Você está revoltado com a soltura do tal do André do Rap? Tem toda razão e todo o direito. Este é precisamente o momento de ter mais atenção. Quando a população fica indignada com razão, cria o terreno mais fértil para os vendedores de soluções simples, elegantes e completamente erradas. No caso específico, o mais interessante é ver quem é parte do problema bradando por justiça como se não tivesse nada com a história. Se esse escândalo servir para algo, que seja para abrir seus olhos.

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As prisões temporárias são o nó que explica a sua sensação de impunidade, o motivo de termos penitenciárias lotadas e tantos bandidos nas ruas. Não somos uma sociedade de monstros, temos poderosos encostados e um tratamento muito diferente para quem tem ou não dinheiro para bons advogados.

Hoje, temos mais de 700 mil presos no Brasil. Um em cada 3 são presos temporários, ou seja, ainda não foram julgados. Para que eles continuem presos, há duas alternativas: ou o juiz julga e condena de uma vez ou, se não julgar, precisa rever e colocar que ela será prorrogada. O promotor do caso também pode intervir a cada 90 dias. O advogado do preso também. É uma lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, uns gostaram, outros não.

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Se a gente pensa nos presos famosos, como os grandes políticos corruptos ou esses traficantes poderosos, realmente dá o maior medo que sejam soltos porque têm advogados poderosos. E, a julgar pelo noticiário e pela gritaria pública dos nobres representantes do Ministério Público, seria esta mesma a artimanha maquiavélica do nosso presidente da República. Será? Não vou me meter a adivinha, só sei que presidente se troca e juízes e promotores são para sempre.

Os nobres representantes do Ministério Público para os quais você paga salário inicial de mais de R$ 24 mil estão bradando nas redes sociais e na mídia toda sua revolta contra o STF, o ministro Marco Aurélio e a soltura de André do Rap. Estão, veja a coincidência, aplaudindo o ministro Fux, que com uma canetada deu a eles durante anos aquele famoso auxílio-moradia de R$ 5 mil. Você se comoveu?

E se eu te disser que o ministro Marco Aurélio decidiu manter presos outros 68 casos semelhantes ao de André do Rap, somente este ano, de acordo com a mesma lei? Você sabia que os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin são contra a soltura automática nestes casos e já deram dezenas de decisões neste sentido? Promotores e procuradores não sabem disso ou não dizem de propósito? Não vou me meter a vidente. O fato é que esses casos só estão no STF porque nem o Ministério Público nem o juiz do caso escreveram um parágrafo justificando a renovação da prisão preventiva em 90 dias. Em alguns casos, em 10 anos

Estamos diante de um problema complexo. Pagamos caríssimo, muito mais que outros países, por um Judiciário que claramente não atende as demandas da população. E ele não vai atender mesmo enquanto nos tornarmos reféns de quem é bom em dar desculpas. Você pode ter inúmeras críticas ao STF, ao PGR e ao presidente Bolsonaro, mas não tem santo nessa história.

O ex-ministro Sergio Moro alegava que os juízes brasileiros, salário inicial mínimo de R$ 26.125,17, não têm condição de rever todas as prisões preventivas do país. Realmente faltam juízes nas comarcas, sobretudo no interior do país e há um excesso de judicialização numa sociedade viciada no Estado-babá. Só que há também um outro problema, o trabalho feito de qualquer jeito que acaba sendo transformado em processo. Além de sair caro demais para a sociedade, é uma plantação de tragédias humanas.

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Quem são os presos brasileiros?

Se você não é criminoso nem atua na área, provavelmente pensa que preso é alguém metido na criminalidade ou envolvido com corrupção. Bom, os presos por corrupção não chegam a 1% do sistema carcerário brasileiro. Mais da metade dos presidiários não cometeu crime violento."Mais de 50% da população carcerária NÃO está presa pelos 2 crimes que afligem a sociedade brasileira, pelas duas mazelas que afligem a sociedade brasileira: violência e corrupção. Por violência tem um tanto, preso por roubo; um número bem menor preso por homicídio e uma quantidade presa por estupro. Por corrupção… Não tem nem estatística, dá menos de um por cento. Dá zero vírgula alguma coisa por cento. Portanto, nós não prendemos os verdadeiros bandidos no Brasil.", declarou certa vez o ministro Luís Roberto Barroso.

Os presos provisórios que você conhece são os do noticiário, os que têm bons advogados e ganham voz porque são poderosos ou perigosos. Atualmente, há praticamente um consenso sobre como seria bom para o Brasil rasgar a Constituição e instituir a prisão em segunda instância. Você sabia que 41% dos presos brasileiros ainda não foram julgados em 2a instância?

Nos anos de 2008 e 2009, quando trabalhei no Supremo Tribunal Federal, tive a honra de acompanhar um projeto chamado "Mutirão Carcerário", em que percorríamos cadeias de todo o Brasil. A realidade caiu sobre a minha cabeça feito uma bigorna. Todas aquelas entrevistas de gente combativa bradando sobre criminalidade não passavam de bravata. Perdi a conta de quantas vezes repeti no rádio o clichê infame: "a polícia prende e a Justiça solta". É verdade, mas as causas são muito diferentes daquelas que eu pensava antes de conhecer o sistema por dentro. Se metade do tempo gasto em entrevistas e shows midiáticos de prisões e buscas e apreensões fosse empenhada em fazer processos decentes, muita gente não seria solta.

A cada um desses que você vê solto, há pelo menos mil que não têm voz e estão presos injustamente. Você e eu, como cidadãos, pagamos uma fortuna a um sistema de servidores públicos com estabilidade vitalícia que deveriam ser vigilantes para proteger todos nós de um pesadelo desses. Ocorre que se dá atenção ao que está na mídia, simples assim. E, se um inocente perecer, ninguém será punido.

Certa vez, relatando as visitas a presídios que fez durante o Muritão Carcerário, o ministro Gilmar Mendes contou: "Eu libertei 22 mil pessoas. E eram de réus pobres, não eram de réus ricos, não eram de bandidos internacionais, não! Eram de réus pobres, aqueles que nós visitávamos. Eram pessoas que ficaram pobres e presos… Não sei se eram pretos, não sei se eram putas – como se consegue dizer – mas ficavam presas há 12 anos, 14 anos, presos provisoriamente. (…) Eu fui a Bangu, eu fui a Pedrinhas, eu perambulei o Brasil todo. Não fiz isso por demagogia, isso teve resultado. E encontrávamos pessoas presas naqueles calabouços, como em Fortaleza (…) provisoriamente… Essa é a realidade do Brasil". Aqui não se fala necessariamente de alguém que deve e ficou além do prazo. Tem até gente presa por engano. Jair Bolsonaro está certo ou errado ao querer que essas prisões sejam revistas a cada 90 dias e não a cada 14 anos? Temos de refletir.

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E se fosse você?

Preso mente muito. Nos anos 90, fui repórter policial e a primeira máxima da profissão é que na cadeia só tem inocente. Então vou falar aqui de dois casos que conheço profundamente porque, em algum momento, trabalhei neles.

Aliás, trabalhei em vários desses até que, num determinado momento, eu mesma fui punida pela existência de um processo de opinião, no governo passado. Ganhei o processo, uma sentença que muito me alegra, juíza brilhante e forte. Mas a existência do processo me levou a perdas financeiras e pessoais muito maiores que a pena prevista caso eu fosse culpada. Nada nem parecido com o que sofreram Heberson e Robério, cidadãos comuns, que não tiveram voz nem o apoio generoso que eu tive do meu público.

Este é Herberson Oliveira, que eu conheci em 2013, quando fui Diretora de Comunicação da Change.org. Arrisco dizer que só não está preso até hoje devido ao heroísmo de uma defensora pública. Num sistema caríssimo, regiamente pago por um povo miserável, o direito mais básico, a liberdade, depende de atos individuais e voluntários de heroísmo.

Em 2003, um homem invadiu um quintal na periferia de Manaus e estuprou uma menina de 9 anos. Ela foi levada pela polícia em um carro dias depois para tentar reconhecer o suspeito nas ruas e apontou Heberson em um bar. Ele não era parecido com o retrato falado feito no dia anterior e tinha álibi, mesmo assim foi preso sem mandado. Acusado de estupro de criança, recebeu a pena da "lei do cão": foi estuprado por 60 detentos durante horas. Contraiu HIV.

A família contratou advogados que pediram diversas vezes a revisão da prisão provisória. O Ministério Público sempre foi contra e o juiz também. Apenas 925 dias depois da prisão o caso foi julgado em primeira instância e Heberson foi absolvido. Abandonado pela mulher, passou a morar nas ruas e usar drogas. Ninguém foi punido pelo erro na identificação nem pela demora no julgamento.

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Robério Ribeiro Cruz passou 6 anos, 4 meses e 14 dias no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, o mais perigoso do Brasil. Tinha de ficar isolado dos demais presos porque era acusado de matar e emascular dois meninos. Foi julgado no Tribunal do Júri, aquele que tem sustentação oral do Ministério Público e da defesa e condenado a 21 anos de prisão. Na época, ele alegava que a confissão na polícia foi feita sob tortura e a acusação é só porque ele era a pessoa mais próxima da vítima, filho da namorada. Ninguém acreditou.

Anos depois da prisão e 2 anos e meio depois da condenação, um serial killer confesso e contra os quais sobravam provas materiais, Francisco das Chagas, assumiu as mortes pelas quais Robério estava preso. Chegou a dar entrevistas pedindo perdão ao inocente que estava preso em seu lugar. O processo para a soltura demorou ainda mais um ano. Ninguém foi punido por não ter percebido que as provas não eram suficientes para incriminar o preso ou por ter percebido e continuado a acusar mesmo assim. Nem se apurou o que houve.

Precisamos de um Ministério Público pela Verdade

Você deve ter visto o festival de promotores e procuradores muito indignados gastando o feriado nas redes sociais e na mídia condenando o STF por soltar o tal do André do Rap. Eles só não contaram que, do mesmo jeito que o advogado do chefão do PCC trabalhou, o Ministério Público também poderia ter trabalhado. Bastaria uma petição de meia página a cada 90 dias dizendo que um preso daquela periculosidade não pode sair e redobrando a necessidade de julgamento final. Talvez o processo nem chegasse ao STF.

A Constituição de 1988 pode ter trazido muitos avanços mas tem dois problemas estruturais que precisamos enfrentar: é reativa à privação de direitos durante a ditadura e foi muito sujeita a todo tipo de lobby. Um dos mais fortes é o que convenceu constituintes a construir nossa jabuticaba mais cara, um Ministério Público que soma os poderes MP Italiano pré-mãos limpas com os do parquet francês e sem as mesmas responsabilidades.

A intenção dos nossos constituintes e dos teóricos políticos que elaboraram este modelo de Ministério Público foi nobre, não tenho dúvida. Diante de um período em que muitos direitos foram suprimidos, imaginaram uma categoria que defendesse o cidadão e tivesse todo tipo de blindagem do Estado: poder, independência, voz, segurança, direito a arma, estabilidade e segurança financeira vitalícia. Mais de 30 anos depois, a realidade se impõe. Há um problema fundamental com a teoria, dar esse tipo de missão a seres humanos justamente na era da hiperinformação, da economia da atenção e da vaidade. Acabamos com distorções no sistema que esmagam o pequeno e favorecem o grande bandido.

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Houve, há alguns anos, a tentativa de correção de rumos por meio da PEC 37, que retiraria o poder de investigação do Ministério Público. Em teoria, sou a favor. Na prática, não considero que vale a pena. No ano passado surgiu, por meio do PL 5282/2019, o Anastasia-Streck, uma solução bem mais interessante. Além de criar um Ministério Público pela Verdade, pacifica casos como aquele em que Sergio Moro pedia diligências e provas extras na Lava Jato.

A ideia é não desperdiçar tudo o que o nosso país investiu em servidores públicos altamente capacitados que, apesar das falhas bem intencionadas do sistema, desenvolveram em 32 anos expertise em investigação e uma sofisticada rede de relacionamento com as polícias. O projeto tem parecer favorável do relator e aguarda votação na CCJ do Senado. Falta só pautar.

Há países em que o Ministério Público não investiga, isso é tarefa exclusiva das polícias. Mas também há países democráticos em que o Ministério Público investiga, atuando em conjunto com as polícias, com resultados muito bons, como Estados Unidos, Alemanha e Áustria. O direito brasileiro é diferente do norte-americano, mas tem muitas semelhanças com o modelo alemão.

A diferença entre o que nós e outros países cobramos do Ministério Público é o objetivo. No Brasil, cobramos que promotores e procuradores acusem os suspeitos e consigam condenações a qualquer custo, com grande pressão da mídia. Nesses outros países, cobra-se a revelação da verdade, qualquer que seja ela. Você prefere pagar a peso de ouro por verdades ou por prisões? É essa a escolha que está na mesa.

Racionalizar o sistema penal brasileiro é tarefa árdua e complexa, tratada de forma cotidiana como um reality show de simplificações. É um método que não tem a menor chance de dar certo. Eu tenho há muitos anos diferenças com o presidente Jair Bolsonaro, mas não vou me juntar à turba que apedreja a aprovação do artigo que prevê a revisão das prisões preventivas a cada 90 dias. Estamos aqui alertas diante de meia dúzia de casos de poderosos com advogados caros e servidores públicos regiamente pagos que cochilaram, mas não estamos vendo a justiça que pode ser feita a milhares de inocentes sem voz.

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Não é um tema simples nem a vida desse tal André do Rap que estamos decidindo, é o futuro do nosso país. Já sabemos o que não queremos, a impunidade. O que queremos é consertar um avião em pleno vôo, o que não será fácil nem feito com bravatas e arroubos de vaidade. As soluções fáceis, barulhentas e cheias de razão nos trouxeram até aqui. Está na hora de apostar em técnica e trabalho duro.